quarta-feira, 19 de março de 2008

Proibido morrer?


Homenagem às vítimas de Entre-Os-Rios

Antecedendo a Páscoa e a Primavera (época propícia a depressões) abordamos a morte e o suicídio, os últimos tabus, na adolescência e nos "media". Antecipamos a saída do novo livro de Abílio Oliveira, "Ilusões Na Idade das Emoções - representações sociais da morte, do suicídio e da música na adolescência", editado pela Fundação Calouste Gulbenkian.

Texto e fotografia Dina Cristo

«Numa sociedade que corre apressadamente para um futuro, sempre inatingível, a melodia interior que nos deveria sintonizar e equilibrar com os ritmos da natureza, e o sentido da vida que gostaríamos de perfilar, parecem-nos meros conceitos, longínquos e desvanecidos. E há sempre quem, um certo dia, grite: Tempus Fugit!, notando em si um «estranho vazio», mal-estar ou desconforto, como referem os Pink Floyd no célebre Time»
[1], afirma Abílio Oliveira, no seu mais recente livro, prestes a ser lançado no mercado editorial.
Nesta obra, baseada na sua tese de doutoramento, acrescenta o autor ser natural que alguém que «precisa de tomar decisões importantes, procure, constantemente, o melhor caminho a seguir. Talvez apenas no seu íntimo possa encontrar algo de seguro. Talvez tenha que arriscar para se conhecer, também através do que o circunda. Ao conquistar uma maior consciência da vida, por vezes pelo contacto próximo com a morte, o indivíduo pode entender que o suicídio não é mesmo uma solução»[2].
Segundo o mesmo investigador, a alternativa passa por cada um reencontrar o equilíbrio perdido, sem ter receio de se olhar e de chegar próximo «do outro», de estabelecer laços de intimidade, com a consciência de que, ainda «que se tropece de vez em quando, que cada dificuldade pode constituir um desafio, uma oportunidade de aprendizagem, um convite para um novo passo, cada vez mais firme e seguro, capaz de o conduzir mais profundamente e mais longe na Vida»
[3].
A auto-agressão poderá revelar uma forma de aproximação à morte… como forma de redescobrir (o sentido de) a vida. «Quando um jovem, em desespero, pensa seriamente em suicídio e chega a tentar a sua própria morte, encontra-se oprimido no limiar da dor e da tensão julgadas insustentáveis. O gesto suicida apela à nossa ajuda e simboliza o desespero supremo ou a recusa da vida, mostrando-nos uma vontade firme de não ser ou, talvez mais correctamente, de desaparecer para o que se tem sido, e ser algo diferente. Mais do que morrer, o jovem quer testar-se (...) e, no seu íntimo, ainda que não o refira, espera sobreviver e saber viver, consigo mesmo e com os outros, encontrar um objectivo que lhe reacenda a esperança esmorecida (ou perdida), a confiança e um sentido real para a sua vida»
[4].
De acordo com alguns dos resultados obtidos na investigação que este livro também resume, «em geral, a morte é também objectivada nas suas causas, como um fim incontrolável e não como o fim, na esperança de que exista vida para além do desconhecido»[5].
Morte interdita
A morte, em especial por suicídio, continua a ser “proibida”, quer ao nível dos rituais, que devem ser discretos, quer ao nível da sua expressão, dos sinais de luto. Fica implodida, nomeadamente a sua dor, intensificada com a rejeição do fenómeno, não sem marcas. «O interdito da morte e do suicídio dificulta a familiarização com algo de estranho (…), como o suicídio, e o desenvolvimento psicossocial dos adolescentes, como seres humanos.»
[6].
Vivemos numa “época desmorteada”, como lhe chama Abílio Oliveira, numa sociedade obcecada pela juventude e pelo domínio da vida sobre a morte, necrófoba que nega, rejeita, esconde e dessocializa o fenómeno: «Ainda que aconteça num contexto social público (ou hospitalar), é vivenciada em isolamento, de forma impessoal. Ninguém a deve referenciar ou dar-lhe importância. Tecnicamente admitimos a nossa morte mas, no quotidiano, agimos como se fossemos imortais»
[7].
«A meta é adiar e combater a morte e o envelhecimento em cada minuto da vida, com o apoio da ciência médica, da indústria da saúde e da informação dos media»
[8], explica Manuel Castells, que acrescenta: «À atitude antiga, onde a morte é, simultaneamente, familiar próxima, suave e indiferente opõe-se cada vez mais a nossa onde a morte mete medo a ponto de não ousarmos mais proferir o seu nome»[9].
Origens do tabu
Mas de onde veio o medo, a vergonha, o tabu em relação a um fenómeno (tão) natural? Nem sempre foi assim. A actual “crise de morte” (espelho de uma crise da própria vida, como afirma Abílio Oliveira), iniciou-se no final do Séc.XVI, com a doutrina escatológica saída do Concílio de Trento, no âmbito da Contra-Reforma religiosa, onde aparece o medo do juízo final, o paraíso e inferno, que tornou a morte ameaçadora e angustiante, os ritos mais pesados, a separação dos cemitérios das igrejas e ‘impôs’ o isolamento e o silêncio.
Até ao Antigo Regime a morte era algo familiar, ainda que a esperança de vida não fosse muito além dos 50 anos. O ser humano vivia em contacto permanente com o desaparecimento físico, através da peste, da fome e da guerra. Este, não só era aceite - fazia parte da vida social, o ritual era público, com grande cerimonial, mas sem dramatismo, as próprias crianças entravam nele – como as pessoas se preparavam para ele e conduziam, até poderem, o próprio ritual, pedindo perdão às pessoas que se aproximavam do seu leito. A morte era percepcionada como uma passagem para uma nova fase existencial, extra-terrena, e, por vezes, até ansiada. Saber morrer era uma arte.
Com a melhoria das condições de vida e a diminuição da mortalidade, sobretudo a partir do Séc.XVIII, a morte torna-se tabu, separa-se então cada vez mais da vida e tentam apagar-se dela todos os sinais. No Séc.XIX, a intolerância social face à morte aumenta e com ela a dor (emocional) que atinge os ritos funenários. «Claro que a expressão da dor dos sobreviventes é devida a uma intolerância nova quanto à separação. Mas não é só à cabeceira dos moribundos ou à lembrança dos desaparecidos que se comovem. Basta a ideia da morte para os comover»[11].
O Séc.XX “mata” a morte. «Durante o longo período que percorremos, desde a Idade Média ao século XIX, a atitude diante da morte mudou, mas tão lentamente que os contemporâneos não se aperceberam. Ora, desde há cerca de um terço de século, assistimos a uma revolução brutal das ideias e dos sentimentos tradicionais; tão brutal que não deixou de chocar os observadores sociais. Na realidade, trata-se de um fenómeno absolutamente estranho. A morte, tão presente e familiar no passado, vai apaga-se e desaparecer. Torna-se vergonhosa e objecto de interdição»
[12].
Na ânsia de a controlar, os seres humanos hoje escondem-na. A morte hoje é “vivida” como uma falha técnica e os nossos adolescentes percepcionam-na com pensamentos e sentimentos de medo e tristeza e também a desafiam, através dos comportamentos de risco. O suicídio «surge como a segunda causa de morte entre adolescentes (…) e há a considerar muitas mortes que resultam de acidentes sobre os quais paira a dúvida de terem sido intencionais (…) Acrescente-se que cerca de metade dos adolescentes que questionámos já teve ideias de suicídio e, também quase metade, conhece alguém que morreu por suicídio ou que tentou matar-se»
[13].
Suicídio nos “media”
Interdita e intolerada socialmente, a morte é, no entanto, exposta nos "media" sobretudo no seu lado mais espectacular e longínquo. «A tendência dominante nas nossas sociedades, como expressão da nossa ambição tecnológica e no seguimento da nossa celebração do efémero, é apagar a morte da vida, ou torná-la inexpressiva pela sua repetida representação nos media, sempre como a morte do outro, de forma que a nossa própria morte seja recebida com a surpresa do inesperado. Ao separar a morte da vida e ao criar o sistema tecnológico para fazer com que esta crença dure tempo suficiente, construímos a eternidade durante a nossa existência. Tornamo-nos assim eternos, excepto por aquele breve instante em que seremos envolvidos pela luz»
[14], afirma Manuel Castellls.
E como é que é representada a morte, especificamente o suicídio, na imprensa portuguesa? Olga Ordaz Ferreira respondeu a esta pergunta e concluiu, no seu estudo em 1995, que há dois tipos de representação do fenómeno. Um primeiro, que inclui os jornais Semanário, Independente, Expresso, Público e Diário de Notícias em que há uma abordagem diversificada do fenómeno, dos personagens e das causas. Neste, caso, por exemplo, os jornais salientam, para além da falta de integração social, o estilo de vida e a auto-percepção. No segundo tipo, que integra os jornais Crime e Correio da Manhã, em que predomina uma visão mais uniformizada, ao nível das metáforas, da imagem do suicida e das causas do fenómeno, centradas na falta de integração social e num comportamento desviante.
Entre os vários tipos de morte (natural, por doença ou acidente), a ocorrida por suicídio, trágica e controlada, é, talvez, a mais intensa e difícil de aceitar, mas «não há nenhuma sociedade ou micro-cultura, qualquer que seja o período histórico considerado, onde não exista suicídio, embora gerido em cada uma delas de forma diferenciada, conforme a sua mentalidade e ideologia específica sobre a vida e o seu valor social simbólico, sobre a morte e o significado após a morte»[15].

[1] OLIVEIRA, Abílio – Ilusões. Na Idade das Emoções (representações sociais da morte, do suicídio e da música na adolescênci). Lisboa. FCT/Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, pág. 417. [2] Idem, ibidem. [3] Idem, ibidem.[4] Idem, pág.416. [5] Idem, pág. 409. [6] Idem, pág. 412. [7] Idem, pág. 93. [8] CASTELLS, Manuel – A sociedade em rede. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, pág.583. [9] ARIÈS, Philippe – Essais sur l `histoire de la morte en Occident du Moyen-Age a nos jours. Ed. Seuil, Paris, 1975, pág. 28. [10] A demografia do Antigo Regime e a família – temas de história 3, Edições Sebenta, s/d., pág.85. [11] A demografia do Antigo Regime e a família – temas de história 3, Edições Sebenta, s/d., p.85. [12] Idem, ibidem. [13] OLIVEIRA, Abílio – Ilusões. Na Idade das Emoções (representações sociais da morte, do suicídio e da música na adolescência). Lisboa. F.C.T./Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, pág.410. [14] CASTELLS, Manuel – Op.cit.,pág.585. [15] FERREIRA, Olga – Representações sociais do suicídio na imprensa escrita, tese de Mestrado. Lisboa. ISCTE. 1995, pág.120.

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3 Commentarios:

Anonymous Anónimo disse...

Estando na a semana que antecede a Páscoa, é importante saber que para além desta quadra festiva que todos comemoram a ressurreição de Cristo, tristemente poucos se lembram de que este momento só é possível pelo facto de Jesus Cristo ter aceite vir a terra para sofrer e morrer por nós, sem sequer ter usado os seus poderes para se libertar deste sofrimento. Conveniente seria se preocupássemos também com questões espirituais e causas mais humanitárias, por ele e por nós, pondo de parte certas dependências com o bem material e o profano, direccionando as nossas atenções para o divino.
Pascoal de Carvalho

quarta-feira, 02 abril, 2008  
Anonymous Anónimo disse...

Informo que o programa para as segundas Jornadas de Sociologia “A Morte na Sociedade Contemporânea”, a decorrer no dia seis de Junho de 2008, no auditório da Faculdade de Economia da Universidade do Algarve, pode ser consultado em:
http://www.fe.ualg.pt/files/II_jornadas_soc.doc

sábado, 31 maio, 2008  
Anonymous Anónimo disse...

A referida obra de Abílio Oliveira, “Ilusões da idade das emoções”, será lançada Sábado, dia 28 de Junho (de 2008). O livro, editado pela Fundação Calouste Gulbenkian, será apresentado por Carlos Braz Saraiva, médico pasiquiatra, na livraria Bulhosa em Lisboa (Campos Grande, nº10-B, junto à rotunda de Entrecampos), pelas 17 horas.

quinta-feira, 19 junho, 2008  

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