Nesta terceira parte focamos os prosadores da Casa de Avis, o papel fundamental de D. Duarte e D. Pedro.
Texto Dina Cristo
A criação literária (produção de livro e leitura) desenvolveu-se na Corte portuguesa do séc.XV. Os príncipes organizam livrarias, redigem grandes compilações históricas, fazem traduções e são, por vezes, autores de obras originais. O advento da Dinastia de Avis intensificou na Corte o interesse por vários problemas. Os dominantes nas obras que restam dos príncipes de Avis encontram na prosa a sua expressão mais apropriada. Entre essas obras incluem-se “O livro da montaria”, “A ensinança de bem cavalgar”, “O Leal conselheiro” e “A virtuosa benfeitoria”.
“O livro da montaria”, de D. João, foi escrito entre 1415 e 1433. Liga-se a uma série de trabalhos como “O livro da Falcoaria”, “Livro de Alveitaria”, “Livro de Cetraria”. O livro de D. João contém muito mais matéria literária que estes. Principia por uma classificação escolástica dos encantos da caça montês e faz algumas apreciações sobre o prazer saboreado da caça.
A linguagem é rica de vocábulos e metáforas provenientes da gíria dos caçadores. A construção da frase é enredada e com anacolutos
[1], o que sugere um público e um autor pouco afeitos à disciplina literária. Algumas páginas revelam o encanto do ar livre.
“A ensinança de bem cavalgar” tem mais do que um propósito pedagógico e social amplo. D. Duarte parece querer restaurar o culto da equitação. O saber andar a cavalo exigia a prática de uma disciplina sobre os instintos e o medo.
D. Duarte e D. Pedro
“O Leal conselheiro” de D. Duarte é mais declaradamente moralista. Pretende oferecer à nobreza e príncipes normas e modelos de conduta. Por isso expõe uma teoria segundo a qual a vontade inteligente predomina sobre as outras faculdades da alma. Expõe também um tratado sobre as virtudes e sobre os pecados e entra por toda a espécie de digressões e apartes. D. Duarte, ao lado de conceitos e divisões escolásticas, dá considerações e exemplos da sua experiência pessoal, faz análises introspectivas, por vezes com grande subtileza, nomeadamente entre as diversas formas de tristeza. É a primeira vez que, na língua portuguesa, um autor procura analisar subjectivamente uma vivência pessoal e interessar os outros com problemas do seu existir e se tenta definir “saudade” como expressão de um sentimento ambivalente.
A originalidade de “O leal conselheiro” está no caminho que o autor percorre e não no fim a que se dirige. D. Duarte conta a sua experiência para ensinar aos leitores como hão-de resistir às tentações do pecado. Foi compilado em 1437 ou 1438.
"A virtuosa benfeitoria" de D. Pedro (regente de Portugal) tem também um propósito moralizante e normativo mas uma estrutura e matéria muito diferente de “O leal conselheiro”. O autor pretende expor a teoria do feudalismo.
O livro apresenta o mundo como uma pirâmide em degraus em que Deus é o vértice e os irracionais a base. O que liga os diversos graus da hierarquia é o prémio que o superior dá ao inferior pelos serviços - o benefício, a Benfeitoria.
O infante D. Pedro e, até certo ponto, o Rei D. Duarte colocam-se exclusivamente no ponto de vista do príncipe ou Senhor; consideram a autoridade destes como uma ordenação divina, ignorando a ideia da soberania popular (já aflorada por S. Tomás e implícita na elevação da Casa de Avis ao trono).
Ambas as obras testemunham o predomínio da ideologia da nobreza (que procura fortalecer a sua autoridade numa sociedade em que a direcção política era disputada por diversos grupos sociais). D. Pedro compara a sociedade ao corpo humano onde à cabeça aristocrática cumpre dirigir e aos membros vilãos trabalhar. Mas as pretensões de melhor acesso ao governo pelos vilãos e a recente Dinastia de Avis, que devia o trono a uma eleição das Cortes, levam os dois príncipes a problematizar o poder que exerciam. D. Duarte medita sobre a sua própria função de príncipe e idealiza o seu exercício sob uma norma racional e “virtuosa”.
Grandes diferenças separam as duas obras. D. Pedro (“A virtuosa benfeitoria”) coloca-se num ponto de vista objectivo – é em função da sociedade que procura determinar as normas de conduta individual. D. Duarte (“O leal conselheiro”) situa-se num ponto de vista moral subjectivo. Quem julga as acções dos homens é a consciência e em última análise os mandamentos da Igreja.
“A virtuosa benfeitoria” (acabada por um clérigo) tem uma estrutura escolástica: citações, subdivisões a partir de definições de conceitos, argumentação de prós e contras. O tratado é uma tentativa para transpor em língua portuguesa as formas típicas da literatura escolástica.
“O leal conselheiro” apresenta uma disposição mais irregular e o pensamento do autor (registado inicialmente em apontamentos dispersos) segue uma linha sinuosa e trata vários temas que vêm a talho de foice. O livro é o primeiro esboço de uma literatura de tipo novo. Por isso, pela concreta experiência pessoal que reflecte (nomeadamente a reacção do autor contra o humor merencório) pelo quadro de convivência do lar paterno, “o leal conselheiro” tem maior interesse literário.
Inovação
A redacção em língua portuguesa destas obras oferecia grandes dificuldades. A língua estava pouco ajustada à expressão das ideias (discussões abstractas) que normalmente eram em latim. O português exercitara-se quase exclusivamente na narrativa; o escrito não se afastava muito da língua falada (nomeadamente no romance de cavalaria e crónicas de Fernão Lopes) pelo menos quanto ao ritmo e à estrutura periodal. O escritor destinava o seu livro à leitura em público. O ritmo da frase, as pausas e suspensões eram confiadas à competência do leitor assistente.
O que acontece com “O leal conselheiro” e “A virtuosa benfeitoria” destinavam-se não já tanto à leitura em voz alta para ouvintes como individual de gabinete. D. Duarte refere-se não só aos ouvintes como também aos leitores do seu livro e dá-lhes conselhos: que leiam devagar, com atenção e determinando as pausas adequadas ao texto. D. Pedro tem consciência da dificuldade de criar uma língua literária distinta da fala coloquial (as pausas da língua escrita, sinais de pontuação que são mais frequentes do que na fala).
O latim foi a língua sobre a qual a prosa doutrinal portuguesa apoiou os primeiros passos, quer na forma quer em vocábulos. D. Duarte socorre-se frequentemente de latinismos embora condene o seu uso imoderado (como abstinência, infinito, fugitivo, evidente, sensível, intelectual, circunspecção). As melhores páginas de “O leal conselheiro” são aquelas em que medita sobre a língua.
No seu esforço para criar uma expressão rigorosa, os novos prosadores são levados a adoptar também latinismos sintáticos, como a transposição do verbo para o fim da frase, abuso da oração infinitiva como acontece com D. Duarte. Ainda conjunções subordinativas. A dificuldade destes novos domínios faz com que se encontre frases enoveladas em que se perde a construção que liga o começo ao fim. “A virtuosa benfeitoria” é de exposição muito mais fácil, com períodos de estrutura mais sólida. A obra situa-se no terreno da discussão escolástica e parafraseia “De beneficiis”de Séneca.
[1] Figura de sintaxe em que um termo se acha como que solto na frase, sem se ligar sintaticamente a outro.
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