quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Hora da saudade


O capitão tem 87 anos e recorda-se dos tempos em que decidiu seguir a vocação marítima. Embarcou na aventura da frota bacalhoeira portuguesa, rumo às águas da Gronelândia. Pescou bacalhau à linha entre 1943 e 1946. Um ano depois passou para a pesca de arrasto, onde se manteve até 1953.

Entrevista e fotografia Luís Manuel Martins 


Em 1937 era lançado pela Emissora Nacional de Radiodifusão o programa “Hora da Saudade”, dirigido à diáspora portuguesa no continente americano e à frota bacalhoeira nacional em campanha na Terra Nova. Apresentado por Curado Ribeiro, tornou-se rapidamente num dos programas mais famosos e marcantes de sempre da rádio em Portugal. O capitão João Braz, um velho “homem do mar”, evoca, numa entrevista única, as emoções vividas através das ondas da rádio, esse sopro mágico de vida que um dia soou mais alto, nos recônditos mares do Norte.

Capitão João Braz, como é que se processava a pesca do bacalhau há setenta anos?

Numa altura em que armadores portugueses se agitam e num ano em que perfaz 70 anos sobre a inauguração do programa radiofónico “Hora da Saudade”, publicamos uma entrevista a João Ramalho Braz, natural da Figueira da Foz.


As campanhas da pesca do bacalhau duravam, habitualmente, cerca de seis meses. A faina estava centrada nos lugres. Inicialmente, esses navios à vela navegavam sem sistemas eléctricos a bordo, pelo que a iluminação era assegurada por velas e candeeiros a petróleo. A vida a bordo era muito dura. Os navios partiam e voltavam de Portugal sem receber qualquer notícia, uma vez que não havia comunicações via rádio.
Na Terra Nova os lugres não iam a terra, seguindo uma prática que estava estipulada na época. Muitas vezes só à chegada é que se sabia que tinha morrido alguém. Os mortos eram atirados ao mar. Estou-me a referir aos navios à vela. O sistema em que eu andei mais foi em arrasto, onde a vida já era diferente. O pessoal já não saía de bordo, o navio é que pescava com uma rede a reboque. Nos lugres pescava-se ainda em botes a remos – os dóris – onde cada um pescava à sua vontade onde queria. Depois à tarde o capitão tinha uma hora a que içava uma bandeira. Os pescadores viam-na ao longe e regressavam com o peixe que tinham a bordo. A pesca acabava entre as vinte e três horas e a uma hora do dia seguinte, conforme o quantitativo que havia sido pescado e conforme a hora em que haviam começado o trabalho. O tempo de descanso nos lugres nunca excedia as cinco horas.
Nessa altura esses navios tinham más condições que mais tarde desapareceram. O navio estava fundeado, os dóris chegavam a bordo, descarregavam tudo o que os pescadores tinham. Os pescadores tiravam o peixe de dentro do bote e depois escalavam-no, salgavam-no. Quando acabava o trabalho, entre as 23 horas e a meia-noite, o capitão estava no porão do navio a ver a salga, que era a parte que exigia mais assistência, para o peixe não se estragar. Quando o capitão chegava cá acima perguntava que horas eram, já que não era hábito usar relógio de pulso. Lá lhe diziam: “Onze e meia!”. Ele fazia logo as contas e respondia: “Louvados às cinco horas da manhã!” Louvados era o mesmo que “levantados”.
O pessoal depois comia alguma coisa, deitava-se a dormir completamente vestido. Os pescadores não mudavam de roupa com frequência. Quando um grupo ia dormir, entravam logo dois homens de vigia. O navio estava ancorado. Não havia ainda motores nesse tempo. Estou-me a referir aos anos 35 e 36. Os vigias que rodavam de acordo com uma escala diária de serviço alertavam a tripulação no caso de se levantar uma tempestade de repente ou de vir um icebergue em direcção ao navio. Era muito trabalho para tão pouco rendimento. Um quilo de bacalhau nessa altura custava aí, em qualquer loja, quinze escudos e agora custa muito.
Quando os navios regressavam à Figueira da Foz, eram obrigados por lei a responder a um questionário feito pelo Capitão do Porto, à distância, através do Código internacional de Bandeiras. Cada navio tinha uma forma gráfica de apresentar o seu nome. O “Foz do Mondego”, onde andei, tinha como código as iniciais “SSPR”. O sistema de comunicação por bandeiras entre os navios, inventado pelo inglês Frederick Marryat, estava sistematizado num manual de referência.

Como é que é composto esse sistema de comunicação com recurso a bandeiras, que referiu?


Não consigo precisar. Os paquetes e os grandes navios comerciais terão sido os primeiros a receber esse tipo de tecnologia. A Lusitânia – Companhia Portuguesa de Pesca colocou o primeiro posto emissor/receptor da frota pesqueira num navio bacalhoeiro seu chamado “Trombetas”. Foi um caso pioneiro, ainda que não tenha sido seguido de imediato por outros navios. Os sistemas de radiocomunicação foram instalados muito gradualmente. Mais tarde, com a entrada dos arrastões na pesca do bacalhau – navios mais sofisticados – passou a haver telegrafista a bordo e aparelhos para poder transmitir e receber notícias, entre navios e estações costeiras. Finalmente podíamos comunicar com o exterior. Eu falei muitas vezes com a minha mulher. A empresa armadora passava a estar disponível permanentemente, em caso de necessidade.

Em que medida é que as campanhas lucraram com a radiocomunicação?
As comunicações constituíram um auxílio precioso para a navegação e rotina diária da pesca. Pela primeira vez o telegrafista podia contactar com a estação costeira da Terra Nova, para nos dar um azimute, ou seja, a direcção, a posição que nós tínhamos em relação à costa. Traçava-se esse dado no mapa e apurava-se, na medida do possível, a localização aproximada. Era muito difícil obter a demarcação exacta do navio, já que a Terra Nova estava sempre muito sujeita a nevoeiros e não havia possibilidade de poder observar o sol e as outras estrelas, como meio de orientação. Uma das vantagens mais importantes da radiocomunicação foi poder falar directamente para os pilotos da barra, quando havia necessidade de ir ao porto de Saint John, por motivo de doença e morte de tripulantes, ou de avarias nos sistemas internos dos navios. O telegrafista era o elemento-chave que assegurava as comunicações.

As novas tecnologias aplicadas à navegação foram uma grande prioridade da frota bacalhoeira nesse período?
Sim, sem dúvida. No que a radares diz respeito, por exemplo, foi no ano de 1950, salvo erro, que vieram para Portugal os dois primeiros radares, ao abrigo do célebre Plano Marshall. Um deles foi implantado num navio de comércio, que não posso precisar o nome, não sei se foi o “Pátria” ou se foi o “Império”. O outro radar veio para a Figueira da Foz para o primeiro arrastão em aço fabricado aqui, nos Estaleiros Navais do Mondego – o “Comandante Tenreiro” – um navio para o qual entrei como imediato no ano seguinte. O radar auxiliava-nos muito, porque as tradicionais zonas de pesca da Terra Nova estavam muito sujeitas a nevoeiros cerrados. Não havia grande perigo de afundamento dos navios, porque a velocidade a que se deslocavam a arrastar as redes rondava as três milhas (cerca de 5,5 quilómetros por hora). Ainda assim era uma enorme vantagem e privilégio poder contar com um radar a bordo.

Qual era o impacto do programa “A Hora da Saudade” da Emissora Nacional na frota bacalhoeira portuguesa em campanha na Terra Nova?
É bom recordar que o programa só foi possível de ouvir quando os navios começaram a dispor de meios de recepção. Ouvíamos a “Hora da Saudade" com muita satisfação. O pessoal que estava a trabalhar, normalmente de noite, escutava o programa através de um altifalantezinho. Se o capitão ou alguém estava a ouvir, dizia logo: “Ó João, a tua família está a falar na rádio!”. Se havia a possibilidade de ouvir facilmente, tudo bem. Mas parar o serviço, nunca paravam. O programa “Hora da Saudade” era muito bem recebido, porque as pessoas gostavam muito de ouvir os familiares. Mas a vida era tão pesada, tão trabalhosa... Não posso agora precisar quando é que começaram as emissões da “Hora da Saudade”. Numa fase inicial, o programa proporcionou-nos uma oportunidade fantástica de poder comunicar com a família, quando ainda não havia telegrafista. Com a “Hora da Saudade” estabelecíamos uma forte ligação à nossa casa, à nossa terra. Durava pouco, mas sabia muito bem. O procedimento mais usual era, quando os pescadores estavam a trabalhar, o capitão ia de imediato ouvir as mensagens recebidas em directo a partir de Portugal, retransmitindo-as de seguida pelo navio.


O Código Internacional de Sinais é composto por 26 bandeiras alfabéticas (cada uma com significado próprio), dez numéricas, três substitutas e um galhardete de código ou reconhecimento. O manual de que falei continha o meio de formulação de todo o tipo de perguntas através das bandeiras, por exemplo: “De onde vens?”, “Qual o nome do teu navio?”, “Tens doentes a bordo?”. O interrogatório costumava demorar entre uma e duas horas. Içavam-se as bandeiras e dava-se um sinal de reconhecimento. Normalmente as perguntas eram feitas a partir de terra daqui para os navios. Como este procedimento se havia tornado usual em todas as viagens, já se sabia as perguntas de cor. O que conto situa-se por volta de 1930/1940. Recordo-me de ir às vezes em rapaz, aí pelos meus quinze anos, ao pé do Forte de Santa Catarina, na Figueira da Foz, ver esse cerimonial.

Desde quando é que passou a haver sistemas de radiocomunicação nos navios bacalhoeiros?

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