quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A Ciência da Polis VII


Nesta sétima parte abordamos a importância da educação, como fundamento da consciência, virtuosismo, justiça e vontade de bem (comum).

Texto José Luís Maio fotografia Dina Cristo



“…Se a causa da decadência dos Estados deve ser buscada na incultura, isto é, na falta de sinfonia entre os apetites e a razão na alma do governante – quer seja um só, quer sejam vários-, a conclusão é que deve ser arrebatada ao homem inculto qualquer influência na direcção do Estado. E pode muito bem acontecer que, neste sentido profundo, se tenha de considerar inculto mesmo alguém que a opinião geral considere tipicamente culto: o hábil calculador de rápida percepção mental, o que sabe exprimir-se engenhosamente. Mais ainda: Platão vê nestas qualidades um certo sintoma de que o instintivo predomina em quem as possui…”(1).
São demasiado dramáticas e conducentes às mais indesejáveis consequências, quer para cada ser humano, quer para os povos, estados e nações, todas as iniciativas de abolição das fontes de sabedoria que ao longo das eras foram o suporte e o farol da grandeza das civilizações e dos indivíduos, para que continuemos a ignorar as tragédias que provocaram, a fingir que nunca existiram, ou a “branquear” a corrupção ou perversidade intrínsecas que as caracterizam. Também justificámos (citando Eclesiastes) que nada há de novo sobre a Terra (“debaixo do Sol”) que já não tivesse acontecido no passado, como exemplificaremos com a seguinte transcrição do livro de Werner Jaeger: “… Após a derrota dos Espartanos, Epaminondas” [general de Tebas dos séculos V/IV a. C., até então dominada por Esparta] “arrancou os Messénios da sua secular situação de hilotas” [escravos dos espartanos, párias] “e restituiu-os à liberdade, para deste modo provocar no Peloponeso uma discórdia interna que rematasse a obra de destruição guerreira do inimigo. Estes acontecimentos tinham por força que suscitar no coração dos partidários do espírito dórico na Grécia inteira a dúvida do que teria sido a história grega se os Estados dóricos do Peloponeso, Esparta, Argos e Messénia, em vez de se dividirem em querelas internas, se tivessem fundido numa unidade política… A causa da sua decadência não fora a falta de valentia ou de arte da guerra, como um espartano poderia pensar, mas a sua incultura (amatia) nas matérias humanas mais importantes. Para Platão é esta profunda incultura que, hoje como outrora, destrói os Estados e continuará a destruí-los também no futuro. Quem quiser saber em que consiste esta incultura será remetido ao que ficou exposto nas longas investigações sobre a essência da paidéia. Esta baseia-se na verdadeira harmonia entre os apetites e a razão. Foi por seguirem no caminho dos seus apetites, em vez de enveredarem pelo caminho designado pela razão, que aqueles Estados poderosos dóricos caíram… A crítica filosófica a que, já na República Platão submetera o espírito do Estado espartano e a educação professada em Esparta é confirmada nas Leis pela esmagadora falência daquela família de povos, assim que se encara à luz do presente a sua luta histórica pelo mais alto prémio: a hegemonia sobre os Gregos, à qual parecia destinada. É como se Platão pusesse nestas páginas termo ao combate de toda a sua vida com o problema da ideia dórica do Estado. É um desfecho trágico, e nem podia ser de outro modo. Na sua juventude, ouvira exaltar Esparta como ideal absoluto, nos círculos da oposição ateniense. Na sua maturidade, aprendeu muito daquele modelo, mas, embora o êxito de Esparta, então no apogeu da sua força, parecesse dar razão aos seus admiradores desprovidos de espírito crítico, já na República Platão apontava, profeticamente, a raiz das suas fraquezas. Quando começou a escrever as Leis, já estes defeitos eram visíveis a todos. A Platão só restava agora reconhecer que foi precisamente por não ser o melhor, isto é, por lhe faltar a verdadeira paidéia e o melhor ethos que o “segundo Estado” da República teve de sucumbir. Aqueles “reis” tinham-se deixado arrastar pelo plethos da sua alma, pela ânsia de poder e honrarias, pela pleonexia, em vez de obedecerem ao verdadeiro guia, ao espírito… Exteriormente, o Estado era dirigido, como unidade, por uma pessoa, mas interiormente era dominado pela multidão de anseios e de desejos que governavam a alma deste indivíduo. Já no Górgias era em termos semelhantes a estes que Platão comparava a forma da democracia, onde imperava a arbitrariedade da multidão, à tirania, afim a ela por essência.(2) Para expressar isso nos termos da República, era a desintegração do Estado no interior da alma do governante que assinalava a ruína do seu poder externo. É que para Platão o Estado nunca é o mero poder, mas sempre a estrutura espiritual do homem que o representa...
A segunda das sete leis herméticas, conhecida por “Lei da Correspondência ou da Analogia”, ensina-nos o seguinte: "O que está em cima é como o que está em baixo", “o que está dentro é como o que está fora”, ou “como é no grande assim é no pequeno”. Como esclarecimento, continuamos a ler: “Essa lei é importante porque nos lembra que vivemos em mais que um mundo. Vivemos nas coordenadas do espaço físico, mas também vivemos num mundo sem espaço nem tempo. A perspectiva da Terra normalmente impede-nos de enxergar outros domínios acima e abaixo de nós. A nossa atenção está tão concentrada no microcosmo que não nos apercebemos do imenso macrocosmo à nossa volta. O princípio de correspondência diz-nos que o que é verdadeiro no macrocosmo é também verdadeiro no microcosmo e vice-versa. Portanto, podemos aprender as grandes verdades do cosmo observando como elas se manifestam nas nossas próprias vidas. Por isso estudamos o universo: para aprender mais sobre nós mesmos. Na menor partícula existe toda a informação do Universo”. Ora, esta reflexão – chegada até nós desde a mais vetusta antiguidade – é partilhada por um número cada vez maior de cientistas contemporâneos. De acordo com esta lei, se fizermos corresponder o permanente estado de guerra entre as várias cidades-estado da Grécia antiga ao estado de conflito ininterrupto entre as forças partidárias do país, facilmente conseguiremos profetizar a que exangue, “triste e vil” destino chegaremos como Estado, Nação e Povo, com as inexoráveis consequências a nível local e individual.
Se não fosse o desprezo e o ostracismo a que a esmagadora maioria dos políticos dos últimos vinte séculos votaram todo este imenso e riquíssimo manancial de informação e experiência dado por todas as formas de governo através das eras, mesmo as mais remotas, a sabedoria acumulada pela população do mundo actual seria suficiente para vermos hoje banida da face do planeta todas as fontes de misérias em que ainda estamos mergulhados.

A educação

Não se conhece o número dos agentes pedagógicos de todos os níveis e graus de ensino, do infantário à universidade, que consideram a educação como o processo de pôr os alunos a papaguear tudo o que alguns, do alto da sua infalibilidade catedrática, decidiram ser importante para a construção de um mundo melhor e para a felicidade e realização das pessoas, mas não devemos estar muito longe da realidade se dissermos que essa visão, monstruosa e iníqua, ou é partilhada pela esmagadora maioria dessa classe profissional, ou dela é cúmplice, para sua vergonha e para miséria de todos(3). De facto, se assim não fosse, exigiria antes o reconhecimento e estaria indelevelmente unida em torno do que já é feito nos raros espaços pedagógicos verdadeiramente, estes sim!, de excelência, onde vemos respeitados a divindade, a idiossincrasia, a singularidade, a dignidade, a individualidade, a vocação e os momentos próprios de maturação de cada aluno. Habituámo-nos a confundir os conceitos e as práticas conhecidos como “educação”, por um lado, e “instrução” ou “ensino”, por outro. É compreensível que assim seja, dada a interacção ou penetração de uma na outra, ou mesmo a sinonímia com que por vezes se reflectem no destinatário.
Segundo as Leis, de Platão, a educação “consiste na formação correcta que mais intensamente atrai a alma da criança, durante a brincadeira, para o amor daquela actividade, da qual, ao tornar-se adulto, terá que deter perfeito domínio”. Mas, logo a seguir, completa o filósofo: “…Mas é imperioso que não deixemos que a nossa definição de educação permaneça vaga, pois actualmente quando censuramos ou elogiamos a formação de um indivíduo, definimos um como educado e um outro como não-educado, a despeito deste último ser extraordinariamente bem educado no comércio… ou como piloto de uma embarcação… A educação a que nos referimos é o treino desde a infância na virtude, o que torna o indivíduo entusiasticamente desejoso de se converter num cidadão perfeito, o qual possui a compreensão tanto de governar como a de ser governado com justiça… Seria vulgar, servil e inteiramente indigno chamar educação a uma formação que visa somente à aquisição de dinheiro, vigor físico ou mesmo de alguma habilidade mental destituída de sabedoria e justiça…”.
No trabalho A Ciência da Polis V analisámos o significado do conceito “educação”. Sinteticamente, talvez possamos dizer que a educação processa-se de dentro para fora, enquanto a instrução ou ensino processa-se de fora para dentro. Isto é, através do processo educativo, o educando aprende a exteriorizar tudo o que guarda no seu interior – após uma fase de reflexão, interiorização e maturação – e havia adquirido em processo de aprendizagem numa fase anterior, de instrução ou ensino, por meio de um agente – progenitor ou tutor, professor, instrutor, etc., “de fora” (vindo do professor, tutor, etc.) “para dentro” (para a sua mente) –, de acordo com a sua particular vocação e, assim, capacitando-o a relacionar-se com o mundo (interno e externo, isto é, consigo mesmo e com os demais) e a servi-lo. A função essencial do “educador” é estimular o “educando” a exteriorizar o que o caracteriza e define como “ser humano” ou “indivíduo” num determinado momento do seu desenvolvimento global, ou numa fase particular e concreta do vasto processo de consciencialização da sua real natureza.
Neste sentido, tanto a instrução como a educação verdadeiras (baseadas em leis perfeitas e rigorosas, nunca arbitrárias ou caóticas) têm como alvo o despertar da “alma humana” ou “individualidade” (a mente superior ou abstracta, filosófica, reflexo da alma espiritual, ou amor/sabedoria, e do espírito individual, ou vontade de bem) do ser humano, de modo que a consciência se aproxime progressivamente da sua “natureza divina”. O ensino, a instrução, dá-nos a informação, o conhecimento, que permite que nos conheçamos a nós mesmos e a tudo o que nos rodeia; a educação permite-nos expressar e transmitir a consciência (o carácter) já conquistada. Ora, para que as qualidades da alma – no início em potência – sejam despertadas e trazidas à actividade – transformadas em acto –, é imperioso que comecemos por “sensibilizar”, ou “activar”, de forma correcta a estrutura que sustenta e serve de habitação a essa mesma alma, que é a “personalidade” (a mente inferior, concreta e prática, e os seus veículos ou instrumentos) – o “corpo” na terminologia ocidental comum, ou o “quaternário inferior” já referido anteriormente. Este método não soará estranho a ninguém, pois a velha máxima latina “mens sana in corpore sano” (mente sã em corpo são) é sobejamente conhecida de todos. A velha sabedoria grega recomendava que todas as crianças tivessem ginástica e música, o mais cedo possível, para serem saudáveis de corpo e alma, respectivamente. Porém, o que é que temos hoje, 2.500 anos depois, nos infantários e escolas pré-primárias e do 1.º ciclo portugueses? Continuaremos a dizer, depois disto, que é por azar ou castigo divino que somos maioritariamente um povo doente e inculto?
Toda a educação, no sentido de “paideia”, ou formação físico-anímico-espiritual da trindade humana “personalidade-alma-espírito, pressupõe um processo dialéctico de “recepção/emissão, “passividade/actividade”, regular e constante (não esporádico e ocasional), de modo a que a criança se familiarize a pouco e pouco com o hábito de contribuir, alegre, activa e lucidamente, para o bem do todo local, nacional e mundial. No entanto, os nossos espaços pedagógicos encontram-se entregues à mais mórbida letargia, à mais profunda passividade, ao mais retrógrado imobilismo físico, moral e intelectual.
Ainda nas Leis, aprendemos que é o próprio recém-nascido que emite os sinais e as indicações necessários à reaquisição do seu bem-estar e tranquilidade: “Toda a criatura recém-nascida – e a criatura humana especialmente – costuma emitir gritos; e mais, a criança vai além dos berros e geralmente põe-se a chorar…, certamente sinais que não são de felicidade. Este período da infância dura não menos que três anos, o que não constitui pouco tempo para se viver mal ou bem…”.
Adicionalmente, no pensamento, acção e obra do eminente pedagogo, pedopsiquiatra e psicanalista infantil do nosso tempo, João dos Santos, está presente a conclusão de que toda a criança, com uma educação normal, tem a capacidade de se auto-reprimir: “A criança que vive em liberdade, mas no enquadramento social humano, sente necessidade de se reprimir. A criança exige do adulto que a ajude a reprimir-se, para encontrar a segurança necessária ao seu desenvolvimento humano, à sua ânsia de atingir, igualar ou ultrapassar os adultos”.
Por outro lado, da falta de uma educação correcta nada de bom poderemos esperar. Voltemos às Leis: Toda a alma submetida ao medo desde a juventude tenderá de modo particular a tornar-se receosa, o que, todos concordarão, abre caminho para a prática da cobardia e não da coragem… A vida indolente desenvolve nas crianças um humor melancólico, tendente à cólera e muito facilmente movido pelas ninharias; por outro lado, o rigor extremo e rude a ponto de reduzi-las a uma escravização cruel torna-as vis, mesquinhas e misantrópicas e assim insociáveis… Supõe que tentássemos assegurar mediante todos os meios disponíveis que as nossas crianças de peito provassem o mínimo possível de aflição, medo ou sofrimento de qualquer espécie. Não seria de se acreditar que graças a esse meio a alma do lactente ganharia mais luz e leveza?... a vida acertada não deve nem visar (exclusivamente) aos prazeres nem se esquivar inteiramente às dores, devendo sim encerrar aquele estado intermediário de leveza, o qual é a condição da própria divindade. E sustento que quem quer que seja de entre nós que fosse divino teria que buscar esse estado de alma, nem se tornando absolutamente inclinado aos prazeres, mesmo porque com isto não estaria livre da dor, nem permitindo que nenhuma outra pessoa, velha ou jovem, homem ou mulher, ficasse nessa condição e muito menos, na medida do possível, o bebé recém-nascido, pois devido à força do hábito é na infância que todo o carácter é mais efectivamente determinado…”.
Face a tais provas e evidências, que remontam a um passado longínquo, teremos ainda o atrevimento de considerar as gerações mais novas as únicas e principais responsáveis pelos vícios que as corroem e destroem? Não será antes a incapacidade ou falta de preparação das gerações anteriores – no caso português as que atingiram a maioridade no e pós-25 de Abril e que voltaram a deixar-se enredar nas malhas (cada vez mais insidiosas) do obscurantismo teológico/político idêntico ao do antes-25 de Abril?
No nosso caso, faltaram lamentavelmente aos ideólogos e operacionais da Revolução dos Cravos as indispensáveis qualidades do lúcido Amor/Sabedoria e da intuitiva e determinada Vontade de Bem, a reger a sua nobre – porém ingénua, inexperiente, apaixonada e impetuosa – consciência. Talvez tenhamos aqui uma prova da existência do predomínio da natureza kama-manásica (ou da mente inferior, inerente à personalidade) sobre a consciência destes homens corajosos: foi provavelmente o medo de serem considerados ditadores se conservassem o poder conquistado por um impulso ou motivação digno que os levou a entregá-lo de “mão beijada” à avidez caótica e imatura dos partidos políticos, fonte desgovernada da cada vez mais caracteristicamente ocidental democracia dos medíocres, usurpadores e gananciosos provindos da mole anónima do tirânico demo, conforme profetizou o “divino” Platão.

(1) Werner Jaeger, in Paideia, A formação do homem grego.(2) Os líderes populares nas democracias são equiparados aos tiranos, Górg., 466 D e 467 A. O demos” [actualmente entendido como ‘multidões incultas manipuladas pelos demagogos’] “é um tirano a quem se têm de adaptar todos os cidadãos e principalmente todos os políticos, tal qual nos Estados despoticamente governados por um tirano… É evidente, porém, que Platão fala aqui de uma democracia que tenha degenerado num governo pela populaça. No Político distingue uma forma boa e outra má de democracia, tal como qualquer outra forma de governo pode ser boa ou má.(3) A incompetência atinge o paroxismo quando vemos muitos dos próprios docentes universitários transformados em meros e fastidiosos “ecos” dos apontamentos relativos às matérias que leccionam, limitando-se a repetir ipsis verbis nas aulas o que está escrito, como se os estudantes não soubessem ler!

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quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Minha árvore


Na semana em que se assinala o Dia da Floresta Autóctone, publicamos uma dedicatória, escrita no dia 16 de Setembro de 2006.

Texto Dina Cristo

«Quem seria eu, sem ti
Para abraçar
Quando todos se vão embora?
Que seria de mim, sem ti
Para me ensombrar
Quando o calor aperta?
Quem seria eu, sem ti
Para me curar
Quando a doença desperta?
Que seria de mim, sem ti
Árvore do meu jardim?»

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quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Teledependência


Domingo é Dia Mundial da Televisão. Ensejo para ponderar o poder (destrutivo) desta mãe tecnológica, quando abusada, sobretudo na infância. Um texto escrito em 2005, antes da força actual da internet.

Texto Cláudia Oliveira desenho* Dina Cristo

Uns chamam-lhe “fábrica de horrores” e “inimiga da cultura”; outros consideram-na imprescindível para que a criança se desenvolva enquanto ser social. As crianças não sabem muito bem o que ela é mas adoram-na! Para muitas delas a televisão tornou-se um vício.

O que um dia de aulas ensina a uma criança pode ser destruído por um programa de televisão em cinco minutos. Desde o início da vida que as crianças vão sendo modeladas pela “caixinha mágica”, que está a ocupar o espaço de diálogo entre muitas famílias e a influenciar a infância que muitos consideram ser o “terreno” da construção social de qualquer ser humano.

A televisão consegue conjugar características que os outros meios de comunicação social não têm: o som, a imagem e o movimento transportam os mais novos para um universo de fantasia que os fascina e torna dependentes. Para muitos psicólogos, psiquiatras e educadores, a televisão tornou-se algo perigoso para a saúde mental das crianças quando vista sem regras e sem um acompanhamento paralelo por parte dos adultos, nomeadamente os pais.

O número de horas que a criança passa em frente ao televisor vai aumentando dos dois aos 10 anos e tem tendência a decrescer, depois, até aos 15. Mas centremo-nos na faixa etária entre os seis e os 10 anos (idade em que se estabelecem as bases da teledependência), para tentar perceber o que leva uma criança a demorar horas a fio a olhar para o pequeno ecrã como se estivesse anestesiada.

Quando
a televisão se transforma de uma simples apetência a uma necessidade absoluta e imperiosa fala-se em teledependência. A pessoa perde a liberdade para exercer o auto-controlo sobre um impulso e deixa-se levar passivamente pelo desejo de ver televisão. O público mais susceptível é o infantil porque enquanto que os adultos são capazes (ou, pelo menos, deveriam ser) de seleccionar o que necessitam de ver, as crianças ainda não estão mentalmente preparadas no sentido de desenvolver um espírito crítico e selectivo perante o que vêem na televisão.

Além disso, e ao contrário do que muitos querem fazer crer, a televisão não é por si só formativa. Para se retirar dela uma aprendizagem verdadeiramente útil e pertinente é necessário ter conhecimentos prévios que nos ajudem a relacionar o visto com o vivido. Ora, as crianças não têm uma experiência vivencial que lhes permita estabelecer essa relação, por isso é que se deixam levar durante horas e horas, enleadas no espectáculo das cores que a televisão lhes oferece.

Calcula-se que uma criança actual, quando chegar aos 60 anos, terá passado oito anos da sua vida a ver televisão. Muitas vezes, o
consumo televisivo por parte das crianças chega a rondar a anormalidade e pode apelidar-se mesmo de compulsivo.

A força desta dependência é de tal forma intensa que os leva até a estabelecer uma série de rupturas com o mundo exterior. Intencionalmente ou não, as televisões educam quem as vê e ouve. Resta saber até que ponto o fazem bem ou mal e se os pais dos actuais “
filhos da televisão” conhecem quem os está a educar.

A solução não é desligar a televisão e assim fechar todas as portas à sua influência – a solução é saber que portas se devem e podem abrir. Não ensinamos as nossas crianças a ter as luzes da casa sempre ligadas nem as torneiras de água sempre abertas. Mas porque é que as habituámos a ter a televisão sempre ligada? Catarina Neves, psicóloga em Coimbra, considera importante nunca nos esquecermos que «os pais, no fundo, são um modelo: se os próprios pais usam a televisão sem descriminação, a má aprendizagem em relação à forma de ver TV começa logo em casa».

Filhos da televisão

A Inês tem sete anos, estuda na Escola Primária nº23 de Casais do Campo, em Coimbra, onde frequenta o quarto ano, e diz que não consegue passar um dia sem ver televisão. Gosta de ler livros nos tempos livres mas considera que alguns são “chatos”. A televisão «é melhor porque as imagens mexem, há sons e é divertido», acrescenta. Os pais não a deixam ver “certas coisas” e tem que ir para a cama cedo, nunca depois das 10 da noite.
Tal como a maioria dos seus colegas de escola, a Inês não perde um episódio de “Morangos com açúcar”. É uma telenovela «com jovens, alguns como nós e gostamos de ver porque todos os dias converso com as minhas amigas sobre o que aconteceu na novela», diz com entusiasmo. Os pais optaram por colocar-lhe uma televisão no quarto para «lhe fazer mais companhia quando está doente ou assim», dizem os pais, mas a Inês acaba por usufruir mais dela quando não está doente. A mãe reconhece que não acompanha muito os programas que a filha vê, porque só chega a casa à noite, mas tenta alertá-la para a transmissão de imagens, desenhos animados e filmes violentos. No entanto, admite que «devia controlar muito mais mas nem sempre há possibilidades para isso».

A relação do meio televisivo com o público infantil é curiosa: a televisão constitui uma boa parte do universo existencial dos mais novos, e é através do contacto com ela que começam a percepcionar o mundo que as rodeia. Sem se aperceberem, isto pode causar-lhes um estado de inibição, isolamento, nervosismo e ansiedade.

Antes mesmo de as crianças irem à escola, a televisão molda-as e transforma-as em público. É, por isso, necessário educar os nossos filhos desde muito cedo, ensinando-os a incorporar as chamadas estratégias de alfabetização visual.

Para quase todas as crianças (e até para muitos adultos) o que não aparece na televisão não existe socialmente. É fundamental mostrar-lhes, e não somente dizer-lhes, que isso não é verdade. Do ponto de vista psicológico isto é extremamente grave porque significa que a criança não interage socialmente e não realiza outras actividades durante tanto tempo quanto o que passa fascinada em frente ao televisor.

No início pensou-se que a televisão acelerava o desenvolvimento intelectual das crianças. No entanto, investigações posteriores concluíram que a criança necessita de imagens de pessoas e de objectos que tenham uma certa regularidade, para que possam memorizá-las.

As imagens televisivas, pela sua fugacidade, não permitem que tal aconteça. O ritmo da televisão é-lhe imposto, rápido e sem possibilidade de parar e voltar atrás. A criança é obrigada a adquirir uma grande rapidez de percepção, o que é raro em crianças com idades entre os seis e os 10 anos.

O visionamento excessivo de televisão dificulta a construção de imagens na memória e dá origem à perturbação da atenção e à dispersão caótica das imagens na mente infantil. Tudo isto está presente nos desenhos animados, que é o que normalmente se vê mais nestas idades.

Chupeta electrónica

O Miguel tem nove anos e frequenta o quarto ano, na mesma escola da Inês, mas não se insere na maioria dos meninos fanáticos por desenhos animados. Gosta deles mas só dos mais calmos, como o “Nody”. Diz que prefere ver «um bom jogo de futebol» do seu Benfica e não perde um programa “Um contra todos». Interessa-se por noticiários porque os pais, desde cedo, o habituaram a isso. A mãe, contabilista, considera «fundamental incutir a vontade de saber o que se passa no mundo e é uma forma de o irmos enriquecendo culturalmente».

Catarina Neves afirma que o importante é que os pais «sigam minimamente os programas que os filhos acompanham e dialoguem sobre eles, dando-lhes a conhecer outros modelos de aprendizagem». O que acontece com muita frequência é que «os programas menos pedagógicos são os que os miúdos gostam mais de ver». E acrescenta que «a televisão até pode ser um bom método pedagógico, desde que os programas sejam seleccionados e nunca se ponha de parte outras actividades, como o relacionamento social».

Como as crianças não têm o desenvolvimento mental dos adultos é fácil perceber que todas as estratégias televisivas se apresentem muito mais fascinantes para elas, tornando-as passivas perante tudo o que é dito e mostrado. A televisão mostra-se muito mais fascinante do que qualquer livro.

Os próprios comportamentos dos adultos, principalmente dos pais, podem ir facilitando esta dependência. «Basta que a criança tenha televisão no quarto para se fomentar quer o isolamento quer a dependência televisiva, e isso é contrário à interacção familiar e social», diz a psicóloga. Se, para além disto, os pais não se mostram disponíveis para a criança, no sentido de lhe explicar os conteúdos que ela vê, a tendência recai naturalmente sobre o visionamento desmesurado e desconexo de programas.

A criança acaba por ter o mundo no quarto, mas é o mundo das coisas, não tem o mundo afectivo. Os mais novos necessitam de estabelecer relações afectivas para aprender a relacionar-se com a sociedade, e sem estes laços de ligação com os outros torna-se difícil a integração e o contacto com o meio social. «Para a criança «é muito mais fácil o relacionamento com uma coisa que não interage com ela do que com uma pessoa, porque há muito mais níveis de frustração e de insucesso» refere também. Assim, a televisão apresenta-se como uma companhia excelente, porque se os próprios pais a usam como um entretém e não como uma aprendizagem, a criança vai fazer o mesmo.

Tende-se a pensar que os telespectadores são mais influenciados pela razão, mas a verdade é que a maior influência é exercida sobre as suas emoções (e ainda mais no caso do público infantil que não tem a parte racional totalmente desenvolvida). Outra tendência é pensar que só somos influenciados por conteúdos dos quais temos consciência, no entanto, os principais efeitos que a televisão exerce sobre nós são inconscientes e inesperados.

O que as atrai


Sabe-se que as crianças se identificam com as personagens dos desenhos animados e das novelas que vêem porque apresentam-se como seus semelhantes. Outro aspecto atractivo é a violência. Ontem a violência provinha das guerras e passavam semanas até que a notícia chegasse… Hoje a violência está à distância de um comando de televisão.


Vários estudos demonstram que as crianças envolvem-se muito mais com conteúdos televisivos violentos e agressivos do que com os mais calmos. Quer a violência real (dos noticiários) quer a ficcional (dos desenhos animados e filmes) produzem dependência em doses equivalentes. Ambas permitem à criança descarregar os seus próprios impulsos agressivos ao mesmo tempo que, no aconchego do lar, se sente protegida dessa mesma violência.

A exposição frequente à violência televisiva (presente na informação e no entretenimento) favorece o aparecimento de comportamentos anti-sociais, em audiências particularmente desprotegidas, como é o caso dos mais novos. Pode ainda levá-los a desenvolver a aprendizagem de atitudes violentas.

A publicidade é outro dos aspectos que prende os telespectadores mais novos ao ecrã: a publicidade modela e é uma influência persuasiva para o público infantil, mais vulnerável à recepção destas mensagens unívocas sobre o mundo. Deixam-se cativar por sugestões perfeitas e acabam quase a obrigar os pais a comprar o que a televisão lhes sugeriu. Começa por ser um deslumbramento e acaba quase na crença convicta de que tudo o que é mostrado na televisão é que é bom, tudo o resto simplesmente não existe ou não presta.

É assim que, diariamente, a “chupeta electrónica”, assim lhe chamam os educadores dos anos 60, hipnotizam milhões de crianças diante do televisor. Roberto Kubery, director do Centro de Estudos dos Média da Universidade de Rutgers, nos EUA, explica que “a televisão não tem nada de doença, mas se a pessoa já não consegue delimitar quanto tempo vai ficar a vê-la e troca a vida social por esse hábito, aí sim tem que começar a preocupar-se”.

Mais de metade das crianças entre os seis e os 10 anos senta-se em frente à televisão sem saber o que vai ver, o que denota um vício pela televisão e não pelos conteúdos televisivos. Afinal quem tem o comando? Os mais novos, que estão constantemente a fazer zapping, ou os programadores televisivos, que sabem como os seduzir?

A televisão anula a capacidade de criticar e desenvolve estados de apatia, passividade e falta de concentração. Na sequência disto geram-se situações preocupantes de insucesso escolar, insónias, fadiga visual e tendência para o isolamento. Estes aspectos em nada favorecem a sua cultura e, muito menos, o desenvolvimento das suas aptidões e dos seus juízos individuais.

Solução


A maioria das crianças não tem espírito crítico, pois não lhes foi desenvolvido. Nesse sentido, os mais novos são expostos com frequência a realidades que não conseguem perceber mas aceitam. A solução passa pela redução do número de horas a ver televisão e pela introdução, por parte dos pais, de regras e espaços de diálogo sobre o que é transmitido.


É certo que as crianças são receptores passivos expostos à manipulação mediática mas, se for bem vista, a televisão contribui grandemente para ajudar as crianças a legitimar modelos do mundo e a construir a significação da realidade. No fundo, elas sabem que ninguém sangra nem morre nos desenhos animados e, se alguém fica esburacado de tiros, volta ao normal na última cena. Contudo, é preciso estar atento e nunca deixar que se ultrapasse a barreira da certeza de que aquilo é ficção, caso contrário a dependência torna-se alarmante. A psicóloga Catarina Neves conclui que «se a televisão não for em demasia nem de forma desmesurada, pode até ajudar a criança a integrar-se na sociedade, sem ter necessariamente de a tornar teledependente nem de isolar do mundo físico».

Não podemos responsabilizar a televisão por todas as mudanças sociais. É necessário educar as crianças no seu uso cultural, principalmente no que se refere a desenhos animados, ajudando-as a ser exigentes e selectivas. É importante que desenvolvam uma atitude de imunidade à dependência, através do acompanhamento e controlo por parte dos pais e educadores, porque nem toda a programação infantil é de má qualidade.
O caminho a seguir, para combater a dependência, passa por saber seleccionar o que queremos ver e fazer da televisão um estímulo à educação da comunidade, que actualmente a usa para matar o tempo… e a cultura.

* Anos 80

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quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Haja dignidade

Após a inauguração em Lisboa, pela Amnistia Internacional e a FecoPortugal, estão patentes ao público no Museu Etnográfico da Lousã, por iniciativa do "Trevim" e apoio da Câmara local, mais de 20 desenhos de autores portugueses (alguns publicados, com autorização, em baixo) em mais de cem de cartunistas de cerca de 30 países - artistas de quatro continentes que na Exposição Internacional de Cartoon denunciam a crise da dignidade humana: ambição desmedida, egoísmo, abuso, crueldade, corrupção, humilhação, exploração, fome e miséria de todo o género e em qualquer lugar.


Selecção Dina Cristo

Ernesto Silva

Carlos Brito
Jorge Rodrigues
César Évora
Paulo Fernandes
Hermínio Felizardo

Zé Oliveira

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quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Liberdade de imprensa?


Próximo do Dia Europeu dos Direitos dos Jornalistas, Sexta-Feira, enfrentamos a relação, longa e íntima, entre o bloqueio e o fluxo informativo, o como e o porquê da resistência geral à novidade.

Texto Elton Rodrigues Malta cartoon Zé Oliveira

A censura e a imprensa sempre estiveram ligadas, ainda que nuns momentos mais e noutros menos. Apesar de parecerem ser inseparáveis, dedicam-se à exterminação uma da outra.
É inegável que o controlo e repressão da literatura ao longo dos tempos contribuiu para o atrofio e atraso do jornalismo português relativamente ao estrangeiro. Tal como este, há muitos outros aspectos negativos, nomeadamente os massacres e até mortes. A censura também vem colocar a população num estado de ignorância perante o qual não consegue agir.
Mas num primeiro passo há questões sobre as quais devemos reflectir:
Até que ponto é que sabemos dar uso à liberdade que temos? Seremos suficientemente respeitadores para sabermos viver sem censura, sem um controlo e sem leis? Será que sabemos usar essa liberdade sem a tornar num poder com o qual combatemos a liberdade e espaço do outro?
Tal como o dia e a noite, sendo a liberdade e a censura opostos, são inseparáveis. Como afirma Platão “os opostos são dois corpos unidos por uma só cabeça”. Desta forma, pode haver muitas mudanças nas leis mas, sempre que houver uma tendência em excesso para um dos extremos, tem de haver uma regulação externa que equilibre e faça pender, com igual força, para o outro extremo de forma a encontrar o centro.
O ser humano naturalmente resiste à mudança, devido ao forte comodismo que o caracteriza, portanto é compreensível que desde sempre tenha havido censura às ideias que vinham abalar a estagnação das sociedades. A própria população se sente atacada quando surgem novas correntes ideológicas. É recíproca a influência que imprensa e sociedade exercem. Desta forma, e tendo em conta a pouca vontade de mudança, a censura passa a ser necessária. Não que seja o caminho do progresso. Mas é o caminho que a maioria, através dos seus comportamentos, decide seguir.
Hoje em dia a censura, entre outras, é conseguida através do agendamento, não havendo liberdade para o jornalista escolher temas nem para o público escolher o que consome. Numa sociedade dita democrática (num extremo, em que se reivindica direitos e menospreza os deveres, obediência e ordem), não será também uma das formas de censura mais evoluídas e bem sucedidas?
Falta referir ainda o outro método: a sobre-informação. Com ela não só se distrai as pessoas que não sabem o que querem saber como se despista quem sabe o que quer, mas que se perde no meio de tanto lixo.
Um terceiro processo é a auto-censura, dirigida ao pensamento próprio. Esta, no nosso meio, é promovida pela exclusão social. Censuramos a censura, contudo censuramo-nos a nós próprios. Já não precisamos que ninguém nos proíba, nós tratamos disso.
Até o jornalista está impedido de ser livre devido à sua intenção de ascensão social. Não podia deixar de lembrar do caso de Mário Crespo e Manuela Moura Guedes. Não se pode censurar temas de interesse do público, mas temas importantes que não dêem lucro e temas de interesse público sim. Mas felizmente vivemos numa democracia na qual há liberdade de pensamento e expressão. Só é pena sufocá-la com a distração.

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