Economia solidária
Antes da interrupção durante o mês de Agosto, em todas as rubricas, e ainda em ambiente festivo pelos quatro anos de existência, vamos conhecer melhor um dos pilares da Informação Solidária. Numa altura de crise sócio-económico, eis uma alternativa ao actual sistema de produção.
Texto e fotografia Dina Cristo
A Economia Solidária (ES) é um movimento, com cerca de 30 anos, de renovação da Economia Social. Com raízes nas práticas indígenas, a Economia Social desenvolveu-se com o aparecimento do sistema industrial, que marginalizava artesãos, sobretudo em Inglaterra, no séc.XIX, com o sistema cooperativo. Antes, na Idade Média, já existiam as guildas e em Portugal as Misericórdias. Com a depressão e Grande Guerra, no séc.XX, e o surgimento do Estado Providência, a Economia Social renasce aprofundada no final do século devido à hegemonia da globalização capitalista. O aumento do contingente das franjas do sistema conduziu à reinvenção de uma Outra Economia, revalorizada desde o Fórum Social Mundial, no Brasil, há mais de onze anos, aglutinando diversos movimentos sociais.
A Economia Solidária emerge, sobretudo no Brasil, América Latina e África, como um valor acrescentado em relação à velha economia, dominante. Economia pública não estatal dá resposta à necessidade de bens e serviços que o sector privado não investe, por ser pouco lucrativo, e que a esfera pública não atende. Uma economia de princípios e não de objectivos, muito menos com fins meramente lucrativos, que concilia o que, até então, parecia impossível de harmonizar: o trabalhador e os meios de produção, a actividade económica e a Ética. Reacende-se como alternativa à economia capitalista, de competição e maximização dos lucros individuais, baseada no pressuposto de escassez e gerando desperdícios (incluindo energéticos), com a adoração do seu deus dinheiro, como denuncia Óscar Quiroga, com os seus dogmas económicos, nos seus templos bancários.
«A economia solidária nega a competição nos marcos do mercado capitalista que lança trabalhador contra trabalhador, empresa contra empresa, país contra país, numa guerra sem tréguas em que todos são inimigos de todos e ganha quem for mais forte, mais rico e, frequentemente, mais trapaceiro e corruptor ou corrupto», lê-se na sua Carta de Princípios. Um sistema moderno de escravidão geral gerado por uma mecânica monetária, que cria dinheiro a partir da dívida, no âmbito de uma ditadura económica, com uma guerra económica, destrutiva, que inclui assassin(at)os económicos, demonstra a segunda edição da série de documentários “Zeitgeist”. «Competição ou espírito agonístico são, na nossa perspectiva, a mesma coisa. Resultam da incapacidade de sair de si próprio, no desejo de se sobrepor, ao invés de se identificar com o outro», precisa Clara Tavares, na última edição da "Biosofia", revista vencedora do I Prémio de Informação Solidária.
Há mais de 25 anos, Carlos Cardoso Aveline escrevia no seu livro “Aqui e Agora”: «As ideologias da luta competitiva, baseadas na premissa de que o mundo é mau e o homem não presta, não sobreviverão à sociedade patriarcal que já está aos pedaços, como uma placenta que se rompe na hora do parto». A ES baseia-se num novo contrato social, com novos actores - como são exemplos as associações, cooperativas, mútuas, fundações, IPSS, ONG, clubes de troca – assente em novos pressupostos e com uma mudança de valores. Para a ES, acima de tudo está a Vida, depois o Bem-Estar geral, de todos e de cada um, a satisfação das suas necessidades básicas e reais, que são, segundo a terceira série do Zeitgeist, alimentação (água potável, alimentos nutritivos), roupa, abrigo (energia limpa), calor (contacto, companhia), amor e aceitação, em ambiente estável e de reforço positivo.
A ES representa o regresso ao básico: o respeito pela vida integral – de todos os seres vivos – e estabelecimento de correctas relações humanas e ambientais. A recuperação de uma economia em que o Ser Humano é o sujeito do processo – e não o objecto em perseguição do lucro viciante, que advém da criação de problemas, como defende Peter Joseph, na sua película – realmente económico, no sentido de ser produtivo e economizador de recursos. Uma economia em que o que se produz vende e o que se compra consome, fundada na aceitação da realidade, naquilo que se tem, e não no desejado, o que se gostaria de ter, como o crescimento contínuo.
Diferente consoante as épocas e as áreas geográficas, a ES tem-se vindo a manifestar em novas propostas como as de responsabilidade social, desenvolvimento sustentável, comércio justo, ecoaldeias, microcrédito, cidadania global acção local. Economia baseada em recursos, segundo o Movimento Zeitgeist, Economia Espiritual, de acordo com Alfredo Sfeir-Younis, Economia Budista, como a designava Carlos Cardoso Aveline, no seu referido livro, em 1985, ou a Teoria de Utilização Progressiva, do Movimento PROUT, que defende uma democracia económica. Mais visível num âmbito mais alargado, o social, tem expressão na emergência do empreendedorismo social, marketing social, tecnologias sociais, turismo social e… informação social.
Reticular, em cadeia produtiva, reinveste os excedentes que assim permitem melhorar a qualidade de vida dos que nele se tecem, aumentando e melhorando o trabalho e a renda. Uma união, onde há parceiros (e não clientes), baseada nos princípios de solidariedade – moral, social e sistémica -, liberdade eticamente exercida, baseada num sistema de troca e onde se conjuga o trabalho manual e intelectual, a função de empregado e patrão, o papel de produtor e consumidor (o proconsumidor), num equilíbrio final. Uma emancipação que tem vindo a ser concretizada, por exemplo, na recuperação, pelos trabalhadores, de empresas falidas, em auto-gestão, numa participação efectiva, com partilha de direitos (resultados) e deveres (responsabilidades e limites, auto-regulados).
Descentralizada e democratizada, com melhores níveis de interesse, estímulo e autonomia, em que a diversidade e singularidade são valorizadas, nela floresce a confiança, a criatividade e originalidade. De carácter pequeno, familiar, doméstico, popular ou local, de proximidade, tem uma essência transpessoal, de sinergia colectiva. Vocacionada para o desenvolvimento humano, com uma eficácia não apenas económica, mas também social, ambiental, cultural, patrimonial ou política, tem na dignidade, reciprocidade, justiça e suficiência alguns dos seus valores. Actua de acordo com o paradigma da abundância, segundo o qual quanto mais se distribui a riqueza mais os ganhos de todos aumentam.
Numa lógica social e comunitária, esforça-se por integrar, ainda que em situação desfavorável, elementos que num raciocínio imediatista levaria ao despedimento imediato. Mais do que na experiência, aposta em talentos, e inclui deficientes, por exemplo. O enriquecimento não é individual nem se mostra na paralisação amontoada de moeda fiduciária, ilusória, mas geral e a médio e longo prazo, em desenvolvimento pessoal, social e espiritual, como é o caso dos ashrams. O lucro não é meramente económico, muito menos financeiro; é sobretudo social, ambiental e cultural; é benéfico, útil e satisfatório para toda a comunidade envolvida, designadamente humanos, plantas e animais.
O proveito é mútuo e colectivo e ultrapassa a dimensão material; traduz-se na alegria de estar em harmonia com os outros seres, com os quais se identifica, aproxima e comunica em vez de se sentir superior aos outros, intensificando a separatividade e isolamento. Em causa está a felicidade de todos e de cada um, para a qual o interface, dinheiro ou vale, é apenas um meio e não um fim. Aliás, a moeda social não tem juros – está livre para fluir, circular e dinamizar as intercâmbios.
Num momento de decrescimento económico involuntário, de colapso do sistema e de transição, a auto-produção pode ser um caminho lento mas seguro e construtivo, onde a união por um “nós” interligado supera a desunião de um “eu”, fragmentado e em luta. Os chamados excluídos, o tecido social da designada periferia, em comunhão, encetam uma acção de auto-recriação e regeneração, de religação e reconexão, verdadeiramente comunicativo e ecológico. Em cadeias produtivas tendencialmente amigas, de si próprio, dos outros, do meio ambiente e das culturas são recentrados pelas novas tecnologias digitais. Grupalmente, recuperam o secular controlo social da estrutura económica, ocultado pela hegemonia corporativismo e monetarismo. Mais consciente, sensível, comprometido, voluntário, informal, transparente, harmonioso, constitui um enriquecimento humano e cognitivo, tendente ao aperfeiçoamento, pela integração da vertente investigação/acção.
No Brasil, onde o sector da Economia Solidária está mais desenvolvido, em termos teóricos e práticos, e a corrente Ibero-americana (Euclides André Mance) salienta a entre-ajuda comunitária, existem além de mais de vinte mil empreendimentos de ES, associações (de trabalhadores, de pequisadores), redes, fóruns, feiras, incubadoras, centros de formação, conferências, colóquios e um Conselho Nacional bem como uma Secretaria Nacional de Economia Solidária e Dia Nacional. Na Europa, cuja corrente (Jean-Louis Laville) destaca a sociedade civil, existe o Intergrupo de Economia Social do Parlamento Europeu. Espanha tem um portal de ES.
Na corrente da Macaronésia (Rogério Roque Amaro), onde Portugal se integra, sublinha-se o carácter sistémico. Foi nos Açores o foco de nascimento e é lá que a ES se tem desenvolvido. Além de cooperativas, como a Kayros e a Cresaçor, existe um Centro de Estudos de ES do Atlântico. No continente, tem havido actividade académica, mestrados, teses, cursos livres, edição de revistas e livros, além de uma Bolsa de Valores Sociais e um recente Conselho Nacional para a ES.
Etiquetas: Dina Cristo, Economia, Economia solidária