quarta-feira, 25 de julho de 2012

Jornalismo social III


Hoje, precisamente, completamos cinco anos de actividade semanal contínua. Antes de interrompermos, em Agosto, regressamos às nossas origens.

Texto  Dina Cristo imagem Cais

Desde há quase 20 anos que o jornalismo público se propõe recuperar a ligação perdida com os leitores, manifestada numa crise de imprensa, após a aplicação dos valores da objectividade e falsa neutralidade e imparcialidade, decorrentes de uma má interpretação da razão iluminista, autónoma e independente, e que degenerou num distanciamento, alheamento e indiferença perante o universo do público.
Conscientes acerca do quanto se haviam afastado dos destinatários, os jornalistas cívicos apresentaram três principais objectivos: a comunidade, a cidadania e a deliberação. Pretendiam agora envolver o público, levá-lo a interessar-se pelos temas públicos, motivá-lo a informar-se sobre os assuntos mediáticos, políticos, económicos ou militares e conduzi-lo à discussão e ao debate dos mesmos.
A sua intenção – medida para o valor moral de uma acção, segundo Kant – era sobretudo comercial, a recuperação das tiragens, em queda. A proposta traduzia-se em aumentar ainda mais a presença das elites em detrimento da inclusão dos problemas das pessoas comuns na agenda mediática. Assim, se esculpiria ainda mais o fosso entre os sub-sistemas e a lifeworld - os anseios, as acções e os sofrimentos dos indivíduos na sua vida de todos os dias.
Entretanto, o desenvolvimento das ferramentas digitais e a multiplicação de possibilidades e facilidades de publicação on line pelos cidadãos elevou a desejada contribuição do público. Com a Web passou a ser possível recolher, seleccionar e publicar histórias, sem controlo por parte de qualquer profissional e “desalinhadas” dos critérios jornalísticos convencionais.
Em alguns casos as atitudes dos cidadãos ultrapassaram a pretendida participação, limitada à recolha e envio de material, nomeadamente fotográfico. Este caso - em que o trabalho voluntário do cidadão é estimulado e usado pelas empresas que mantêm o poder de seleccionar e publicar – vai um pouco mais além do que o jornalismo interactivo, em que o cidadão apenas pode intervir após a publicação dos artigos, mas fica um pouco aquém do jornalismo de cidadão, onde todo o processo de produção é realizado pelo autor, como defendia Walter Benjamin.
Nesta segunda fase do jornalismo público as acções dos cidadãos ultrapassaram as próprias empresas que se sentiram obrigadas a acolher, de uma forma mais generalizada, os materiais enviados pelo público, não sem, contudo, resistirem à perda do exclusivo de informação exacerbando ainda mais o seu controlo. Como refere Sparks(1) «o tipo de material que tem maior sucesso on line é o que remete para os problemas da elite, e a esfera pública on line encarna o mesmo tipo de exclusões que estão presentes off line, mas numa forma mais extrema».
A par do discurso propagandísticos e demagógico, que afirma estar ao serviço da igualdade, pluralidade ou democraticidade, na prática o que se verifica, como demonstrou Lincoln Dahlberg, é o aprofundamento das desigualdades - desde as mais básicas, como o desnível de acesso, às mais elaboradas, como a produção do próprio discurso -, as exclusões, do diferente e particular, e a supremacia das ideias, vozes e grupos que já são bem vistos e predominam, quer na vida quer nos sub-sistemas.
O jornalismo público, que também se afirma cívico, mais focado no utilitarismo do que nos princípios, arrastado pelo empirismo, vê, afinal, os seus proclamados objectivos, como os de religação à audiência ou de oportunidades de expressão, informação e deliberação, por exemplo, ser mais e melhor atingidos por novas formas de fazer jornalismo, resistindo perante a efectiva participação e envolvimento da audiência, o que nos leva a questionar se os seus verdadeiros interesses não são efectivamente corporativos, privados e particulares.
O jornalismo público responsabiliza a audiência pelo dever de se interessar pelos factos que habitualmente integram a agenda mediática em detrimento de assumir a recuperação de uma agenda social, a par da política e da económica, que privilegia, de se ligar, dedicar e preocupar com as pessoas, público e fontes, e seus anseios, problemas e sofrimentos, nomeadamente em relação a grandes sectores da população como pobres, mulheres, cuidadores, sofredores ou vítimas. Afinal, trata-se de temas públicos que merecem atenção e deliberação pública.

Jornalismo alternativo

Além do jornalismo de cidadão (com o caso exemplar do Indymedia), um dos três tipos ao serviço do jornalismo público, segundo Nip Joyce, existem novas formas de reportar a actualidade que dão resposta a, pelo menos, algumas das dúvidas levantadas por autores da Escola Crítica de Frankfurt, nomeadamente a segregação e discriminação de largas camadas da população inseridas na vida do dia-a-dia e ocultadas, invisíveis e silenciadas nos sub-sistemas, como a indústria cultural mediática.
As novas formas de exercício do jornalismo representam e reintegram, de forma mais atenta e cuidadosa, as partes marginalizadas pelos principais meios de comunicação social. No caso da imprensa alternativa, esta constitui mesmo uma esfera pública alternativa, onde se informam e debatem, não só em livrarias alternativas mas já em “infoshops” especializadas, assuntos preteridos pelos “media” convencionais, ligados a causas pontuais ou grupos de interesse.
Trata-se com novos canais de comunicação, com ênfase na actividade, movimento e troca, na qual experiências, críticas e especificidades se podem expor e desenvolver através do estímulo ao pensamento livre, autónomo e independente do Estado, numa relação vital com os movimentos sociais, que esta imprensa reporta, suporta e desenvolve, pela transmissão de ideias dissidentes e mesmo radicais.
A imprensa alternativa está, pois, associada a minorias, isto é, grupos sub-representados nos “media” tradicionais tendo em vista a sua expressão na vida real, como ambientalistas, anarquistas(2), feministas, jovens, operários, pacifistas, pobres ou socialistas. Introduz, portanto, novos actores sociais, oprimidos e/ou marginalizados e articula, pelo menos, a agenda política com a social, conforme defende Alicia Cytrynblum.
A imprensa alternativa não reduz o indivíduo a um mero objecto manipulado mas capacita-o para se realizar como ser humano total, preferindo integrar os seus escassos recursos na vida dos seus participantes. Não concebe o ser humano como um meio, mas com um fim em si mesmo, em sintonia com Immanuel Kant, para quem o ser humano era sagrado e, portanto, não podia ser usado por ninguém como mero meio.
Comprometida contra o capitalismo, a favor de uma vida humilde e da acção social e política tendo em vista uma mudança social, por um todo mais equitativo, tão ou mais importante do que a informação é, na imprensa alternativa, o modo de produção, em auto-gestão, em comunicação horizontal, do escritor ao leitor, a atitude e posição nas relações de produção.
Coerente com os seus valores, a participação aplica-se ao ponto de incluir os leitores nas suas decisões e ao tornar a audiência em produtora. A criação é mesmo um dos seus pontos fortes, próprio da alta cultura, com tensão e distinção, tal como explicado por Adorno, ao contrário da mera cultura de reprodução dos “media” mais reconhecidos, o mais vulgar.
Consequente, a imprensa alternativa defende a aplica os baixos níveis de finanças, direitos autorais, circulação ou distribuição ou mesmo de graus de abertura, liberdade e gratuitidade. Possui, normalmente (muito) pouca publicidade, embora seja receptiva a donativos e acções de beneficiência, nomeadamente ao nível de concertos, e realiza-se com base no voluntariado.
Actuando no âmbito descentralizado, de micro-empresa, não comercial, exerce uma organização colectiva e pugna pela diversidade, a sua essência e a sua força democrática, defende Chris Atton que cita o Oxford Institute of Social Disengineering: «uma centena de publicações com uma circulação de mil é cem vezes melhor do que uma publicação com uma circulação de centenas de milhar»(3).
Além de dar voz às partes colonizadas pelos sub-sistemas, esta imprensa permite igualmente aproximá-las quando, por exemplo, no caso das revistas de rua, como a “The Big Issue”, facilita a conversa entre compradores e vendedores (seis mil em Inglaterra), os mesmos indivíduos que ali são retratados. Nas conversas que se proporcionam, nomeadamente sobre o problema da falta de habitação, o bloqueio entre “nós”, os centrais e integrados, e “eles”, os periféricos do sistema, dissipa-se ou atenua-se.
Nestes casos as publicações promovem o trabalho, alguma remuneração e aumentam consideravelmente a auto-estima, ao contrário da imprensa regular que a diminui, instala complexos, desrespeito pela auto-imagem e adormece a identidade do público através da “chupeta electrónica” sedutora mas perigosamente alienante, manipuladora e escravizante. Ao contrário, a imprensa alternativa esforça-se por repor o princípio da justiça.
Criada e distribuída para os indivíduos para as quais existe, esta imprensa, ligada às necessidades comuns das pessoas e à vida de todos os dias, opta pela partilha de recursos, até como potencial educativo de ânimo à participação, em detrimento da determinação económica ou da competição directa com os mercados ou modos de produção da imprensa convencional.
Uma imprensa activa, motivada para o desenvolvimento, com participação directa e realização humana, comprometida com um estilo de vida simples, aberta ao confronto com o diferente, o divergente, o heterodoxo, assumindo a pluralidade e envolvimento defendidos pelo jornalismo público que, segundo Joyce Nip, pelo menos em relação ao segundo, já acontecia e com mais profundidade antes do jornalismo industrial e objectivo.

Jornalismo de paz

O jornalismo de paz é orientado para a paz, para as pessoas e para uma solução. Representa as partes em conflito com multiplicidade e variedade, perseguindo muitos objectivos e com diversas oportunidades de intervenção, reconhece que o problema do conflito pode parecer muito diferente quando examinado através de ângulos cruzados pelos que estão no terreno e está preparado para procurar e reportar iniciativas de paz, vindas de qualquer procedência.
Parte da imprensa alternativa, o jornalismo de paz, com uma implantação de sete décadas, é não só um contributo para melhor realizar os intuitos de justiça, inerentes à própria profissão, como para o seu próprio desenvolvimento ao possibilitar a correcção, desde logo, dos relatos, habitualmente mais conflituosos e agressivos do que são na realidade.
Mas não só. Este jornalismo permite rectificar o desequilíbrio de fontes sistematicamente usadas – o privilégio de informações procedentes de entidades oficiais, de elite (individual ou colectivamente) ou militares – e do predomínio da linguagem agressiva, conflituosa ou de vitimação.
O novo paradigma emergente dá mais atenção às fontes orientadas para o povo, a vida concreta e real. Jake Lynch cita John Paul Lederach, que afirma nunca ter experienciado nenhuma situação de conflito em que, frequentemente emergindo da sua experiência de sofrimento, não tenha encontrado uma pessoa com visão de paz.
Estas pessoas, as suas acções, pensamentos e sentimentos, não deixam de ser prezadas pelo jornalismo de paz pelo facto de não possuírem poder político ou influência económica. Aliás esta imprensa não ignora as tentativas, os esforços e as propostas no sentido da harmonização social, para a qual contribui através de uma linguagem cuidadosa e de critérios que não “inflamem” ainda mais os conflitos.
Mas o aperfeiçoamento propiciado pelo jornalismo de paz verifica-se igualmente no reequilíbrio dos fluxos de informação a nível internacional, tal como recomendado no relatório de MacBride, há cerca de 30 anos, bem como no melhor nivelamento entre o que mais tem sido omitido, o construtivo e benéfico, e o que é repetido, o destrutivo e maléfico para uma grande quantidade de pessoas e países na base da pirâmide do poder.
De igual modo o jornalismo de paz evita o erro de fazer equivaler ou substituir a parte, a citação oficial, pelo todo, o acontecimento no espaço e tempo físicos, com múltiplos ângulos, diversos intervenientes e várias motivações. Também não tenta dissipar, ocultar ou dissolver artificialmente eliminando os conflitos, que se estendem pelo mundo, do discurso mediático ou reduzindo-os à insistência dos que mais intimamente se relacionam com interesses restritos.
O apuramento da actividade informativa traduz-se ainda na estima e carinho quer pela audiência - a quem se evita os efeitos de stress, causados pelo jornalismo de guerra – quer pelas fontes civis, como as Organizações Não Governamentais (ONG), a quem se previne a discriminação e desconexão, pela subserviência do sub-sistema informativo em relação ao sistema capitalista.
Esta pesquisa e reportagem das propostas, respostas e acções não violentas constitui um desafio às relações de dominação e opressão, baseadas precisamente na violência sistémica, como lembra, entre outros autores, Theodor Adorno. Trata-se de uma abordagem mais profunda, completa e contextual, tal como também defendido por Alicia Cytrynblum.
Até aqui têm prevalecido critérios de noticiabilidade - como a negatividade, o conflito, a morte, a notoriedade, a amplitude, a frequência, o inesperado, a clareza, entre muitos outros - com consequências designadamente ao nível da preferência pela cobertura de guerras e acontecimentos extraordinários, que têm como protagonistas pessoas e países de elite, com um grande número de indivíduos ou que se adequam bem ao planeamento e agendamento de notícias.
Estes critérios - além dos valores da objectividade, neutralidade e imparcialidade, que têm conduzido ao afastamento e à indiferença, entre público e jornalistas - têm vindo a ser cada vez mais contestados pelos activistas mediáticos, fontes, jornalistas, audiência, investigadores, e a própria ONU, que pretende criar um Banco de “Media” como forma de fomentar o jornalismo de paz e uma ética mediática a nível global.
A discussão está presente na teoria, com a ética do cuidado a defender a expressão da subjectividade, até aqui (auto)censurada, incluindo tomadas de posição – diferentes da parcialidade - e na prática, através do jornalismo de paz, cujo fundador é precisamente Johan Galtung, que nos anos 60 sistematizou as escolhas de noticiário estrangeiro e nos anos 90 se orientou mais especifica e directamente para o jornalismo de paz.

Jornalismo social

No caso do jornalismo social - uma disciplina emergente, como afirma, no seu livro, a jornalista Alicia Cytrynblum - alguns critérios são usados para mostrar a relevância dos assuntos sociais, que têm impacto, proximidade, interesse humano e importância económica, social e cultural, além de representarem o poder das pessoas comuns face ao Estado e às empresas.
A agenda social faz parte de uma trilogia constituída pelas bem conhecidas agendas políticas e económicas. Ignorar o tecido social, seus líderes e acções sociais é um erro que decorre da dependência dos jornalistas face ao poder instituído (dos sub-sistemas da burocracia e do capital) e que os levou a afastarem-se do seu papel original de mediadores equidistantes entre governantes e governados, informando em ambos os sentidos e não apenas na direcção da elite governativa para a massa eleitora.
É motivação do jornalismo social a articulação entre as três agendas, o que significa fazer a necessária e sublinhada, pela análise crítica, ligação entre os sub-sistemas (políticos e económicos) e a lifeworld. É próprio do jornalismo social somar novas fontes, como as ONG, ouvir as vozes dos directamente atingidos – como adolescentes, crianças, deficientes, mulheres ou pobres – e relatar a sua perspectiva, contribuindo para o seu conhecimento e reconhecimento público com impacto ao nível da representação e do imaginário social.
Alicia Cytrynblum lembra que o jornalista é o guardião do vínculo entre o poder e os cidadãos e que deve ter presente não apenas o seu papel social mas igualmente a sua função pontifica, de religação, fundamental não só para a recuperação da crise de imprensa e um dos propósitos do jornalismo público, mas também para a própria organização sistémica, que se tem vindo a desagregar, a fragmentar e a distanciar cada vez mais.
Segundo sustenta o jornalismo social, é inerente à profissão tornar visível ao poder o que para este está invisível: «Se estes [os actores sociais] participam na notícia devem ser incluídos na cobertura. Se foram omitidos será tarefa do jornalista denunciá-lo claramente»(4). Não se trata de transformar o profissional em porta-voz das causas sociais, mas antes de ser de tal forma independente que não as abafa ou amputa da representação pública, quando estas possuem uma dimensão tão ou mais importante que as demais.
Na Argentina há mais de 460 mil empregados no terceiro sector e mais de 80 mil organizações sociais, entidades de bem público que constituem uma rede social, por todo o lado, que, entre outras coisas, gera emprego e defende os direitos das minorias representando o interesse social, repleto de pessoas que fazem coisas, às vezes heróicas, por outros, e que congrega o tecido social e a acção social da sociedade civil.
Ora a independência, para além das condições proporcionadas pela empresa na qual se exerce a profissão, é construída, é uma decisão pessoal que faz parte da responsabilidade individual de cada jornalista. Tal pode efectuar-se não apenas na soma de novas fontes mas também no uso mais atento, cuidadoso e adequado das palavras, em especial dos adjectivos, sobretudo quando relativos a pessoas já desfavorecidas ou estigmatizadas.
A dedicação dada às palavras, instrumentos de trabalho, não só eleva o nível de rigor com que se reporta a realidade como se traduz num esforço para espelhar a vida - em vez de a obscurecer, distorcer, manipular ou censurar, extirpando-a da percepção pública – e evitar a reprodução de pré-conceitos e estereótipos que reduzem o todo à parte assim redefinida, como explica Adorno.
A preocupação colocada na linguagem usada reflecte o respeito pelos indivíduos enquanto seres humanos, designadamente os noticiados, considerados na sua dimensão humana, integrando as suas possibilidades e potencialidades, em detrimento das suas condições pontuais de eventuais dificuldades ou incapacidades. Assim, não se trata de “pobres”, por exemplo, mas de “pessoas em situação de pobreza”.
Pode parecer um pormenor subtil mas altera o ângulo perspectivado: «São imensas legiões de pessoas a quem se prejudicou o acesso ao trabalho digno, à saúde, à educação e à habitação, entre outros direitos. Quer dizer, a pessoa pobre é uma vítima do sistema económico, nunca o vitimador. É a consequência, nunca a causa. Neste sentido os meios de comunicação e os jornalistas devem ser cuidados no enfoque ideológico das coberturas»(5).
Uma das características da imprensa social é precisamente a compreensão, explicação e contextualização dos fenómenos, a descrição das suas causas - frequentemente associadas a razões políticas e económicas - o seguimento das notícias e a pesquisa de soluções já empreendidas por alguma entidade nacional ou internacional, não se limitando à denúncia dos problemas sociais, ao relato isolado, fragmentado e objectivado, como acontece através da mera apresentação de números, taxas e estatísticas.
O jornalismo social prefere, pois, a profundidade, a abrangência, ao impacto imediato, estéril e paralisante. A informação sobre as alternativas disponíveis ou concretizadas para resolver o problema altera a percepção (da falta) de empenho das entidades responsáveis e mobiliza a audiência para a co-responsabilidade social, a acção concreta, a beneficiência, como defende a ética do cuidado.
Além do mais os problemas sociais não são um espectáculo. No jornalismo social vigora o princípio da prudência – um valor inerente à responsabilidade social e à máxima do amor de si que, segundo Kant, deve ser, de acordo com a lei moral, estendida ao outro – poupando não só o sofrimento gerado ao nível da audiência (como vimos ao nível do jornalismo de paz) mas também a quem é objecto de atenção mediática, nomeadamente em secções policiais.
Naqueles casos, Alicia Cytrynblum defende que o tratamento da informação deve ser baseado nos direitos humanos, evitando o seu uso estratégico para fins de controlo das massas - através do medo, do terror, da desestabilização, da insegurança, para assim melhor obter o consentimento para políticas mais agressivas, vigilantes e violentas - ou para gerar audiência, através do instinto da morbidez. Uma forma de actuação mais independente, activa e consciente que se nega a ser usada como meio para a construção de um sujeito vulnerável, amedrontado, controlado e subordinado.
Tal como o jornalismo de paz, o jornalismo social empreende um esforço no sentido do desenvolvimento do jornalismo, até aqui demasiado envolvido com os campos políticos e económicos, e da sua correcção - da distorção, do enviesamento, do deslocamento (que acompanhou o das próprias identidades) ou da exclusão de partes essenciais.
No caso da discriminação das ONG - quando estas são fontes percebidas pelo público pelo seu grau de independência, inovação e, fundamentalmente, confiança - em detrimento de outras, consultadas quase em exclusivo e nas quais a audiência não acredita, não só afasta os leitores, que não se revêem nos temas e ângulos tratados, como agrava a crise de imprensa. Além de poderem contribuir para a recuperação da credibilidade e pluralidade jornalística, as ONG são fontes de novos actores, líderes, ideias, temas, métodos e acções sociais, produzindo também informações relevantes.
Ao cumprir o seu papel social, ao comprometer-se com os processos sociais, o jornalismo social não só fortalece a democracia como colabora activamente na participação – uma reivindicação do jornalismo público e uma necessidade identificada pelas investigações teóricas de (re)tomar parte na representação pública, dada a sua importância e influência, nomeadamente em termos sociais.
O jornalismo social não negligencia a questão comercial, mas a verdade é que consegue aumentar as audiências sem prescindir dos princípios de cidadania e de serviço aos cidadãos – pelo que lhes fornece os dados necessários para poderem contactar directamente as fontes - capacitando-os, ao contrário do jornalismo público que, ao insistir nas obrigações da audiência e descuidando dos seus interesses, cada vez mais a perde.
O jornalismo social assume uma ideologia - como a democracia ou o desenvolvimento sustentável - promove a acção comunitária e tem a preocupação de compreender e de respeitar(6) a dignidade das pessoas envolvidas, difundindo os seus direitos e confirmando as informações transmitidas, atendendo e cuidando em relação às perguntas, aos enquadramentos ou ao uso de linguagem inclusiva e não violenta.
O jornalismo social (re)conhece a importância da agenda social sem, contudo, exacerbar a solidariedade nas notícias. Não se limita à mera informação, argumentativa e agressiva, à discussão de mente a mente, própria do hemisfério esquerdo, antes contribui para promover a comunicação, bidireccional, a comunhão - a constituição de comunidades fluentes, coesas, integradas e identificadas - e a inclusão da linguagem do amor, de coração a coração, própria do hemisfério direito.
A linguagem e acção amorosas, mesmo ao nível público e profissional, como defende a ética do cuidado, não deixam de corresponder às exigências de verdadeira liberdade, moralidade, autonomia e independência de uma razão esclarecida e não distorcida pelas inclinações, interesses ou necessidades empíricas. Equivale à acção virtuosa, o cumprimento da lei por amor dela - sendo que a lei das leis é precisamente o amor ao próximo - sem qualquer interesse pessoal, o que constitui, para Kant, o soberano bem.
Além de ajudar a implementar esta comunicação veramente racional – o que inclui a expressão da subjectividade, unificadora de todas as multiplicidades e, assim, verdadeiramente discernida, pura, genuína, livre e independente – a sua conduta concretiza diversas aspirações de outras tipologias de jornalismo, nomeadamente o jornalismo público, alternativo e de paz, que vimos, mas também realiza a própria natureza da profissão, presente desde logo na sua designação enquanto “meios de comunicação social”.
A dimensão social, presente na vida de todos os dias mas até aqui ocultada, silenciada e amputada da indústria cultural, é, agora, resgatada pelo jornalismo social que, assumindo a sua missão social e estando atento à nova ordem social e às reivindicações de expressão, representação e participação públicas das largas camadas de população colonizadas, não deixa de abordar questões como a política social, os valores sociais, a economia social ou o capital social.

(1) SPARKS, Colin – The Contribution of Online Newspapers to the Public Sphere: A United Kingdom Case Study in Trends in Communication 11(2), pág.111-126. citado por NIP, Joyce – Exploring the second phase of public journalism in Journalism Studies, vol.7, nº2, 2006, pág. 231. (2) No Reino Unido, os anarquistas são responsáveis por 25 publicações alternativas e 12 editores.  (3) ATTON, Cris – A reassessment of the alternative press in “Media, Culture & Society”, Sage Publications, London, 1999, vol.21, pág.64. (4) CYTRYNBLUM, Alicia – Periodismo social – Una nueva disciplina. La Crujía Ediciones. 2004, pág. 69. (5) Idem, pág.115. (6) Segundo Kant, este apenas se dirige a pessoas, sobretudo quando cumprem a lei moral, ao contrário da admiração e do amor.

Bibliografia: ATTON, Cris – A reassessment of the alternative press in “Media, Culture & Society”, Sage Publications, London, 1999, vol.21, pág.51-76. CYTRYNBLUM, Alicia – Periodismo social – Una nueva disciplina. La Crujía Ediciones. 2004. LYNCH, Jake – Peace journalism in ALLAN, Stuart (editor) - The Routledge Companion to News and Journalism. London and New York, 2010, p.541, p.543-553. NIP, Joyce – Exploring the second phase of public journalism in Journalism Studies, vol.7, nº2, 2006, pág.212-236.

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segunda-feira, 23 de julho de 2012

Rádio Clube de Moçambique III



Revista "Rádio Moçambique" 13/6/1964, pág.3

Nesta terceira parte concentramo-nos no programa "Voz de Moçambique", destinado às populações nativas.

Texto Dina Cristo

Em 1958, além das emissões especiais em língua francesa - nomeadamente para o Congo belga e com música e novidades portuguesas, inglesas e em afrikaans - há uma em língua indígena. Desde o dia 6 de Abril desse ano que existem três horas semanais do serviço especializado “Hora Nativa”, na língua autóctone Xirronga, onde os ouvintes do ER de Matola, são ensinados e aconselhados, em termos da vida doméstica, política, saúde e agricultura.

De carácter popular, o programa contém notícias desportivas e diversos avisos. Começa com a seguinte abertura: «Aqui, Portugal Moçambique! Fala-vos a Voz de Moçambique a transmitir nas bandas dos 60 e 90 metros onda curta, e em 245 metros, onda média. O locutor… ao iniciar o seu trabalho de hoje, cumprimenta os seus estimados ouvintes, desejando-lhes uma boa audição para o programa que vai apresentar».

Nesse ano, em que o programa possui cinco funcionários, segundo João Pinheiro, gerente geral, «Muitos milhares de indígenas possuem já o seu receptor e outros em audições colectivas escutam entusiasmados e com regularidade as emissões que o Rádio Clube de Moçambique lhes dedica todos os domingos». O aumento de audiência entre os nativos, facilitado pelos transístores, é, assim, impulsionado pela programação destinada às populações autóctones.

Em 1959, conta já sete horas e meia de emissão por semana, mas esta irá estender-se substancialmente. Se no início dos anos 60, não são atingidas as duas mil horas de emissão, o mesmo já não acontece em 1967. Contudo, é no final da década e sobretudo na de 70 que a aposta neste programa se intensifica e as emissões são desdobradas, aumentadas e expandidas a diversos dias da semana. A 20 de Janeiro de 1961 a “Hora nativa” estende-se a Cabo Delgado, num ano em que transmite em cinco línguas dos povos autóctones. Em 1962 é substituído pela “Voz de Moçambique”; as emissões passam a ser diárias e nos nove dialectos mais falados.

Em 1963, a emissão estende-se ao ER do Norte, na língua Emacua, com milhão e meio de falantes. Num propósito explicitado de “fraternal altruísmo” e feito por locutores africanos, para identificação com a vida, problemas e aspirações das populações, o programa procura distrair, instruir e contribuir para o aperfeiçoamento moral.

São rubricas do programa, além do teatro infantil, “Diga-nos o que pensa”, “Português, minha língua”, “Vamos conversar”, “Correio do emigrante”, “Os nossos campos e os nossos animais”, “O conto da semana”, “Palestra sobre a saúde”, “Programa para a mulher” («(…) com o intuito da promoção social da família»), “Conselhos breves”, a que se juntam, em 1964, relatos de futebol, “Procurando vocações”, “Programa de variedades” e “Hora do recreio” (com música, diálogos e concursos).

O programa, com as máximas de honestidade, simpatia e humor, é orientado pelo chefe da Divisão de Acção Educativa e Cultural, a 3ª Divisão dos Serviços de Acção Psicosocial - cuja maior parte dos funcionários, redactores, tradutores e locutores são de raça negra - que depois de extinta deixa a produção a cargo dos Serviços de Radiodifusão e de Cinema Educativo e Informativo, na dependência do Centro de Informação e Turismo.

As emissões têm em vista a elevação do povo. Para uma acção construtiva ajusta-se aos seus particularismos, daí estar assente sobretudo na recreação, apoiada nas suas expressões musicais, fábulas e novelística, o que gera cumplicidade e confiança entre os ouvintes: «É a sua emissora. Ensina-os a tratar dos campos, a criar os filhos, conta-lhes histórias, dá-lhes os mais variados conselhos, proporciona-lhes as músicas que amam, vive para eles enfim».

Embora comercial, o programa inclui noticiários, contos, palestras, temas religiosos, música e língua portuguesa, folclore regional e história de Moçambique. Cresce e desenvolve-se a tal ponto que em 1968 as emissões se fazem em dez dialectos locais. Nesse ano há 4 085 h em línguas nativas a partir do emissor em Lourenço Marques, 1 625 h a partir do emissor de Nampula (em Macua), 624 h dos emissores de Quelimane (em Chuabo) e 286 h a partir dos emissores de Porto Amélia (em Medo), num total de 6 620 h de transmissão em línguas nativas.

Em 1969, das onze línguas autóctones transmitidas pelos quatro emissores, Emacua, emitida do ER do Norte lidera com mais horas: 1730, embora sempre ultrapassadas pela língua portuguesa, que neste caso conta com 3725 h de programação. Em 1971, com uma média semanal de 240h de emissão, o programa tem à sua disposição o quarto e quinto andares do edifício-sede, para serviços administrativos.

Em 1972, mantém-se a liderança dos dialectos Xirronga e Xissena, com mais de duas mil horas, e, dos restantes, apenas Emacua Metho não atinge as mil horas. Nesse ano, a língua portuguesa, só nos ER de Quelimane, Nampula, Porto Amélia e Tete, totaliza 12 998 h 50 m; por seu lado, a “Voz de Moçambique”, em vários dialectos e através de todos os Centros Emissores, perfaz 15 945 h 45 m.

Ao todo são as seguintes as onze línguas moçambicanas transmitidas:

Xirronga (distrito de Lourenço Marques): 2 165 h - Distrito de Lourenço Marques e Gaza, Suazilândia e larga área da região vizinha da África do Sul durante 5h 30m nos dias de semana, com acréscimo de 2h 30m aos Sábados e Domingos, em OC e OM.

Xissena (região da Beira, parte norte de Manica e Sofala e sul da Zambézia): 2 013 h – Distrito da Beira, em OM, com o emissor de 50 kw e o de Vila Pery, e em OC, com o de 10 kw. É escutado também pelas populações ribeirinhas do Zambeze, dos distritos de Zambézia e Tete. O dialecto é ainda escutado e entendido pelos elementos da etnia “Chenwé” do distrito de Inhambane. O período de emissão é de 5h 30m.

Xinhungue (distrito de Tete): 1 830 h. Com um emissor de 25 kw, em OC, é destinado a grande parte do distrito de Tete durante 5h.

Emakua (Norte da Zambézia, distrito de Moçambique e partes de Cabo Delgado e Niassa): 1 730 h. Todo o distrito de Moçambique e parte dos distritos do Niassa e Cabo Delgado, de Segunda-Feira a Sábado, durante 4 h. Aos Domingos e feriados a duração do programa é de 8h 30m.

Etchuabo ou Xichuabo (região de Quelimane): 1 647 h. Toda a região de Quelimane em OC, com um emissor de 10 kw, bem como a maior parte da Zambézia durante 4h 30m, todos os dias.

Xichangana (distritos de Gaza e Inhambane): 1 314 h. Distritos de Lourenço Marques, Gaza e Inhambane, em complementação do programa de Xirronga, com duração de 4h 30m de Segunda a Sexta-Feira e suplemento de 2h 30m aos Sábados e Domingos.

Kiswahili (da região costeira, começando a sul da Ilha de Moçambique até Mocimboa do Rovuma e fronteira norte ao longo do rio Rovuma): 507 h 15 m. Destinado às populações dos distritos do Norte que falam esta língua. Tem larga audição na Tanzânia e até Quénia. É transmitido da Beira por um emissor de 100 kw e tem a duração de 3 h.

Xinianja (regiões de fronteira com o Malawi dos distritos de Tete, Moçambique e Niassa): 479 h 45 m. Emitido em 100 kw, durante 3 h por dia; abrange a área do distrito do Niassa e é largamente escutado no Malawi. Ouve-se em razoáveis condições no distrito de Tete.

Kiyau ou Ajáua (a maior parte do distrito de Niassa): 365 h. Dirigido, especialmente, às populações ajauas do Niassa. Utiliza-se na sua emissão o emissor de 100 kw, que assegura a audição para além-fronteiras. Passa a ocupar 3 h diárias.

Emacua Metho (regiões de Porto Amélia e Montepuez): 262 h 30 m. Às Quartas-Feiras e Domingos durante 2h 30m em Porto Amélia.

Kimakonde ou Emaconde (grande parte central de Cabo Delgado até junto à fronteira do Rovuma): 169 h. Transmitido pelo emissor de 100 kw para a região habitada pela etnia maconde. Tem muitíssimos ouvintes na Tanzânia. O programa, que vinha a ser feito a título experimental, passa a ter a duração de 3 h diariamente.

Embora com períodos dedicados à cultura regional, a grande parte das emissões é preenchida com retransmissões da sede, em cadeia, como atestam a diferença percentual entre a utilização da língua portuguesa e as línguas nativas nos ER. «Estes centros, bem como as actuais estações regionais e as que se irão instalar noutros centros populacionais, serão ligados à estação-sede por uma rede-mista, de forma a permitir que seja ouvido em toda a província o programa de carácter geral emanado de Lourenço Marques, do qual se designam as estações regionais em certos períodos do dia para darem noticiários, reportagens e programas de carácter local».

Ao contrário de Angola, com a disseminação de estações comerciais concorrentes por todo o território, devido à formação de maiores núcleos populacionais e em maior número, Moçambique adopta o modelo de uma emissora única de âmbito provincial que agrupa e estabelece a unidade, em detrimento da pulverização. O plano dos emissores regionais em rede, a funcionar em cadeia, com um serviço de produção centrado na capital é salientado aquando da inauguração, em 1972, do ER de Tete: além do seu contributo para a programação geral, o programa é comum, suplementado a espaços longos com inserções exclusivamente locais.

Em relação à emissão, «(…) os nossos emigrantes do Transval e ainda imensos grupos de nacionalidade sul-africana, escutam os programas com extraordinário agrado. A comprová-lo há arquivos repletos de copiosa correspondência, quer de nacionais radicados na África do Sul, quer de negros sul-africanos, sem falar evidentemente, nos da Província, de Norte a Sul».

Em 1963, só dos dialectos Xirronga e Xichangana, o RCM recebe, em média, 1700 cartas por mês, cujo conteúdo vai desde os discos pedidos à exposição de problemas íntimos e solicitação de informações e conselhos. Numa dessas cartas, o ouvinte Eário Matos Muchelze escreve: «(…) Na nossa casa já sabemos fazer bolos, e esperamos que nos ensinem outras coisas. Muito obrigado».

Em 1963, a “Voz de Moçambique” acolhe 26 887 pedidos de discos e 311 462 votos, no concurso do Rei da Rádio. Em 1964 o programa recebe, em média, 4 000 cartas por mês; em 1967 são 154 120, 42 520 das quais de militares e 15 600 de emigrantes. Em 1968, quando a “Voz de Moçambique” tem mais de dois mil visitantes, são 150 mil as cartas recebidas que, em 1970, ano em que o programa alcança os 3 500 visitantes, atingem as 215 mil.

De acordo com as estatísticas oficiais de 1966, existem, em Moçambique, cerca de 75 mil aparelhos de rádio licenciados, o que, tendo em conta o censo populacional de 1960, proporciona, em média, um receptor de rádio para 88 ouvintes, enquanto isso no mundo há centenas de milhões espalhados por milhares de emissoras.

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quarta-feira, 18 de julho de 2012

Egipto

Segunda-Feira é Dia Nacional do Egipto. Oportunidade para focarmos um país que vive, há mais de um ano, numa espécie de PREC à sua moda, com agitação social e instabilidade política.

Fotografia Teresa Figueira











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quarta-feira, 11 de julho de 2012

Revolução científica


Foi editada, há 25 anos, a oração de sapiência de Boaventura de Sousa Santos, na abertura do ano lectivo, em Coimbra*. Nela, o sociólogo apresenta a ordem da ciência pós-moderna, holística, que resgata o sujeito e supera o materialismo. Vamos lembrá-la.



Texto Dina Cristo

A crise do paradigma dominante e hegemónico da ciência, nomeadamente o positivismo e o mecanicismo, é não só profunda como irreversível. A noção do mundo enquanto máquina, por um lado, e de que só é possível conhecer o que a experiência e observação podem verificar, por outro, estão em fim de ciclo. Por seu lado, emerge uma nova ordem de síntese, designadamente entre as ciências naturais e sociais.

O paradigma dominante assenta no conhecimento da natureza, com fins utilitaristas: para melhor a prever, dominar, manipular e explorar. Da sua análise geométrica decorre o lugar central da matemática, da quantificação, do rigor, da legalidade e da regularidade. Desta sobressai a importância do conhecimento explicativo (de como funciona) e nomotético, que atingiu as próprias ciências sociais, como quando se tentaram descobrir as leis da “física social”.

Com este modelo funcional e activo, para transformação da natureza, objectivo e distante, com a intenção de lhe determinar as causas, a ciência não só restringiu os objectos como os dividiu e se especializou excessivamente. Ao espartilhar a realidade, fragmentar as disciplinas, parcelarizar o conhecimento e policiar as suas fronteiras limitou a tal ponto a “árvore” que o resultado foi a ignorância (especializada, ao nível dos cientistas, e generalizada, ao nível do cidadão comum), o desconhecimento.

A ciência moderna operacionalizou-se, uniformizou-se, industrializou-se, estratificou-se, proletarizou os cientistas e comprometeu-se com o poder, que lhe define as prioridades. À procura da quantidade, perdeu informação, dadas as partes extirpadas em laboratório, e empobreceu, dada a entropia. O essencial, a captação das relações entre os objectos, as perguntas simples, a virtude e o contributo para a felicidade humana, escapou-lhe. Limitou-se aos conceitos de “espaço”, “tempo”, “matéria” e “número”.

De tal forma orientada unicamente para o objecto que se fechou, alienou e, preconceituosa e arrogante, se tornou idealista, no pior sentido, dualista, determinista, isolada, distorcida, despersonalizada e intolerante. A ciência moderna tornou-se «(…) um conhecimento mínimo que fecha as portas a muitos outros saberes sobre o mundo» . Segundo o autor, ela não é a única nem sequer a melhor explicação da realidade, pois há outras diferentes, como a metafísica, a religião, a astrologia, a arte ou a poesia. Pressupostos metafísicos, sistemas de crenças e juízos de valor que, correm, entretanto, nos não-ditos dos trabalhos científicos.

Contudo, há sinais de que quer o sujeito quer mesmo o divino estão de regresso. A mecânica quântica provou que é impossível observar ou medir sem que o sujeito interfira ou altere o objecto, que o acto de conhecer e o seu resultado são inseparáveis. A teoria da “ordem implicada” de David Bohm e o Tao da Física de Fritjof Capra são dois entre diversos exemplos dados pelo autor da emergência de um novo paradigma.

Na teoria da “ordem implícita” está presente o paradigma da auto-organização, auto-determinação ou auto-consciência, o que enfatiza a interdependência entre mente e matéria, reflexos um dos outro, «(…) duas projecções, mutuamente envolventes, de uma realidade mais alta que não é nem matéria nem consciência» . É o (re)surgimento da importância da consciência ao nível do conhecimento e mesmo do objecto.

Este reaparecimento do sujeito (também na veste do próprio objecto) está presente na dimensão psíquica da natureza, nas noções de uma mente imanente e colectiva, mais ampla, de que a humana é apenas uma parte, que a alonga para fora do sujeito (com o interesse pelo “inconsciente colectivo” de Jung), depois de Freud a ter aprofundado para dentro. Uma vocação integral e sintética, presente no encontro entre a física contemporânea e o misticismo oriental, de Fritjof Capra, por exemplo.

Não só os novos conceitos de “consciência” e “liberdade” mas também de “sistema”, “estrutura”, “modelo” ou “processo” passam a ter relevância. Entende-se que há outras formas de rigor, alternativo, que a totalidade do real não se reduz à soma das suas partes, num conhecimento mais holístico, que supera a dicotomia, por exemplo, entre ciências naturais e sociais. Ao mesmo tempo que as ciências naturais se aproximam das sociais (os fenómenos naturais são estudados como se fossem sociais) estas também se reconciliam com as ciências humanas, como a Filosofia, a História ou a Teologia.

A ciência pós-moderna não só coloca a pessoa no centro do conhecimento como põe a natureza no centro da pessoa (nomeadamente com pressupostos biológicos do comportamento humano) e, numa era digital, é analógica – vê o mundo-mente, também como uma autobiografia, um texto, um palco ou um jogo. A ciência pós-moderna promove a “situação comunicativa” - o encontro, a união, a fusão, o diálogo, a (inter)relação - a interdependência. Ela amplia o seu objecto, à procura de novas “interfaces”, traduz e importa conceitos e teorias, concebe através da imaginação e tolera a diversidade e a fusão de estilos discursivos, uma maior personalização e uma pluralidade de métodos.

Ela é total, não no sentido da imposição, mas do universalismo, receptividade e indivisibilidade; a sua fragmentação é apenas temática. Este novo conhecimento científico coloca a ênfase no agente (quem) e na finalidade (para quê), em vez do como (funciona). É um conhecimento compreensivo, estético e íntimo, cuja qualidade se afere pela satisfação pessoal que dá a quem o partilha ou a quem a ele acede; qualidade que lhe restitui riqueza informativa, a captação do silêncio entre cada pergunta.

Em vez de pretender controlar o mundo, como o faz a ciência moderna, a pós-moderna contempla- o e enquanto resultado da sua própria criação científica; restitui à natureza propriedades expropriadas pelo materialismo, dá-lhe dignidade e ensina a viver, com prudência, (uma das principais virtudes, segundo Emanuel Kant) traduzindo num senso comum, transparente, que capta a profundidade horizontal das relações entre as pessoas (e as coisas).

Depois das mudanças científicas do séc.XVI, da ideia de progresso do séc. XVIII e da emergência das ciências sociais com a euforia cientista do séc.XIX, eis a nova revolução científica: do positivismo, símbolo da aversão à reflexão filosófica, para o negativismo, tolerante à metafísica dos valores humanos e religiosos. Um momento de reunir o que antes se separou, sujeito e objecto, aproximar o que se distanciou, consciência e matéria, relacionando, integrando e reabilitando sobretudo a matéria negra, negativa, subjectiva e invisível da realidade.

Ao restaurar a unidade do orgânico e inorgânico, da alma e do corpo, a ciência pós-moderna unifica o que a ciência moderna uniformizou e é ao reconfigurar todas as formas de conhecimento que atinge a verdadeira racionalidade.

*Oração de sapiência na abertura solene das aulas na Universidade de Coimbra, no ano lectivo de 1985/6. (1) SANTOS, Boaventura Sousa – Um discurso sobre as ciências. Edições Afrontamento. 16ª ed. 2010. (2) Idem, pág. 39.

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quarta-feira, 4 de julho de 2012

Imprensa alternativa


Antes do Dia Mundial da Cooperação, seguimos um artigo de Cris Atton*. Ao entrar no mês em que completamos cinco anos de actividade, reflectimos sobre a imprensa comprometida com uma esfera pública diversificada.

Texto e fotografia Dina Cristo

A imprensa alternative possui duas grandes áreas: uma que introduz actores sociais, como pobres, trabalhadores, mulheres e jovens comuns, como principais sujeitos das notícias, outra que é realizada por pessoas ordinárias que participam directamente na realização do próprio trabalho jornalístico.

Mais do que servir de mera fonte de informação, o seu objectivo é a mudança para um todo social, cultural e económico mais equitativo no qual o indivíduo não seja reduzido a um mero objecto, dos “media” ou do poder político”, mas antes capaz de se realizar como Ser Humano na íntegra.

Comprometida com a vida de todos os dias e as necessidades comuns das pessoas, contra o sistema (capitalista), esta imprensa não convencional inova nos meios que usa. Deliberadamente não comercial, ela aposta na baixa finança, distribuição e circulação – a sua essência, pouco compreendida por Comedia, segundo o autor.

Assim, nos títulos em análise - “Counter Information”, “SchNews”, “Do or Die”, “Green Anarchist”, "Squall” e “The Big Issue”, sobretudo na década de 90 – existe reduzida publicidade e a existente, sobretudo relativa a bens como livros ou outros jornais de imprensa alternativa, permite-lhe ultrapassar um dos filtros de propaganda próprios dos jornais de “mainstream”, referidos por Noam Chomsky, facilitando, assim, a sua independência e liberdade.

A subscrição, os donativos, os subsídios, nomeadamente através de concertos musicais de beneficiência, são outras formas de se financiar além do trabalho não assalariado, espelho do seu próprio comprometimento para com um estilo de vida humilde. O trabalho tem, aliás, uma função educativa de encorajamento para outros envolvimentos e participações na produção. Mais importante do que o conteúdo é o trabalho dependendo grande parte do seu valor da atitude perante as relações de produção.

Muita desta imprensa é contra os direitos de propriedade intelectual e são frequentes as publicações gratuitas e livres. Vários autores e editores incentivam a cópia e distribuição de parte do material ou mesmo do seu todo. O que está em causa é o estímulo à troca de informação e um comportamento justo. Com a ajuda da tecnologia, como as fotocopiadoras, desde os anos 80 que a audiência é capaz de (re)produzir o jornal de forma barata, rápida e limpa.

Existem três métodos de distribuição aberta: uma dependente dos maiores canais de distribuição, outra em locais adaptados mas não criados para o efeito, como cafés, restaurantes ou lojas, e, por último, as “infoshops”, locais já especializados em divulgar informação diponibilizando aconselhamento, prestação de serviços e até salas de leitura ou pequenas livrarias de publicações alternativas - um conjunto de actividades variadas concertadas com a formulação de confrontação de ideias divergentes.

Em sequência da baixa finança e distribuição, a imprensa alternativa tem (com a excepção das “New Socialist” e “New internationalist”) um baixo nível de circulação, o que é visto por Comedia como indício de subdesenvolvimento de uma imprensa para o desenvolvimento. Contudo, Atton salienta que é sua essência este carácter não mercantilizado e sublinha a sua contribuição democrática ao promover a criação de uma Esfera Pública Alternativa. A sua força, e sobrevivência, estão na sua diversidade. Cem publicações com mil tiragens são cem vezes preferíveis a uma publicação com cem mil impressos em circulação, defende.

Ligada a movimentos sociais como, por exemplo, os ecologistas, anarquistas, feministas ou socialistas, os quais suporta, reporta e incrementa, a imprensa alternativa, por vezes radical, tem em vista a disseminação de ideias heterodoxas e dissidentes. Os bares, cafés, restaurantes, pequenas livrarias são hoje novos locais de discussão em substituição dos históricos salões e fóruns mediáticos. Trata-se de uma renovada esfera de autonomia, na qual experiências, críticas e alternativas se podem desenvolver livremente e onde o público pode expor e debater questões sociais e políticas independentemente do Estado.

Comedia vê na sua precariedade e pouca visibilidade a marginalização e fracasso. Contudo Atton sublinha que, longe de estar em competição com a imprensa de “mainstream”, com os seus produtos ou mercados, a imprensa alternativa possui uma estratégia económica também ela alternativa, métodos que a integra nos próprios movimentos que desenvolve, como a economia verde (ecologia) e a economia preta (anarquia). Só no Reino Unido, por exemplo, existem 25 publicações e 12 editores da responsabilidade de anarquitas.

As suas crises financeiras recorrentes devem-se sobretudo ao facto do rendimento ser integrado na própria vida dos seus participantes, como é claro no caso da “The Big Issue”, ao desenvolver novas formas de distribuição através de vendedores de rua (quase seis mil em Inglaterra), identificados, treinados e actuando de acordo com um código de conduta.

Descentralizada, a imprensa alternativa devolve às pessoas a voz directa e o pensamento independente. Rejeita o modelo vertical, do topo para a base, que a maior parte dos “media” preserva, e adopta a auto-gestão, onde as decisões editoriais e de produção são feitas colectivamente, e fomenta uma comunicação horizontal, entre escritores e leitores. As publicações são criadas, produzidas e distribuídas pelos destinatários para as quais existem. O sujeito, objecto de notícia, pode ser o escritor ou distribuidor das mesmas.

Esta imprensa é activa, mobilizadora e comprometida com as opiniões das minorias, como os não alinhados. Assuntos que não têm cobertura regular por parte de outros meios de informação e que são focados no âmbito da responsabilidade social e da expressão criativa. Alguma imprensa está mais ligada a um protesto em especial (caso do anti-nuclear na Alemanha), outra encontra-se mais vinculada a grupos específicos e às suas actividades, sendo o seu principal objectivo - não a informação factual ou opinativa mas antes - a acção sócio-política já referida.

A imprensa alternativa, concretiza a diminuição da distinção entre produtor e consumidor, um momento de transformação entre o “Nós” e os “Outros” numa aproximação que se materializa no caso da “The Big Issue”, em que ¼ de milhão de pessoas conversa com o vendedor sobre o problema social dos sem abrigo. Isto quando muita pesquisa, mesmo no âmbito do estudos críticos dos “media”, concebe a audiência activa de forma ainda longe de ser criadora e produtora. Um carácter que as fanzines souberam realizar.

Em suma, o movimento mediático expresso na imprensa alternativa (à institucional), focada na actividade, participação e mobilização, assume um aparato sócio-cultural pluralista com uma estrutura complexa e articulada ao nível da acção económica, organizacional e social num esforço para ser coerente com os princípios que defende, a nova esfera pública que empreende e os objectivos de contribuir para mudar para um sistema mais democrático, pluralista, equitativo, aberto, livre, justo e humano.

* ATTON, Cris – A reassessment of the alternative press in “Media, Culture & Society”, Sage Publications, London, 1999, vol.21, pág.51-76.

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