quarta-feira, 28 de maio de 2008

Ver rádio

Nas vésperas de mais um aniversário de “A menina da rádio”, olhamos para a imagem da telefonia neste filme.

Texto Luís Manuel Martins

O filme “A menina da rádio”[1], um dos clássicos do cinema português, foi realizado em 1944, por Arthur Duarte, sob a chancela da Companhia Portuguesa de Filmes. Esta produção cinematográfica trouxe pela primeira vez a rádio para o grande ecrã, consagrando-a como um meio de comunicação cada vez mais importante. A Emissora Nacional (EN), estação pública de radiodifusão, havia nascido em 1 de Agosto de 1935 e começava agora a criar um público cada vez mais fiel, que ouvia com agrado as emissões. A envolvência e a familiaridade que os locutores despertavam junto dos rádio-ouvintes eram tão grandes que, por vezes, havia quem se deparasse a criar imagens mentais da fisionomia das grandes vedetas que falavam “ao microfone”. A “Menina da rádio” vem desfazer os equívocos e as imagens estereotipadas que os portugueses haviam criado sobre o novo meio radiofónico.
Os anos 40 constituíram o maior período de expansão da rádio em Portugal. Os seus receptores ocuparam um verdadeiro lugar de honra nos lares dos portugueses, servindo de companhia e de fonte de entretenimento. A rádio tornou-se um elemento aglutinador para as famílias, que passaram a estar mais vezes reunidas a escutar as suas estações preferidas. Foi também na década de 40 que os comerciantes atraídos pela potencialidade que a rádio tinha para oferecer, a nível da publicidade, começaram a anunciar os seus produtos.
Os conteúdos radiofónicos eram muito variados e incluíam espaços de informação de carácter geral, noticiários, programas políticos e música. A programação musical ocupava um lugar de grande destaque. O filme “A menina da rádio” dá a conhecer o advento das grandes orquestras radiofónicas, que actuavam nos estúdios das emissoras, em directo e ao vivo. Os anos 50 viriam a dar lugar ao espectáculo radiofónico, realizado por gente do teatro, do cinema e das artes em geral, onde se destacavam jornalistas habituados a escrever peças para o teatro de revista, argumentos de cinema e textos publicitários para os jornais e para a rádio.
“O chefe de casa, que geralmente está ausente, passando o tempo por locais nem todos recomendáveis, descuidando o lar monótono, atraído pelo ruído e pelo movimento que encontra fora dele, começa a fazer nova vida. Quando não põe o aparelho a funcionar enquanto janta, fá-lo depois, deixando-se ficar em casa”, referiam Fausto Gonçalves e Pereira Machado em 1939. “A menina da rádio” mostrou ao país um fragmento real das actividades radiofónicas, preconizadas por conhecidíssimos colaboradores da Emissora Nacional, estação que surge no filme com o nome fictício de Rádio Lisboa. Assim, Jorge Alves, distinto locutor da EN, dá-se a conhecer ao grande público, agora não só pela sua voz firme e colocada, como também pela sua estatura alta e elegante.
No sentido da representatividade do locutor, enquanto profissão equiparada ao jornalismo, Isabel Travancas escreveu no seu artigo “O Jornalista Como Personagem de Cinema” que “a indústria cultural e particularmente o cinema são um campo privilegiado de produções simbólicas e mitos modernos”, considerando que a chamada sétima arte tem “lugar de destaque na modernidade”. A autora defende que “a linguagem cinematográfica transmitiu o impacto das transformações sofridas neste século [Século XX]” e refere que “o cinema com o seu enorme poder de penetração nos mais diversos grupos sociais ajudou a construir mitos, a divulgar saberes novos, como a psicanálise e a popularizar actividades e profissionais, como foi o caso da imprensa e dos jornalistas”.
Isabel Travancas deixa no ar uma interessante afirmação, seguida de uma pergunta: “É possível afirmar que o cinema colaborou com a construção de uma imagem, ou melhor, de algumas imagens do jornalista; representações que certamente influenciaram na escolha profissional de futuros repórteres. Quantas carreiras jornalísticas não devem ter nascido no «escurinho» de uma sala de cinema?”
“A menina da rádio” permite entender esta reflexão de Isabel Travancas no seu sentido mais lato, uma vez que foi muito bem aceite pelo grande público, não tanto pela crítica. Podemos mesmo falar de um fenómeno mediático, nunca antes visto em Portugal, que se prendeu com o facto de, na fase de pré-produção do filme, não se ter encontrado rapidamente uma protagonista para o papel principal. Depois de uma longa espera, alimentada por rasgos de algum sensacionalismo da imprensa da época, a escolha acabou por recair sobre Maria Eugénia, uma jovem talento, com apenas 16 anos de idade. Este foi um factor que acabou por pesar no retumbante sucesso de bilheteira, proporcionado por um público ávido de contactar com algumas das suas maiores estrelas do teatro e da rádio.
Imagem ou realidade?
Uma análise de imagem mais pormenorizada de certas cenas isoladas deixa igualmente uma dúvida. Será que o filme pode ser considerado um documentário? Manuela Penafria, no seu artigo “O documentarismo no cinema”, considera que a base de um filme documentário é “o registo in loco dos acontecimentos do mundo e da vida das pessoas”. Neste sentido, este filme adquire em certas cenas um certo pendor documentarista, que favorece a percepção da imagem, devido à contextualização, que apresenta, a nível do texto narrativo.
Michel Tardy considera que “a pedagogia das mensagens visuais não pode deixar de ser, primeiro, uma reflexão sobre a verdadeira natureza da imagem e sobre as suas coordenadas ontológicas. Discute-se interminavelmente sobre os seus conteúdos e a sua beleza eventual; mas o essencial que é examinar o seu próprio ser, fica esquecido. Ora, a imagem não coincide com a realidade que ela representa. A sua transparência não passa de uma opacidade camuflada: ela tem a inocência dos hipócritas. Entre o elemento indutor, a realidade, e o elemento induzido, a imagem, interpõe-se toda uma série de mediações que fazem com que a imagem não seja restituição, mas reconstrução da realidade”.
O autor, na sua obra “O professor e as imagens”, afirma que estas não constituem um mundo paralelo, mas um segundo mundo, com suas características próprias e suas leis específicas. A imagem é sempre alteração, voluntária ou involuntária, da realidade. A alteração voluntária não é, aliás, a mais significativa, porque resulta numa falsificação e remete para a suposição implícita de que se trata apenas de uma questão de honestidade; restaurada esta, o problema desapareceria. Ora, faça-se o que se fizer, a imagem sempre coloca em jogo processos de derivação; ela é, por natureza, e não de modo contigente, deformante”.
O filme, apesar do seu carácter eminentemente cómico de situação, proporcionado por actores emblemáticos como António Silva, Maria Matos e Ribeirinho, adquire em certos momentos a visão aproximada de um documentário. Isto porque demonstra a preocupação de veicular uma imagem positiva do potencial que a rádio tem para oferecer. É este, sem dúvida, o vector da narrativa, omnipresente ao longo de todo o filme. Igrejas Caeiro considera mesmo que a película “consegue retratar” a imagem das grandes estações de rádio nacionais, tal como a Emissora Nacional, em contraste com as pequenas rádios de bairro, das quais fazia parte o projecto de Cipriano Lopes (António Silva), com a criação do Rádio Clube da Estrela.
Segundo o antigo locutor da Emissora Nacional, «Havia exactamente várias rádios. As rádios formais, mais completas, e outras pequeninas. É esse trabalho que aparece no filme. É a rádio da rua, do sítio. Havia várias, não só em Lisboa, mas também no Porto. Havia rádiozinhas dessas. Rádios pequenas. Antes ia tudo à censura. Não passava nada. E coisas com que nós ríamos, porque não tinham pés, nem cabeça. Bem... Aí havia uma possibilidade de comunicar de outra maneira. Aquilo era uma piada, era uma graça. E há certas graças que convinham ao movimento de então. Há coisas que lhes davam jeito. Parecendo que estavam a dizer, agradava-lhes que isso fosse dito. De uma maneira geral, esse tipo de filmes não tinham assim grande forma de... [ser censurados]. Eram aceites”.
Em comentário no DVD, Igrejas Caeiro declara: “Aquilo era muito fácil para as pessoas, era muito agradável e deixavam que as coisas passassem. Foi muito interessante. As pessoas gostaram de ver. Porque já havia aí o interesse pelos artistas. Aqueles de que se gostava mais. E vê-las num filme assim foi agradável. Agora, a propósito dos filmes portugueses, embora muito bons do ponto de vista fácil, de agradável, de comunicante, os críticos davam cabo desses filmes. [Diziam que] aquilo não era cinema, que não era isto, que não era aquilo... Agora, passados tempos, passam-se esses filmes e toda a gente fica... Mas que cinema extraordinário que havia nessa altura!”.
“Alô, alô! Confeitaria Bijou da Estrela. Especialidade em doce de ginja, merengues, pudins e compotas. É aqui que se fabricam as afamadas broas de noz e os célebres rebuçados para a voz (tussindo). Serviços para casamentos e baptizados. Copos de água aos domicílios”. Assim começa Ribeirinho, empregado da Confeitaria do Sr. Lopes, a “ladainha” publicitária, que ganhava agora notoriedade no espaço radiofónico e induzia no público-alvo o desejo de comprar os mais variados produtos.
Neste aspecto, o filme é absolutamente fantástico. Ele retrata fielmente, a necessidade sentida pelo Sr. Lopes de mobilizar a vontade de um grupo de notáveis comerciantes do Bairro da Estrela, em Lisboa, para o seu novo e visionário projecto radiofónico, onde todos haviam de lucrar, uma vez conseguido o retorno dos investimentos em publicidade. Rosa Gonçalves (Maria Matos) encabeçava o rol de incrédulos e eternos rivais de Cipriano Lopes. Ela era na verdade uma personagem detestável, que Cipriano acusava de “querer calar a boca ao progresso”.
Na verdade, António Silva, quer no cinema, quer na sua vida do quotidiano, era um grande entusiasta da rádio. Uma das suas grandes preocupações era a necessidade desta constituir um meio de formação eficaz para as pessoas. O rádio-receptor, a torneira que, segundo ele, se abria e “jorrava música”, devia informar, mas também formar. Já agora porque não... divertir? Sem rodeios, preconizava que os que não tivessem aproximação às emissões se tornariam verdadeiros “analfarádios”.
A fita teve um grande sucesso na sua estreia, contudo a imagem que os críticos de cinema retiveram foi a de um filme insípido, demasiado fácil de ver. Ora, por vezes, o segredo do sucesso está na simplicidade. Dava-se ao público o que ele gostava, atendendo obviamente às especificidades e exigências das comissões de censura, que não perdoavam o mínimo deslize aos propósitos originais de “Servir a Pátria”, exigidos aos realizadores de cinema portugueses. Tudo tinha de ser feito “A Bem de Portugal” - a velha máxima do Estado Novo. Face à necessidade de captar um vasto auditório de ouvintes para a Emissora Nacional, ter-se-á servido o Estado deste filme, como estratégia de propaganda? É uma pergunta que fica no ar, com pertinência, creio.
Imagem ou imaginação
O sentimento de pertença e a familiaridade dos ouvintes com as emissões era muito grande, na década de 40. Há uma passagem maravilhosa ao nível da compreensão deste fenómeno, que é aquela em que Maria Eugénia se encontra a ouvir rádio com a mãe, escutando Fernando Verdial (Fernando Ribeiro) a cantar na Rádio Lisboa. Nesta cena, a menina da rádio, embebida pela envolvência do som, imagina-o como um televisor. A suspirar, afirma que a imagem mental que tinha daquele cantor da moda “parece um sonho”. A mãe (Maria Olguim), logo de seguida, retorquiu dizendo: “parece mas é bruxedo. Some-te!” [Benzendo-se]. Por aqui é fácil observar que certas pessoas ainda não estavam habituadas nem aos novos avanços tecnológicos, nem à nova forma de fazer rádio, já longe das primeiras experiências radiofónicas amadoras portuguesas dos princípios do século XX.
A filosofia de trabalho, baseada na persistência e na auto-formação, era praticamente a mesma. No entanto, investia-se crescentemente em bases mais sólidas de formação técnica e tecnológica dos colaboradores do meio radiofónico. Afinal eram estes que permitiam a transmissão de uma mensagem perceptiva e cultural, tal qual o modelo preconizado por Roland Barthes. A rádio povoava o imaginário colectivo. A própria palavra “imaginário” está relacionada com as imagens mentais que se criam por indução. A manipulação da realidade, ou a manutenção dos seus pressupostos, vai levar a que se gerem, ou não, imagens mentais fidedignas ou adulteradas do seu sentido original.
Para Martine Joly, o binómio Imagem/imaginário gera relações de complementaridade entre imagens e palavras, que reside no facto de “elas se alimentarem umas às outras”. Segundo a autora, “não existe qualquer necessidade de uma co-presença da imagem e do texto para que este fenómeno se verifique”, já que “as imagens engendram palavras que engendram imagens, num movimento sem fim”. Esta visão de Martine Joly está bem patente no filme “A menina da rádio”, já que o seu visionamento remete sempre para uma relação analógica e multiforme, de reconhecimento da realidade representada.
Voz e palavras
Manuela Penafria presta igualmente um contributo valioso para a compreensão deste filme, através do seu artigo “Ouvir imagens e ver sons”, apresentado nos VII Encontros de Cinema Música(s), realizado em Dezembro de 2003, no Cine Clube de Faro. A autora considera, antes de mais, que “a teoria cinematográfica tem estado algo arredada em estudar o som como elemento expressivo e fundamental dos filmes”.
A autora refere que o som pode ser de diferentes tipos, citando o de ambiente, os diálogos, a música, a locução (voz off) e os ruídos. Assim, falar de som em cinema implica “afastarmo-nos de um discurso que considera que o mesmo se dirige ao ouvido (assim como considerarmos apenas que a imagem se dirige ao olho)”. Imagem e som exercem assim uma acção complementar que favorece, ou não, a criação de ideias, crenças e valores, acerca da realidade que está a ser representada por via da transposição para o cinema.
Manuela Penafria menciona ainda no seu artigo que “com a introdução do som directo foi possível dizer-se que havia uma relação directa e linear entre a realidade e a sua representação. Entrevistas de rua e som ambiente enquanto parte integrante da realidade foram incluídas nos filmes. Mas, como sabemos, esse projecto de representação fiel da realidade foi mais um projecto de entusiasmo que efectivo”. Ainda segundo a autora, “quando a matéria da representação são imagens, estamos afastados do objecto representado, em especial, por questões estéticas (escolha de ângulos, enquadramentos, etc.), o que não permite essa relação linear com a realidade.
Através desta primeira abordagem, facilmente se perceberá a sua aplicação ao caso d’ “A menina da rádio”. Na verdade, em muitas cenas do filme são precisamente os momentos sonoros, que permitem que a sua visualização se torne inteligível, favorecendo a criação de uma imagem uniforme do meio radiofónico retratado. A imagem perceptiva que se tira de um filme fica muito a dever ao som, mais do que à imagem, em certas situações.
Arlindo Machado, no artigo “O fonógrafo visual”, afirma que há uma terminologia bastante desenvolvida na área da imagem, a nível, por exemplo, da profundidade de campo e enquadramentos, enquanto que para o som não se passa o mesmo. O autor considera ainda que quase sempre as discussões sobre o cinema partem do princípio que este é apenas um fenómeno visual, deixando de parte a componente sonora que, ou não é referida, ou é tratada marginalmente.
Importa citar as palavras reveladoras do realizador Pedro Sena Nunes, incluídas na sua retrospectiva, numa Edição do V Festival Nacional de Vídeo de Ovar: “Eu não consigo imaginar ou suportar um documentário em que não se sinta a escuta. Se quem fica do outro lado não está a ouvir, o objecto já não é um documentário. Se há definição possível de documentário será porventura essa: saber ouvir. E não é ouvir para registar. É saber que, para registares um bocadinho, muita coisa tem de ser ouvida”.
A nível de som e de escuta, não nos podemos alhear da grande popularidade das várias canções lançadas no filme “A menina da rádio” como, por exemplo, a canção “Sonho de amor”, da autoria de Silva Tavares. A música povoou assim o imaginário dos ouvintes e espectadores de cinema, muito para além do momento em que contactaram com o grande ecrã, o que contribui para a compreensão do fenómeno de proximidade que o filme “A Menina da Rádio” desencadeou.
Conceito
“Uma representação da realidade (física, como uma fotografia, ou imaginária, como uma música). Elemento essencial da comunicação de massa, desde que a fotografia entrou na imprensa e sobretudo desde que a televisão a aliou ao som e ao movimento. Sendo polissémica (passível de ter vários significados) necessita do texto (escrito ou verbal) para esclarecer o seu sentido. Mantém uma relação analógica com a realidade e, como sublinharam os semiólogos, tem duas leituras, uma denotada (o que representa de facto) e outra conotada (o seu valor simbólico, o que evoca além do que representa e depende do leitor). «O espectador da imagem recebe ao mesmo tempo a mensagem perceptiva e a mensagem cultural», afirmou Roland Barthes”
[2].
Martine Joly considera que “o termo imagem é tão utilizado, com todos os tipos de significados sem ligação aparente, que parece muito difícil apresentar uma definição simples e que abarque todas as maneiras de a empregar”
[3]. A autora reconhece que nós “compreendemos que ela [a imagem] designa algo que, embora não remetendo sempre para o visível, toma de empréstimo alguns traços ao visual e, em todo o caso, depende da produção de um sujeito: imaginária ou concreta, a imagem passa por alguém, que a produz ou a reconhece”.
A imagem “longe de ser um flagelo contemporâneo ameaçador, é um meio de expressão e de comunicação que nos liga às tradições mais antigas e mais ricas da nossa cultura”, explica Martine Joly. Para a autora, a sua leitura, mesmo a mais ingénua e quotidiana, mantém em nós uma memória que apenas exige ser um pouco estimulada para se tornar num utensílio mais de autonomia do que passividade”. Neste sentido, a compreensão de imagens necessita do recurso ao contexto da comunicação, à historicidade da sua interpretação e às especificidades culturais.
O cinema, como processo de sequencialização fotográfica, torna inteligíveis as palavras de Roland Barthes a propósito da fotografia. Barthes considera que o que faz da fotografia “uma imagem fundamentalmente diferente das outras imagens: é a dupla conjunção de realidade e de passado que ela propõe – aquilo que ela representa esteve ali. É aquilo a que Barthes chamou «isto foi». Será que: “Uma imagem vale mais do que mil palavras”? Arriscaria dizer que sim.
Independentemente de qualquer abordagem a nível de análise da imagem cinematográfica e da estruturação de uma imagem mental uniforme do meio radiofónico, o filme “A menina da rádio” é um excelente ponto de partida para a afirmação de um progressivo interesse pelos artistas, por parte do público, o que demonstra a instituição de valores culturais e de culto pelos personagens mediáticos da época. Para além disso, a vertente didáctica de construção da linguagem radiofónica e da estruturação programática dos novos conteúdos, próxima do grande público rádio-ouvinte e cinéfilo, cruza-se com a popularidade de locutores consagrados, equiparados a jornalistas, cantores, actores e colaboradores da rádio que, no seu tempo, souberam engrandecer a profissão que abraçaram. A todos eles se deve o sucesso do filme, a eles se deve a inspiração do meu trabalho.

[2] CASCAIS, Fernando - Dicionário de Jornalismo – as palavras dos media. [3] JOLY, Martine - Introdução à Análise de Imagem.

Etiquetas: , ,

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Silenci(ament)o


No Dia Mundial da Comunicação, falamos de silêncio, a condição para a sua existência. Partimos de algumas ideias presentes em “Silêncio e Comunicação”, um livro de Tito Cardoso e Cunha editado, em 2005, pela Livros Horizonte.

Texto Dina Cristo

O silêncio é não só uma condição ao processo (e sua eficácia), como uma forma de comunicação, com sentido denso, relevante e interpretável. Sem este elemento paralinguístico não existiria o espaço de escuta, necessário à reciprocidade de uma verdadeira conversação, memória e interrogação acerca do que fora dito. É a mais sublime forma de organização sonora.

Há dois tipos de silêncio muito distintos: o silenciamento, o “tacere” (informativo), o calar-se, a privação súbita da fala, que se retém; o querer expressar-se mas não se poder ou dever por medo, obediência, submissão, censura, repressão, recalcamento, rigidez. Trata-se de uma opacidade, desde a ignorância (ditatorial) à superficialidade (democrática), que oculta a verdade dolorosa que, por isso, se pretende evitar, esconder, resistir, recusar, desprezar ou dissimular, numa atitude de hostilidade ou reforço do poder autoritário, como um instrumento de hierarquia, que nega o direito do outrem a saber, ou de ignorância do “outro”, a verdade pessoal ou social assim “esquecida”.

Bem diferente é o silêncio, o “scilere” (comunicativo), o estar silencioso, sem falar (porque nada há de relevante para dizer), o estar calado, ma(i)s disposto a ouvir, que indica sabedoria, profundidade, tranquilidade, paz, verdade. Trata-se de um silêncio ecológico: pode expressar-se, mas opta-se livremente pela contenção da palavra a fim de a poupar e proteger de um uso excessivo. É assim que na sociedade tradicional, onde o silêncio é de ouro, é tido como um bem escasso que urge reter e economizar, sobretudo ao nível dos nomes. Temos o caso dos Espartanos (na Grécia prestava-se culto a Muda, a deusa do silêncio), Apaches e Nórdicos.

O silêncio no sentido geral é uma espécie de ponto morto, um tempo de espera (para o qual é preciso ter prudência e paciência), uma pausa, suspensão, prelúdio, um espaço (de questionamento e escuta que permite a conversação e o aprofundamento da interacção) de autenticidade, verdade, não só inaudível mas também invisível, associado à leitura e ao olhar. É também o que escapa ao discurso, o que fica por dizer, devido às limitações das palavras, da linguagem verbal - o inefável, o que haveria para dizer mas não se consegue exprimir. O silêncio, ao contrário da fala, do som, da linguagem, da palavra, do logos, que indicam separação e diferenciação, permite-nos a fusão e indiferenciação, a união, o caos inicial que é a suprema harmonia; é eminentemente humano, implica consentimento, aceitação, respeito, solidão e neutralidade. É considerado uma actividade com diferentes gradações e funções (como a activa, afectiva, cognitiva e comunicativa).

Espiral de ruído

Nas sociedades contemporâneas, depois dos silenciamentos devidos às imposições, perseguições e manipulações políticas, religiosas e comerciais, há hoje uma tendência para à dor da censura contrapor o prazer da verborreia, incontinência verbal vivida com(o) um certo erotismo oral. Prolifera, assim, a tagarelice, insignificante, redundante, imoderada, inautêntica, monólogo imposto que diminui a possibilidade da troca, numa verbosidade facilitada pela individuação. «A tagarelice não é dita para ser ouvida, o que ela revela é o facto de poder dizer-se. Daí que tenda a ser acolhida, não pelo silêncio, mas por uma igual intensidade tagarela numa espiral de ruído por fim mutuamente ensurdecedora».

O discurso é inerente à natureza da relação social, que é ela própria uma violação do silêncio. Ora a sua obliteração é ainda mais favorecida pela vida democrática, que exige publicidade, transparência, sendo no contexto político, considerado o silêncio um luxo, ilegítimo e autoritário. «Para um político, o que hoje em dia se torna verdadeiramente difícil é permanecer em silêncio sobre o que quer que seja (…) o que se quer silenciar tem de se ocultar sob o manto discursivo desviante da atenção (…) Para que um silêncio seja, mesmo assim sustentável, haverá que invocar algum dos princípios inatingíveis e suficientemente intimidatórios como por exemplo o “segredo de justiça” ou então o “interesse nacional”».

Também o individualismo concorre para eliminar o silêncio. «Numa sociedade em que a tendência é a de todos falarem, e falarem obsessivamente de si, só o profissional tecnicamente treinado para a escuta consegue manter o silêncio (…)».

Há como que um esforço colectivo para anular o silêncio (considerando-o anti-natural), facilitado pela tecnologia e fomentado pela indústria dos “media”, consumida como ruído de fundo e mera companhia virtual. «Porque se tem intensificado tanto, nas nossas sociedades, essa angústia do silêncio, provavelmente ela foi gerada pela própria expansão e evolução dos media cuja natureza ou lógica ou economia é incompatível com o silêncio (…). A abolição do silêncio, o seu impedimento compulsivo, resulta da estridência que é a razão de ser dos media num contexto de concorrência e tem por consequência o imediatismo irreflectido e reduzido à sua pura dimensão instintual».

Comunicação empobrecida

Na agenda, mediática, política e pública, reina o ruído em que se perdem dados, acelera informação irrelevante, num fluxo redundante, que perturba, diminui, impede e enfraquece a comunicação. «Tal como o urânio empobrecido das armas as torna mais eficazes na sua acção mortífera, assim também uma comunicação empobrecida a torna mais eficaz como arma de dominação ou manipulação».

A alternativa passa pois por ultrapassar primeiro este ruído (o externo, de que a Lei do Ruído é um incentivo, e o interno, nomeadamente o mental), depois o silenciamento (da dor, deixando-a exprimir-se até se dissipar) até atingir primeiro o silêncio e a paz que vem da dissolução natural do sofrimento, originada pela aceitação em vez da sua ocultação, até ao Silêncio Divino, as Trevas e o Caos, que são o verdadeiro Discurso total, Luz, Ordem e Som porque o «(…) homem cala-se, mas o silêncio é de Deus».

Ao silêncio dedicou a revista Cais o seu número 100, em Julho/Agosto de 2005, onde é elogiado: «Há que redescobrir pois a subtil comunhão e eloquência do silêncio. Como terapia também dos tempos que correm, onde a invenção da solidão e da distância nunca originou tantos frustrados meios de a tentar vencer, aumentando-a afinal. Onde nunca se investiu tanto na comunicação por incapacidade de comungar (…) esse espaço interior do silêncio onde a verdadeira comunicação, que dispensa pensamentos e palavras, se processa naturalmente. Sem o estorvo do ruído mental, materializado na logorreia mediática. Porque, como disse Agostinho da Silva: “[…] o que se tem de importante a participar, ou a comunicar, sempre as duas palavras no seu significado etimológico de fazer do outro uma parte de nós ou um comungante do que somos, isso se faz chegar e a nós volta, mais rico, muito mais pelo silêncio do que pela palavra, escrita ou falada”».

[1]. Crêem nesta atitude, que reforça no entanto o vínculo social, os atenienses (daí o êxito da oratória), meridionais e europeus.[2].[3]. Actualmente, é mais o discurso que visa a todo o custo evitar o temido silêncio do que o inverso. Um investimento, individual e colectivo, na negação ou recusa do silenciamento. E quanto mais discurso existir mais conflito haverá, numa espiral de ruído, desentendimento, frustração e incompreensão.[4]. Sobretudo os “media” audiovisuais vêm o silêncio como uma falha técnica, por isso eliminam as pausas, aceleram o ritmo, aumentando o ruído até ser ensurdecedor e anestesiar as sensações, emoções, cognições e aspirações, não sem o conteúdo ser reduzido a um discurso inessencial.[5]. Profundamente anti-comunicativo, o ruído, que é hoje permanente devido aos “backups”, confunde a mente e atordoa os sentidos, numa tentativa desesperada de evitar a dor da verdade que, assim, se pretende ilusoriamente mascarar. É, pois, uma resistência, um “charivari” social, numa encenação do caos, enquanto desorganização sonora.[6].[7][1] CUNHA, Tito Cardoso – Silêncio e Comunicação. Livros Horizonte. 2005, pág. 35. [2] Idem, pág. 61. [3] Idem, pág. 32. [4] Idem, pág. 47/48. [5] Idem, pág. 44. [6] Idem, pág. 42. [7] BORGES, Paulo – O silêncio do despertar in CAIS, Julho/Agosto, 2005, pág. 90/91.


Etiquetas: , ,

terça-feira, 20 de maio de 2008

Jornalismo (e) audiovisual IV


Após uma abordagem geral da imagem que o cinema projectou do jornalista, apresentamos hoje alguns dos exemplos mais ilustrativos de “newspaper films” das décadas de 30, 40 e 50.

Texto Dina Cristo

Umas vezes fria e distante com um ar crítico, outras amável e até condescendente, a imagem que o cinema projectou dos jornalistas resulta do modo como estes foram considerados pelos próprios cineastas, público e políticos, bem como do contexto social e económico de cada época: a grande depressão na presidência de Hoover, o programa de New Deal na de Roosevelt, a guerra fria nos anos de Truman, a caça às bruxas com MacArthur (que também afectou Hollywood), o assassinato de Kennedy, a guerra do Vietname, os casos Watergate e Gary Hart.
Mais feroz na década de 30/40 e 80 (a sua dependência em relação ao poder e o pouco respeito pela verdade) devido aos excessos dos jornalistas na vida privada, o cinema fez destes, contudo, alguns retratos elogiosos, dos quais o mais fiel representante será “All the president`s men”.
Primeiros passos
Desde o início da sétima arte, quando esta dava ainda os seus primeiros passos, que o jornalista foi ‘agarrado’ para personagem. Em 1903, “Delivering Newspapers” mostra um grupo de jornalistas aguardando a chegada de um camião com a última edição de um jornal. Na primeira década do século XX, eram habituais temas como a corrida ao furo jornalístico e a cobertura de casos relacionados com instituições de poder.
A década de 20 fica marcada pelo primeiro dos vários filmes de Capra que têm por tema o jornalismo. “The power of the press”, realizado em 1928, no final do cinema mudo, dá-nos uma visão clássica do personagem como herói de aventuras – no caso, um jovem repórter que se lança em busca de criminosos.
É durante a segunda década que são reconhecidas as possibilidades de história que a corrida contra a concorrência e o permanente interesse pelos factos oferece. Os filmes de jornalistas tornam-se um género apelativo; qualquer repórter, nomeadamente no seu carácter flexível, pode ser figura central de um filme e constituir o seu principal assunto. O estilo, esse, era neutro. Como escreveu Deac Rossel, o cinema dos anos 20 dá-nos a imagem de um jornalista íntegro, há uma certa ingenuidade ou até má vontade em conhecer os abusos do privilégio redactorial – exactamente o que vem a suceder nos anos seguintes.
Anos 30
O cinema da terceira década prima pelo social, um cinema de denúncia dos preconceitos do “yellow journalism” que então se praticava.
Segundo Howard Good, a década de 30 foi o período dos mais memoráveis “newspaper films”. “The front page” e “The five star final” traçaram dos profissionais da imprensa uma das visões mais cruéis. A esta perspectiva não será alheio o facto de ambos terem por base peças teatrais cujos autores haviam sido jornalistas. Hecht tomou como modelo inspirador para o jornalista Walter Burns, o seu antigo director de jornal Walter Howie, para quem recusou trabalhar uma vez. Louis Weitzenkorn baseia, de igual modo, a peça “The star final” na sua própria experiência no “York Graphic”.
A imagem mais clássica do jornalismo na ficção, uma das mais cáusticas que até hoje o cinema nos deu, uma das mais famosas e recordadas de todos os que retrataram o jornalista, “The front page”, é também um modelo dos “anti-press film”. Repórteres que não sabem o que se passa, inventam notícias e agem como crianças, personagens que são, na opinião de Joaquim Vieira, “(…) funcionários acomodados em troca de pequenos favores, ignorantes incapazes de um esforço intelectual, tarimbeiros prontos a distorcer a objectividade para rastejar a concorrência (…)”
[1].
Um filme em que, segundo João Bénard da Costa “(…) avulta o tratamento realista dado às telefonistas e às suas vozes perfazendo o “realismo social” tão ao gosto de Zanuck e da Warner de então”
[2].
“The five star final” transmite-nos uma mensagem de desconfiança nas altas esferas do jornalismo, obcecadas pelas tiragens do jornal e pouco profissionais na sua irresponsabilidade perante o público. É a denúncia de uma imprensa que desenterra um caso com 20 anos, no intuito de aumentar as vendas, provocando dois suicídios de pessoas cuja vida já estava naturalmente refeita. Implacável com os homens da imprensa, “The five star final” «retrata jornalistas viciosos e avarentos – como gangsters armados de máquinas de escrever»
[3].
Do mesmo ano, e sob a influência do “The front page”, Frank Capra realiza “Platinum blonde” – um filme onde ressalta a tentativa de moralização da sociedade e uma certa acusação da vida dos poderosos. Repleto de energia e vitalidade, Stew Smith, o jornalista pertencente à classe média, contrasta com o retrato snobe e caricato da família Schuyler, à qual chega a pertencer, mas que o vazio leva-o a abandoná-la. Na verdade, Stew, enquanto casado com a herdeira, nunca se rende às mordomias, escreve energicamente a sua história e mantém-se fiel às suas amizades. É o primeiro filme de Capra a tratar da crise social e da depressão. Para a história ficam também os diálogos de Robert Riskin – um dos vários dramaturgos e jornalistas que Hollywood foi buscar à Broadway no início do sonoro.
It happened onde night” é uma história em que o jornalista, “o melhor repórter da cidade”, se envolve com o objecto da sua reportagem, a desaparecida Andrews, e a protege (no início com o objectivo de realizar o grande furo jornalístico). Na redacção, a pressão, o stress e a rapidez com que as coisas se passam são uma boa aula de jornalismo.
They won`t forget”, na cumplicidade entre imprensa/poder político e denúncia do racismo, é um dos filmes mais característicos do cinema social americano dos anos 30. Brock, o jornalista, e Griffin, o promotor público, exploram o clima de histeria (provocado pelo linchamento que se seguiu ao assassinato de uma jovem na região sul) de forma a lançar a candidatura do segundo a senador. É um retrato da manipulação da opinião pública e de violação do direito à vida privada. O filme inspira-se num caso de discriminação racial ocorrido em 1913, relatado do livro “Death in the deep south”, de Ward Greene, e inscreve-se também dentro do cinema social da década de 30, de denúncia dos preconceitos e do jornalismo sensacionalista.
A imprensa, em “Mr. Deed goes to Washington”, de um homem simples, honesto, bom e solidário transmite a ideia de que se trata de um “cinderela man”, estúpido, anti-social e demente. Esta última acusação leva-o a tribunal, onde é julgado por tocar trombone, distribuir a fortuna que tivera ganho pelos pobres e dar “donuts” a cavalos. Exagerou-se, reconhece mais tarde a jornalista: “era tudo distorcido para parecer imbecil”.
Em “Peço a palavra” também marca presença a manipulação da opinião pública através do controlo de uma série de jornais que distorciam por completo a informação. Neste caso, os corruptos acabam por ceder à extrema perseverança de um homem que toma a palavra até não aguentar mais e cair estarrecido no chão.
Each dawn I die” (de 1939) mostra, como nenhum outro, os riscos da profissão. Um jornalista é encerrado numa penitenciária por ter descoberto o carácter corrupto de um candidato ao governador. Profissional em todas as circunstâncias, Cagney, mesmo preso, consegue conter-se, possibilitar a evasão e trazer o “scoop” para o seu jornal. Uma película que é uma mistura do filme de “gangsters” com o de prisões e de denúncia social, que aparece numa altura em que “(…) a economia já vê a saída do túnel da crise (embora outra se avizinhe)”
[4].

Anos 40
“Citizen Kane” e a segunda versão de “The front page” marcam a quarta década, preenchida com uma filmografia profusa.
Em 1940, Howard Hawks substitui o jornalista por uma mulher, imprime maior velocidade aos diálogos e faz “His girl Friday” uma das mais fabulosas comédias de toda a história do cinema. Caracterizada como muito humana no “Monthly Film Bulletim”, Hildy, a jornalista, é, no olhar crítico de João Bénard da Costa, um “animal perigoso” decidido a tirar da presa (o condenado à cadeira eléctrica) todos os proventos”
[5].
Conhecido pela revolução que provocou na linguagem cinematográfica, sobejamente discutido, e apreciado, “Citizen Kane” é provavelmente o filme de jornalistas mais famoso e o que melhor terá colocado a noção de manipulação da informação. Charles Foster Kane – um magnata, por puro capricho e depois de ter mandado construir um teatro, pressiona a sua mulher a cantar ópera, quando todos eram unânimes em relação à sua falta de dotes vocais. Kane não hesita um minuto em utilizar o seu monopólio de comunicação social para transformar as críticas iniciais – que diagnosticavam “incompetente amadora” – em grandes sucessos.
«A polémica nasceu do facto de ter constado que o “Cidadão Kane” era um retrato, em corpo inteiro, do famoso William Randoph Hearst, o “dono” de metade dos jornais da América. Welles defendeu-se: “O filme não se baseia nem na vida de Mr. Hearst, nem na vida de qualquer outra pessoa. No entanto, se Mr. Hearst e outros “tubarões” não tivessem vivido durante o período em causa CITIZEN KANE nunca podia ter sido feito”
[6].
A confirmação do correspondente de guerra como herói acontece com “Foreign correspondent” – um filme que é também uma história de espionagem durante a II Guerra Mundial. Jonnie Jones, um repórter de crimes e assassinatos, vai para a Europa, sob pseudónimo. No final, reporta, com vivacidade e sob a escuridão da rádio londrina, os factos mais importantes e dos quais foi testemunha: o assassinato do sósia, a prisão de Van Meer e o ataque aéreo ao qual sobreviveu.
O filme encontra-se entre as películas de “(…) propaganda antinazi que, por esses anos, com algumas precauções (a América ainda não tinha entrado na guerra) Hollywood fazia”
[7]. Diz-nos ainda João Bénard da Costa que a produção, efectuada no início da guerra, implicou a deslocação de duas equipas de filmagem à Europa para rodar exteriores na Holanda e na Inglaterra.
Em “Arise my love”, é uma jornalista, também correspondente de guerra, que sobrevive ao afundamento de um transatlântico. Testemunha do ataque alemão e perseguição aérea, ela está numa posição estratégica para reportar os acontecimentos. Nash, sempre determinada em nunca largar a “typewriter”, hesita na escrita, devido à paixão. O pano de fundo é a guerra civil de Espanha: «(…) estamos em Junho de 1939, na consolidação da vitória franquista e ao tempo dos “ajustes de contas” onde um pelotão procede a um fuzilamento»
[8], eis a cena inicial do filme narrada por Cintra Ferreira.
Reportagens de um correspondente de guerra, mas desta vez real – o lendário Ernie Pyle, cujas reportagens eram sobre as condições de vida dos soldados, mais do que as chefias políticas e militares – inspiraram “The story of G.I.Joe”, um filme próximo do documentário captado durante as operações. Por um lado, as imagens são dadas ainda durante o conflito, sem ser uma retrospectiva e sem qualquer romantismo, por outro lado, os figurantes eram homens do Quinto Exército: “O Departamento de Guerra cedeu 150 veteranos da campanha de Itália para o filme, antes de embarcarem para o Pacífico. Quantos deles não terão lá encontrado destino semelhante ao do filme em que participaram? (…)”
[9], questiona Cintra Ferreira.
“A dispatch from Reuter`s”, também sobre um jornalista com existência concreta (o fundador da agência de notícias e uma das primeiras personalidades dedicadas à causa informativa), enceta a fórmula da realização de biografias. Da infância ao trabalho nos correios até à sua primeira agência em 1849, o filme sintetiza em poucos minutos uma longa investigação sobre a vida do homem que, na Europa, foi o primeiro a noticiar o assassinato do presidente Lincoln.
Com toda a verdade nas mãos, o jornalista tem por dever transmiti-la, mas será que o poder e crise social o irão permitir? É esta a questão que fica no ar em “The keeper of the flame”; nesta película o repórter investiga a vida de um ídolo, descobrindo que não passava de um líder fascista disfarçado. “Houve ainda quem fosse mais longe e considerasse que se podia estabelecer um paralelo entre Robert V. Forrest, o herói morto, e o general MacArthur, então “alarmantemente popular”
[10].
Procurar a verdade além de divulgar notícias é a principal mensagem que nos deixa “Call northside 777”, um filme clássico de investigação jornalística, que é ao mesmo tempo uma síntese da imagem da tradição liberal em que o jornalista luta contra a injustiça e a corrupção. Graças ao carácter exaustivo da reportagem, o jornalista consegue, ao provar a inocência de um homem, libertá-lo da prisão onde permanecia há onze anos.
Ao apresentar uma investigação profunda sobre o sentimento anti-semita no “Deep South” americano, “Gentleman`s agreement” faz uma antecipação do novo jornalismo. Phil Green, o repórter, escurece a sua pele de forma a ser identificado como judeu e parte em viagem, onde é humilhado e alvo de indignidades e insultos. Na volta, está devidamente capacitado para explicar que significado tem a palavra ‘intolerância’ e ‘discriminação’. O filme, ao atacar frontalmente a questão do anti-semitismo na América, originou que “(…) muitos dos participantes nesta obra (Kazan, Hart, Garfield, Revere) foram “blacklisted” por McCarthy e tiveram as carreiras arruinadas ou ameaçadas (…)”
[11].
Em “It happened tomorrow”, o jornalista tem acesso hoje ao que vai acontecer amanhã. A sua fonte de informação, um velho arquivista, concede-lhe o jornal que vai sair nas bancas no dia seguinte. Incrédulo de início, o jornalista torna-se uma vedeta do “soop”, pois apenas tem de se antecipar aos factos e comprovar com os próprios olhos.
Grandview, uma cidade representativa da média comportamental dos cidadãos americanos, é alvo da cobiça de um jornalista, Rip Smith, que ali projecta fazer fortuna. Este “mathematical miracle” apresentado em “Magic town” vai adquirir interesse nacional e transformar-se num mar de gente.
No último ano da década, “All the king`s men” expõe uma imprensa que se deixa arrastar pelas aparências, perdendo a objectividade. Barden, o jornalista a quem coube a cobertura das eleições, torna-se demasiado próximo de um candidato. Stark, ao contrário do seu lema (honestidade, integridade e verdade), revela-se um político desonesto, corrupto e sem escrúpulos.
A personagem principal é inspirada na vida de Huey Long, governador do estado da Loisiana, que ganhou fama nacional pela sua demagogia. Stark – escreve João Bénard – é a encarnação duma certa imagem da América no fim dos “fourthies”, quando a propaganda contrária começou a pôr em causa o reino de bons sentimentos e boas vontades que fora a imagem do país projectada entre 1935-1945. «(…) em anos Truman, de “desrroseveltianização”, podia convir mostrar que nem tudo nesses anos fora tão idílico como se proclamava»
[12].
Anos 50
“Raras vezes o cinema encontrou olhar tão desapiedado e tão abissal, raras vezes a humanidade (…) foi olhada de forma tão rasteira e tão esmagadora”
[13]. São as palavras de João Bénard da Costa sobre o filme que, sem dúvida, marca os anos 50: “The big carnival” – uma das visões mais cruéis do profissional de informação, veiculando a ideia de que este vai a todo lado e faz qualquer coisa por uma história.
O jornalista, ao ver num “scoop” a oportunidade de fazer reviver uma carreira em curva descendente, oculta aos bombeiros o acesso directo a um homem soterrado numa fenda de uma caverna. O objectivo, ao prolongar deliberadamente o trabalho de salvamento, é aumentar o número de dias durante os quais podia reportar, em exclusivo, o estado da vítima que acaba por falecer.
Numa visão diametralmente oposta, “Deadline USA” leva a acreditar que o jornalismo é a melhor profissão do mundo, com Ed Hutcheson – o responsável pelo “The Day” – a lutar por uma imprensa livre. Naquela casa, preserva-se até à última edição o jornalismo de qualidade que, após dados comprovados por uma investigação, publica o caso de corrupção política na cidade. É uma história «(…) baseada no caso concreto da morte do jornal “New York World” exactamente pelos mesmos motivos que afligem o “The Day” do filme»
[14], ou seja, escassez de meios financeiros e uma crescente importância do papel da televisão.
Em “La dolce vita” sobressai, para além do jornalista, que participa mais na sociedade do que a divulga, o conjunto de repórteres fotográficos que se acumulam, atropelam e correm atrás das vedetas e protagonistas dos acontecimentos. Estão em todo o instante, em qualquer sítio, prontos a disparar a objectiva, das mais diversas formas e pontos de vista. Para além de incitarem à pancadaria (prato forte para fotos escaldantes), não hesitam em encenar: colocam os fotografados nas posições mais ridículas, pedem-lhes para voltar e repetir passos.
Há depois um conjunto de filmes: “Park Row”, um hino à liberdade de imprensa, mostra um pequeno jornal que defende, num meio dominado pelo sensacionalismo, princípios deontológicos; “Beyond a reasonable doubt” , que nos dá matéria para uma reflexão sobre a realidade e a aparência; “While the city sleeps”, a luta pelo poder num jornal; “Je plaide non coupable”, em que um jornalista faz a sua investigação inocentando uma jovem acusada de assassinato ou “The lawless”, onde a redacção de um jornal é completamente destruída e pilhada após a defesa nas suas páginas de um jovem perseguido.

[1] VIEIRA, Joaquim – Mr. Gutemberg goês to Hollywood, p.24. [2] COSTA, João Bénerd – The front page/1974. [3] GOOD, Howard, Op. Cit, p.70. [4] FERREIRA, Manuel Cintra – Each down I die/1939, p.1. [5] COSTA, João Bénard - His girl Friday/1940, p.2. [6] Idem – Citizen Kane/1941, p.2 [7] Idem - Foreign correspondent/1940. [8] FERREIRA, Manuel Cintra – Arise my love/1940, p.2 [9] Idem. - The story of G.I.Joe/1945, p.2. [10] COSTA, João Bénard – Keeper of the flame/1942. [11] Idem - Gentleman`s agreement/1947, p.2. [12] Idem – All the King`s men, 1949. [13] Idem – The big carnival/1951. [14] ANDRADE, José Navarro – Deadline USA/1952.

Etiquetas: , ,

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Vida(s) enquadradas

Fez na Sexta-Feira 78 anos. Chama-se José Ruy e desenha quadradinhos há mais de 60. Amadora, a sua terra natal, homenageou-o com uma exposição, no Centro Nacional de Banda Desenhada e Imagem (CNBDI). Segue parte de um texto escrito há mais de 20 anos, após uma conversa com o autor, quando ainda não possuía os actuais cinco mil originais de BD.

Texto e BD* Dina Cristo

A banda desenhada (BD) usa diversas “artes e manhas” que explicam o resultado final. Num primeiro passo esboça-se a lápis o desenho incluindo já pormenores para os quais foi necessário um trabalho de pesquisa. Pega-se depois na história que desejamos contar e faz-se o desdobramento do texto, o chamado “décapage”. A partir da espinha dorsal é possível fazer um cálculo preciso do espaço, atribuindo a cada história umas tantas vinhetas de modo a evitar, no final, apertar o texto, que não deverá ultrapassar metade da área disponível. Após estas operações, faz-se o desenho definitivo seguindo fielmente o esboço inicial. As falas e legendas devem ser sempre escritas à mão e não podem ser demasiadamente pequenas.
É desta forma que trabalha o mestre José Ruy, embora quando se iniciou nestas coisas de banda desenhada tivesse utilizado técnicas mais simples. De facto, as suas primeiras publicações foram no “Pagagaio”, quando tinha 14 anos. Na altura, fazia uns rabiscos coloridos com tinta da China, reproduzidos nos cadernos de BD, que tentam recuperar histórias antigas, dispersas por jornais e revistas.
A qualidade vai-se evidenciando nos seus posteriores trabalhos, tais como a biografia de Gutemberg, os elefantes em África, os Lusitanos, a invasão da Península, dos Romanos, o “Bobo” de Alexandre Herculano, a “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto. Trabalhou mais tarde para o “Tintim” da Bertrand e depois optou por temas didácticos, divulgando obras de grande vulto. Recupera temas históricos de autores portugueses, como os Lusíadas ou os Autos de Gil Vicente que, além de servir a disciplina de Português e facilitar o estudo dos alunos, incentiva à leitura.
“Homens sem alma” é já uma história de portugueses que aportam à costa de África e contactam com a escravatura negra. Em projecto está[va] a “História de Macau”, desde os relatos mitológicos até à passagem da administração para a República Popular da China. Para o efeito, o autor dispõe já de bastante material, inclusivamente o essencial, a observação in loco na Índia, China, Japão e - claro – Macau, onde captou todas as impressões objectivas. Esta é efectivamente a sua linha, aquela que tem por intenção contar apenas e somente a verdade, o que obriga a longos anos de investigação. Foram os casos dos Autos de Gil Vicente, em que foram pormenorizadamente estudados os trajes, a alimentação e outros costumes de há quatro séculos.
Sequência histórica
A história da banda desenhada reporta-se a um passado longínquo. Segundo a opinião de alguns historiadores, começou aquando das pinturas rupestres, onde se contavam cenas de caçadas em sequência. Mais tarde, estes desenhos são contornados com uma cor mais escura levando tinta no interior. Posteriormente, já nos séculos XIII e XIV aparecem, para além do habitual desenho, textos que são emitidos pelos personagens. Mas é efectivamente no séc.XIX que se dá o grande desenvolvimento da BD, começando a grande expansão da história aos quadradinhos como se conhece, isto é, editam-se os primeiros ensaios em jornal, já com balões que indicam a fala das figuras e o texto de suporte, como legenda.
Em Portugal foi Rafael Bordalo Pinheiro que iniciou esta arte, com publicações em jornais de carácter satírico como foi o caso da “Paródia”. Muito válidos foram os anos 30 e 40, altura em que o próprio Stewart Carvalhais se ocupa da banda desenhada. No entanto, quem realmente fez desta uma arte próspera foi Eduardo Teixeira Coelho, um homem que transformou todo o panorama nacional com a sua forma de trabalhar, séria. Chegava ao ponto de utilizar modelos vivos e tudo o que fosse susceptível de intervenção da BD era estudado directamente da natureza. De tal modo importante se apresenta a sua técnica que se transforma numa escola, da qual têm saído vários discípulos entre os quais José Ruy.

* Nos anos 70

Etiquetas: , ,

quarta-feira, 7 de maio de 2008

No calor do relato


Três anos depois da sua morte, e num mês em que completaria 60 de aniversário, evocamos o rei da rádio, a voz que emocionava Portugal. Sobretudo relator, mas também animador, como no programa da Rádio Comercial “No calor da noite”.

Texto Dina Cristo

«Havia três modos possíveis de se ver futebol: no estádio, na TV ou ouvindo o Perestrelo». Angolano, onde viveu até aos 27 anos, com ida ao Brasil, trouxe das terras quentes uma forma diferente de ser, estar, comunicar e relatar o futebol. Amava o que fazia e a sua entrega à profissão era de corpo e alma. Na voz veiculava o que o seu coração sentia.
«O desaparecimento das palavras de Jorge Perestrelo das ondas do éter é uma dor na alma de Portugal. Poucos deram tanta cor na rádio à vivência mundana da vida. Destacou-se no desporto. Mais valia ter a televisão sem som e ficar a ouvi-lo (…) Com o sangue de África à flor da pele. Aprendemos a vibrar com o desporto com este senhor da rádio. Podia ser polémico. Ter um mundo próprio. Gostar de muamba e feijão com óleo de palma. Mas só quem nunca comeu o milho de Angola pode duvidar do seu gosto», redigiu Filipe Rodrigues da Silva.
Filipe Moura sublinhou: «Ninguém, mas ninguém, se lhe equiparava. Os momentos em que começava a mandar vir com os jogadores eram carismáticos, verdadeira transmutação num personagem colectivo por ele assumido no mais genuíno sentimento. Era sanguíneo, sempre atento aos "passarinhos", recordando as moambas, saudando a terra quente de África, celebrando os seus amigos. Era excessivo; logo, pouco português. Uma benesse».
Carreira

Nascido em terras de Angola, onde se iniciou na rádio - Rádio Clube (RC) do Lobito, sua terra natal, depois mais tarde com passagem pelo RC do Mochico e Rádio Comercial Sá da Bandeira – de lá trouxe uma cultura peculiar que não abandonou em Portugal. Igual a si próprio, fiel a si mesmo, perseguiu em ser como era, mesmo em ambiente mais frio e mental. «Com um estilo espontâneo, temperado pelas influências africana (Angola) e brasileira, sempre com o “coração ao pé da boca”, muitas vezes polémico, Perestrelo trouxe até nós, via rádio, ao longo de cerca de 30 anos, incontáveis momentos de esfusiante alegria, intensas e vibrantes emoções» .

Em Portugal trabalhou no Rádio Clube Português, na Rádio Comercial e esteve desde os primeiros momentos nos projectos de rádio – TSF – e televisão – SIC. «Tu nunca cabias em categorias. Ainda na quinta-feira falámos nisso, pela milésima vez. Sempre achaste piada à diferença. Nunca quiseste ser um tipo fácil. Partes depois dos repetidos «eu te amo Sporting» que arrepiam. Quando era a sério, Jorge, quando era preciso dar tudo, tu eras o melhor. O mais forte, o mais ousado. De ti vou guardar a irreverência perante os que se acham poderosos», escreveu Luís Sobral.

Emoção contagiante
Nas reacções à sua morte (há três anos) colegas e ouvintes recuperaram a sua personalidade: irreverente, exuberante, extremado, provocante, perturbador, extrovertido, eloquente, entusiasmado, enérgico, vibrante, alegre, criativo, empolgante, diferente, singular, talentoso, dedicado, frontal, autêntico. Traços de um homem que se expressam na sua actividade (profissional), com reações contra ou a favor, mas raramente de forma indiferente: «Devo confessar que não [o] suportava. [Ele] era adorado, venerado e idolatrado cá em casa. Os relatos de bola na rádio passaram, coisa inaudita, a ser ouvidos em altos berros por causa dele. O tom stressante punha-me os pêlos do coração em pé, as tais frases da rapaqueca arrepiavam-me o fígado», anotou um cibernauta.
A princípio contestado, criticado e mais tarde popular entre os ouvintes e copiado entre alguns colegas. Marcou uma época, como afirmou António Macedo e deixou discípulos, como lembrou Filipe Rodrigues da Silva. A sua voz silenciou-se mas na memória de muito público permanecem expressões peculiares como “ripa na rapaqueca”, “qu´é qu`é isso, ó meu?”, “essa até eu com a minha barriguinha marcava”, “é disto que o meu povo gosta”, “nem que a vaca tussa”. Agradecia aos ouvintes pelo privilégio de o sintonizarem e gritava “aguenta coração”.
De tanta emoção até ao último jogo, o coração não aguentou mesmo e parou. De repente. Nas mãos de um médico amigo no Hospital da Cruz Vermelha. Os seus últimos relatos e os derradeiros golos que descreveu são hoje arrepiantes, como sublinharam vários ouvintes. «Recordo o seu grito no relato da TSF, vulcão rouco de alegria e choro explodindo quando o Ricardo marcou o penalti aos ingleses: “Obrigado Portugal, obrigado meu Portugal, obrigado, obrigado, obrigado”, sempre a repetir estas palavras, “obrigado, obrigado, obrigado”, até perder a voz. Fiquei arrepiado até à raiz dos cabelos. Por pouco não chorava também».
Jorge Perestrelo que disse em tempos, que “se tivesse uma namorada oferecia-lhe este golo” e que um repórter que faz a cobertura de um funeral teria de chorar, foi cremado no cemitério dos Olivais na mesma altura em que a TSF anunciava um livro de Fernando Correia. Deixou a mulher e dois filhos, Luena e Pedro. Deixou-nos a todos, mas “a sua voz não se calará nas nossas memórias”. Como alguém disse, este monstro da rádio coloriu-a com palavras quentes do sul e nela deixou pegadas de liberdade.

Etiquetas: , ,