quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

O coelho na (car)tola


Nesta 33ª edição do Festival Internacional de Cinema do Porto, revisitamos uma das críticas de sétima arte, de um antigo director do Cineclube da cidade, originalmente publicada no jornal “O INtEndido”*.
Texto Fernando J. Pinto Basto
Ao som de Echo & the Bunnymen (não por acaso, esta banda e a canção chama-se “Killing Moon”, aliás nada neste filme é ao acaso) somos introduzidos na mente de Donnie Darko, adolescente suburbano de uma pacata cidade norte-americana estilo Twin Peaks. Só que neste caso não se trata de saber quem matou Laura Palmer, mas sim quem tramou o Frank Rabbit. Este coelho vindo da “Quinta Dimensão” tem muito que dizer a quem o queira ouvir e Donnie Darko é o super-herói escolhido para levar a cabo a missão impossível de um regresso ao futuro numa puritana América pós-Reagan; estamos em 1988 e as presidenciais são disputadas entre Dukakis e George Bush (sem o W.).
Nada de novo neste capítulo, tal filho, tal pai, o desfecho da eleição já o sabemos, mas não poderemos saber porque é que o mundo de Donnie Darko irá acabar antes que o céu lhe caia em cima da cabeça. Esta, a propósito, não anda a regular muito bem (será culpa dos comprimidos? Da família? Da escola? Da cidade?) e de repente parece que já estamos no ET, parte 2, até entra a mesma miúda, agora mais graúda, mas no céu não voam bicicletas, só aviões com disfunções.
A convocação “cinéfila” dos filmes da sua vida é por demais evidente, pois esta película é uma manta de retalhos bem urdida por uma mente brilhante, a do jovem realizador, Richard Kelly, que certamente cresceu a ver os grandes êxitos cinematográficos dos anos 80 e a ouvir a música do nosso (des)contentamento. Numa breve história de duas horas, somos transportados para a dimensão do tempo em que o destino se altera quando encontramos um “buraco de verme” e no final, Donnie Darko terá razões para pensar que it`s the end of the world as we know it… and I feel fine!.
*PBX – O coelho na (car)tola in O INtEndido – Jornal do GDINE – Norte, nº7, Dezembro de 2002, pág.10.

Etiquetas: , ,

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

A Comunicação Oculta IV



Neste quarto artigo focamos um dos principais canais de Comunicação: a Humanidade.

Texto e desenho* Dina Cristo

Cada Ser Humano é um ponto de encontro entre a linha horizontal, temporal (Prácrito, yin), e o braço vertical, espacial (Purusha, yang), entre o Alfa (passado) e o Ómega (futuro), o Céu e a Terra. Ele está no centro, o ponto de intersecção, que lhe permite conciliar realidades aparentemente opostas, harmonizá-las, sintetiza-las e transcende-las.
A Humanidade é o meio de comunicação por excelência entre diferentes mundos. Completado através do fogo mental, recebido na terceira raça, como vimos, é a primeira Hierarquia Criadora completa, com acesso quer à Tríade Superior, o Céu, a dimensão Super-Humana, Divina, do mais elevado Espírito, quer ao quaternário inferior, o inferno, a dimensão sub-humana, animalesca, da mais densa matéria.
É o corpo mental[1], dual e paradoxal (dado o carácter concreto e Abstrato), que permite aos humanos serem uma ponte que liga, ou separa, os deuses e Mestres das bestas e feras, conforme for mais ou menos activado o plano Mental Superior, e construída a escada[2] de Jacob, o antahkarana, o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, a separatividade, unindo o Eu Superior à personalidade, na vindoura sexta sub-raça.
Nessa altura será manifestada a Alma Humana, intermediária entre a Alma Espiritual - Sobre-Natural, Intuicional, Eterna, Noética, detentora de conhecimento directo, intrínseca aos Filhos de Deus, a Matéria da Deusa Virgem e Pura - e a Alma animal, natural, emocional, psíquica, tentadora e perecível, propícia a (des)ilusões, inerente ao homem e à mulher sub-desenvolvidos, alienados, condicionados, escravizados, impotentes e vulgares, os Filhos da Mulher, prostituta.
A mediadora é a Alma Humana - a Esfinge, enigmática e frenética - racional, imperecível, de nível causal, própria do Ser Humano desenvolvido, Senhor de si mesmo, com poder e livre arbítrio, o Filho do Homem. Este é, pois, o verdadeiro medium: «O homem é um ponto de encontro e um lugar de transmissão, uma charneira ou um foco de difusão»[3].
O Ser Humano é, através do seu nível de consciência mental, quem casa verdadeiramente o mais elevado nível de Espiritualidade e o mais baixo de selvajaria. Como a alma, em sentido lato, é a mediadora, o Software, entre o Pai - o Programador, o Espírito, o Transcendente, a Vida, a Subjectividade - e a Mãe, o hardware, a Matéria, o imanente, a forma, a objectividade.
Como escreveu Alice Bailey, por «(…) meio do centro divino de inteligência activa a que chamamos Humanidade, o quarto reino da natureza actuará, oportunamente, como um princípio mediador para os três reinos inferiores. A Humanidade é o divino Mensageiro para o mundo da forma»[4]. O quatro é a via central, a meio da perfeição, o sete, final do caminho, capaz de estabelecer a ligação; é o caso do quarto Raio do Equilíbrio, da Lei da Harmonia como do Chakra Cardíaco[5].
Comunicação celular
O facto do Ser Humano ter sido criado à imagem e semelhança Divina (com planos de frequência equivalentes) dá-lhe proporcionalidade, compatibilidade e possibilidade de entrar em interacção com Essa realidade mais subtil, nomeadamente através das glândulas endócrinas, sobretudo a timo e a pituitária, que lhe permite uma simbiose com o subliminar universal, e a tiroide, que lhe faculta a ligação entre a Tríade Superiora e o quaternário personalístico.
A Humanidade dispõe de centros cerebrais, estruturas a desenvolver, que são autênticas portas de acesso ao subliminal. É o caso do terceiro ventrículo, dos tálamos ópticos, da epífise (glândula pineal, o terceiro olho) como dos tubérculos quadrigémeos em relação ao lado pré-frontal. O corpo caloso, um feixe composto por dezenas de milhões de fibras, assegura a ligação entre os dois hemisférios.
Lembramos que o hemisfério da esquerda, da mente concreta, está ligado à lógica, ao raciocínio, à análise, ao planeamento, ao conhecimento, à linguagem verbal como ao passado, e o hemisfério da direita, da Mente Abstracta, do futuro, para além da lógica racional, do explícito e do dito - relaciona-se com a linguagem não-verbal, a Intuição, a Comunicação ou a Criatividade.
O próprio Sistema Nervoso Central (SNC) comanda todo o corpo humano, órgãos, células e periferia, através do seu centro distribuidor, o hipotálamo, que recebe, descodifica os significados e envia um registo para o subconsciente. Esta zona cerebral à volta do ventrículo (que regula a temperatura, o sono e o metabolismo) sabe onde guardar a mensagem (para)simpática captada e para onde a retransmitir.
O corpo humano é um alto sistema de comunicação celular, onde se processa a recepção, tratamento e envio da informação captada. A casa humana é constituída por dezenas de triliões de células, uma espécie de tijolos inteligentes, que transportam no seu núcleo, o ADN, átomo-permanente com informação codificada sobre as características hereditárias.
Cada célula contém a mesma informação genética, um texto, que interpreta, com as instruções sobre como construir o organismo humano. Para que não se perca ou corrompa, o ADN é quase todo copiado por enzimas e as sequências terminais aumentadas pelas telomerases, até atingirem um tamanho mínimo.
Primeiro, a mensagem passa do exterior para o interior da célula. Os carteiros são as proteínas e, à superfície, os marcos de correio são os ligandos. Depois os sinais transmitem-se ao núcleo, através da cedência de electrões. Todas as células se (in)formam por impulsos eléctricos, radiações e circuitos empáticos que transportam significado.
Cada uma tem a sua própria família, padrão de ressonância, vibração, papel e tipologia. As células sensoriais sinalizam e reagem, provocando sensações, face aos estímulos que captam (conscientemente), desde que compatíveis com o seu filtro selectivo, relacionado com a memória de experiências anteriores, como salientou Lucienne Cornu.
No cérebro[6] existem (milhares de) milhões de células nervosas, uma espécie de gatekeepers que decidem, ou não, (re)transmitir o sinal detectado. Há milhares de possibilidades de contactos, conexões e fluxos electro-químicos (sinapses), de entradas e propagação de ondas, através do axona, o emissor, e saídas, através das dendrites, as suas extensões.
Quando os neurónios são activados, estimulados e excitados libertam neurotransmissores, mensageiros químicos cerebrais - uma corrente de energia eléctrica que leva a mensagem às outras células nervosas. Trata-se de um cordão fibroso que transmite impulsos nervosos, portadores de codificação, geradora de percepções, e de significação, fomentadora de interpretações.
É a informação, o fluxo eléctrico e luminoso, existente nos “vacuos” ou cavidades, como os ventrículos, que - à semelhança de Fohat, a um nível Macro-Cósmico – permite, assim, organizar, estruturar e dar forma à matéria (virgem). Para manter a ordem, e evitar a entropia, é vital o fluxo de energia, seja ao nível estruturante seja ao nível circulante.

 * Anos 70

[1] Trata-se do fogo de Prometeu, atribuído na terceira raça-raiz, aquando da divisão sexual, como vimos no artigo anterior. [2] «Pois deveis saber que é por uma e a mesma escada que a natureza desce à produção das coisas, e que o intelecto ascende ao conhecimento delas», ensinou Giordano Bruno, no diálogo cinco, em “De la causa, Princípio te uno”. [3]  CLUC - Introdução à Sabedoria e Técnicas Grupais, CLUC, 1ª ed. 1990, pág.52 [4] BAILEY, Alice – Astrologia esotérica, Vol.III, Tomo I, Association Lucis Trust, 1ª ed. 1997, pág. 133. [5] É também o caso das folhas de uma árvore, entre a raiz, o tronco e os ramos, por um lado, e as flores, os frutos e as sementes, por outro, ou ainda do verde do Arco-Íris, entre o vermelho, laranja e amarelo, e o turquesa, índigo e violeta.
[6] O cérebro é constituído pela região réptil, sede da vida física e automática, região límbica, génese das emoções, e região cortical, dos comportamentos inteligentes, livres, autónomos e originais.

Etiquetas: , , ,

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Arriscar


Às portas da comemoração dos 170 anos do nascimento de Teófilo Braga, presidente da República que se dedicou ao estudo da literatura, focamo-nos num livro* de contos.
Texto Dina Cristo
Era uma vez um mocho, que não conseguia dizer “who”, um pato que não sabia dizer “quac”, um pássaro que havia sempre tentado ser outro, uma borboleta e Dina, uma delicada cadela, habituada ao aconchego mas também às limitações da sua dona, preocupada e insegura.
Um certo dia a cadelinha sai do quarto, onde normalmente vivia, e, bem longe dali, depara-se com um mundo novo, pleno de novas experiências; a borboleta decide desfrutar da vida intensamente; o pássaro percebe o quanto era bonito, especial e único como cuco e o mocho e o pato, que haviam sido expulsos da sua comunidade, descobrem que não eram as palavras desejadas que os faziam ser quem eram.
Os contos sugerem a importância de ultrapassar o medo, a dúvida, a preocupação, a submissão ao julgamento (próprio e alheio) que dificulta a mudança em direcção à confiança, ao amor, à auto-estima e à liberdade de expressão. Para encetar este círculo virtuoso é necessário saber arriscar o suficiente e atrever a fazer ou dizer algo novo, inovador ou diferente do habitual.
O ser humano é como uma garrafa, que se enche de amor ou se preenche de medo. Quanto mais espaço ocupar a emoção receosa, o ter e fazer coisas, menos espaço sobra para o sentimento amoroso, menos disponível está para ser e amar-se a si mesmo e aos outros, já que “quando alguém se ama plenamente a si próprio, também pode amar toda a gente”.
Para cada um se encher de amor e gostar de si mesmo, começar a confiar no seu ser mais profundo e na sua grandeza interior, assimilar a realidade também com o coração e se realizar, pode começar por perguntar-se sobre o que é o pior que lhe pod(er)ia acontecer. Superar o medo aumenta a estima, a preciação e a valorização - é o esforço necessário para se vencer, conquistar a si mesmo e vislumbrar o reino amoroso.
Em vez de fugir, evadir-se ou escapar-se, através da inconsciência, por exemplo, é fundamental enfrentar e, assim, aprender com a experiência e crescer. A pessoa pode, então, acreditar que, se em alguma altura do percurso se perder, a voz interior indicará (um)a saída e, assim, começar a descobrir que, além do medo e da dúvida, a alegria também faz parte da vida; viver é, além de "fazer" e "ter", também "ser" e o medo é nada mais do que o avesso do amor.
* FISHER, Robert; KELLY, Beth – O mocho que não conseguia piar. Pergaminho. 2004.

Etiquetas: , ,

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

O bichinho da rádio

Precisamente no dia que mundialmente lhe é dedicado, publicamos um texto, escrito há 17 anos, sobre os motivos por detrás da paixão que suscita entre profissionais e ouvintes.
Texto e fotografia Dina Cristo
O fascínio da rádio, quer para quem a executa quer para quem a ouve, deve-se ao predomínio do audível e à presença do invisível, às suscitações que um elemento como a voz desperta. Enquanto meio predominantemente sonoro, é constituído por uma dupla ausência – como lhe chama Fernando Curado Ribeiro – na medida em que “aquele que fala não vê o que escuta; o que escuta não vê o que fala”[1].
Esta característica, per si, desencadeia a faculdade de representar no espírito as pessoas e/ou os objectos ausentes. Cria-se a partir desse instante as mais diversas concepções acerca do que é dito, sugestionado também pela forma como tal é realizado. “Para tanto, até inconscientemente ele [o ouvinte] trata de reconstituir na sua imaginação o espectáculo que mais lhe convém, para melhor compreender o que lhe explicam pelo som”[2].
Se, por um lado, o ouvinte reconstitui o rosto de quem fala, este, emergido num estúdio de rádio, tem virtualmente, por seu lado, todas as faces e os corpos dos ouvintes que se dignar imaginar. É, digamos, um duplo fascínio que passa por esse elemento vital que é o som. “Pela sua forte ressonância psicológica e pela importância dos afectos que põe em jogo (pela ausência, nomeadamente de todo e qualquer elemento visual), a voz, e na rádio em especial, abre o espaço do imaginário onde o ouvinte, por exemplo, reconstrói o corpo daquele que fala a partir do que lhe é sugerido pela sua voz”[3].
A voz constitui-se, assim, como peça fundamental neste puzzle. A propósito dos tempos em que a televisão não existia, Michel Tournier sublinha a sua importância: “Permanecendo sem rosto e sem olhar, as vozes só ganhavam em mistério e a sua magia actuava por vezes com uma eficácia tremenda sobre os homens e as mulheres em estado de escuta. Recorde-se que em muitas religiões os decretos divinos se menifestavam por intermédio de uma voz vinda das alturas de um céu vazio. Assim apareciam os locutores ao grande público, criaturas incorpóreas e dotadas de ubiquidade, ao mesmo tempo todo-poderosas e inacessíveis”.
“A rádio possuía mais um imenso privilégio relativamente à televisão: o de se dirigir aos olhos da alma e não aos do corpo. O homem da televisão tem apenas o rosto que tem. O da rádio tinha todos os rostos que os seus ouvintes lhe quisessem emprestar, fazendo unicamente fé nas suas inflexões vocais”. Como exemplo, Michel Tournier contrapõe a aparência física de Tristan Vox com a ideia que dele construíam os ouvintes: “A imagem que geralmente se fazia dele, a partir da sua voz, era a de um homem na segunda juventude, alto, magro, suave, de cabelos castanhos e rebeldes cujo “cair” romântico atenuava o que o rosto nobremente atormentado, de maçãs um pouco salientes, poderia ter de excessivamente sombrio, apesar da doçura dos grandes olhos melancólicos. Tristan Vox chamava-se na realidade Félix Robinet e andava perto dos sessenta. Era baixo, careca e barrigudo”[4].
Isabel Carlos defende no seu ensaio que “cada voz sugere um corpo, imaginário, metafórico, que nunca coincide com o corpo real do locutor” e acrescenta que são de ordem acusmática os fantasmas sexuais que a voz de um profissional de rádio suscita e que aquando da sua presentificação física se desvanecem.
A rádio gera várias doses de cumplicidade, intimidade e afectividade entre os interlocutores. Uma ligação quase umbilical, como se a rádio, nomeadamente o transístor, fosse uma prótese do ouvido humano. “O homem da rádio está sempre muito mais livre, muito mais à vontade porque não pode ser visto. Está muito menos constrangido e é por isso que o tom, em rádio, é geralmente mais descontraído. Quando estou na rádio sinto-me em casa, na minha intimidade, à minha vontade; na televisão, é como se estivesse numa recepção, num serão em casa de pessoas que não conheço”[5].
A função emotiva e passional da rádio é relembrada por Adriano Duarte Rodrigues. Na sua obra “O campo dos media”, o autor descreve este uso afectivo do meio bem como a natureza envolvente e quase maternal do seu discurso. “Há aliás algo de fascinante e de encantamento na escuta da rádio. O estudante que faz os trabalhos escolares ao som da rádio, a dona de casa que a mantém acesa como fundo sonoro enquanto faz as lides domésticas, o automobilista que vai escutando, com atenção intermitente, a voz do locutor ou a melodia favorita que encomendou por telefone procuram um envolvimento, uma espécie de redoma sonora”[6].
Com a evolução da escuta radiofónica, que de colectiva se tornou familiar e desta se transformou em individual, o próprio discurso utilizado na rádio se modificou, tornando-se mais pessoal. A propósito, já em 1964, Fernando Curado Ribeiro escreve: “Cada ouvinte, encontra-se quase sempre só, perante o seu receptor. Portanto, no momento em que o conferencista fala, dirigindo-se a este público (que ultrapassa em número qualquer assembleia normal), apenas o faz, na realidade, a um único ouvinte. É por esta razão que se diz (e justamente) que há, nas comunicações estabelecidas pela Rádio, um certo carácter confidencial”[7].
A paixão pela rádio é desencadeada pela conjugação destes factores físicos, psicológicos e emotivos. O fascínio de estar a falar para alguém que não se conhece, não se vê, mas que se imagina – pelo lado do emissor – e a magia de ouvir a voz de alguém a partir da qual se lhe reconstrói o corpo material – por parte do ouvinte – põe em comunhão dois seres à partida desligados. “Não se vê aquele que fala na Rádio; dá-se uma espécie de abolição da sua imagem visual; mas ouve-se, e a tonalidade dessa voz é inseparável da tentativa de um conhecimento do homem”, escreve Curado Ribeiro para quem a tonalidade da voz chegam a revelar mais sobre um ser do que propriamente o rosto ou até a fisionomia.
A dimensão sonora que a rádio incorpora, devolve-lhe ronovadas magias e imagens sonoras que a palavra falada ‘apenas’ legenda. Os ruídos, o som, o silêncio, a música fazem parte da audiosfera ou dimensão sonora, da qual a rádio se alimenta e, ao mesmo tempo, nutre o ouvido humano. “O radiouvinte «vê» o jogo relatado na rádio, sente a vibração do estádio, participa das emoções que «o grão da voz» do locutor corporiza. Como dizia Montesquieu, existe de facto uma imagem visual dos objectos, uma imagem sonora que se move, ora lenta ora acelerada, no imaginário com todas as suas dimensões”[8].
A importância do que é dito pode ser diminuída pelo acto de dizer e pela forma como tal é elaborado. A voz é um elemento que participa na significação, ela pode construir um conjunto de significações, uma linguagem articulada com sentido, refere Isabel Carlos[9]. Mas para além deste também desempenha outros papéis. “A sua função consiste não apenas em assegurar o contacto com o ouvinte mas também em mantê-lo – tornando-se, ela própria, mensagem quando o discurso tem pouco interesse (…)”[10].
Segundo Adriano Duarte Rodrigues, a radiodifusão não se limita a representar as vozes dos personagens: “É a totalidade do mundo que é radiodifundida sob o modo metonímico, na medida em que o som radiofónico dá conta dos corpos e produz de facto a acção. Não representa mas cria a realidade, convertendo-se em corpo abstracto que vem integrar o nosso mundo, apelando para a totalidade da nossa experiência sensorial, imagética, intelectual”[11].
A rádio é o meio, por excelência, de incorporação da voz – elemento que é simultaneamente presença e ausência do corpo físico. Ela representa-o, mas, no entanto, a sua materialidade mantém-se invisível. Para Isabel Carlos, a voz enquadra-se entre a palavra (dita) e o corpo. A sua dimensão vocálica assume-se como a essência do ser humano. “Não se pode reduzi-la à sua dimensão corporal porque ultrapassa-a como valor acrescentado, quanto como substituição do próprio corpo. Mas é igualmente verdadeiro que não há voz sem corpo que a emita: o corpo é o seu limite”[12].
Há diferentes tipos de vozes. Através delas o ouvinte desfruta dos mais diversos graus de intimidade. “Há vozes finas e vozes grossas, vozes legíveis e vozes angulosas e cheias de rodriguinhos (…) Há vozes anódinas, discretas, insípidas…”[13]. Adriano Duarte Rodrigues salienta a sua natureza corporal. “Tal como os corpos, as vozes são, ao mesmo tempo, todas idênticas e todas diferentes. Paradoxo em que se enraíza e de que se alimenta o fascínio da audiência da rádio (…) perfeito na medida em que o dispositivo radiofónico toma a voz pela personagem, não na presença mas na ausência dos corpos”.
“Corpo abstracto, a voz da rádio é”, para Adriano Duarte Rodrigues,  “plasticidade pura, modulação sonora etérea incorporal, virtualidade admirável de se substituir ao corpo, máscara falante na ausência do actor. É graças a esta abstracção, a esta virtualidade modulatória, a esta autonomização do corpo, que a voz é ao mesmo tempo materialidade transportável, superfície de inscrição e figura pura inscrita nos registos magnéticos”[14].
A rádio converte o sujeito do discurso em pura voz. “É por isso um dispositivo performativo de uma espantosa sinédoque metonímica particularizante. Autonomizando a voz da personagem que a profere, a rádio consegue não só representar discursivamente mas substituir realmente a parte pelo todo, em virtude da contiguidade entre a voz proferida e a personagem que a profere”[15] denota Adriano Duarte Rodrigues que também refere a questão primordial: “A voz da rádio é assim uma voz originária em que prevalece à significação das palavras o fluxo modalizador do som, a força enunciadora do corpo. Força enunciadora excessiva, na exacta medida da ausência do corpo”[16].
Desta forma a origem da paixão pela rádio – esse afecto extremoso, latente ou demonstrado – está no conjunto composto pelas suas principais características, o som e a voz, que por sua vez alimentam o invisível, o imaginário - factores que remetem para a afectividade e a intimidade, elementos tão peculiares na rádio.

[1] RIBEIRO, Fernando Curado – Rádio Produção – Realização – Estética, Editora Arcádia, Lisboa, 1964, pág. 148.  [2] Idem, pág. 149. [3] LAVOINE, Yves – A rádio, Editora Veja, Lisboa, s/d, pág. 168. [4] Idem, pág. 179. [5] Entrevista de P. Bellamare ao La Croix de 26/1/1977 citado por Yves Lavoine. [6] RODRIGUES, Adriano Duarte – O campo dos Media, Editora Veja, Lisboa,s/d, pág.118. [7] RIBEIRO, Fernando Curado – Rádio Produção – Realização – Estética, Editora Arcádia, Lisboa, 1964, pág. 151. [8] RODRIGUES, Adriano Duarte – O campo dos Media, Editora Veja, Lisboa, s/d, pág. 126/127. [9] CARLOS, Maria – A voz: ocorrências in Revista “Comunicação e Linguagens” - “O corpo, o nome e a escrita”. [10] LAVOINE, Yves – A rádio, Editora Veja, Lisboa, s/d, pág. 167. [11] RODRIGUES, Adriano Duarte – O campo dos Media, Editora Veja, Lisboa, s/d, pág. 126. [12] CARLOS, Maria – A voz: ocorrências in Revista “Comunicação e Linguagens” - “O corpo, o nome e a escrita”, pág. 81. [13] SCHAEFFER, Pierre – Notas sobre a expressão radiofónica, 1944. [14] RODRIGUES, Adriano Duarte – O campo dos Media, Editora Veja, Lisboa, s/d, pág.125. [15] Idem, pág.125/126. [16] Idem, pág.127.

Etiquetas: , ,

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Défice emocional



Próximo do Carnaval, momento de maior liberdade de expressão, dançamos ao ritmo das emoções, cujo corte se faz sentir no resto do ano.

Texto e desenho* Dina Cristo


Todo o ser humano tem um corpo emocional. Este seu lado psicológico, intermediário entre o mundo físico, das acções e decisões, e o mundo mental, das ideias e pensamentos, permite-lhe ter sentimentos e emocionar-se. É algo inato que serve, aliás, como forma de adaptação e de regulação do estado interno do organismo, como no caso do derramamento de lágrimas.

Apesar de ser algo natural, humano e universal, cada cultura tem não só as suas especificidades como as suas próprias formas de controlo, de definição das tipologias aceitáveis e formas de manifestação legítimas. Desta forma, o âmbito psicológico é não só reprimido como reaprendido. A finalidade pode ser evitar ou negar as emoções instintivas, consideradas socialmente incómodas, ameaçadoras ou vergonhosas, mas o resultado é a desadaptação, a estagnação, a auto-desorganização, o caos.

Ao definir quais as emoções admissíveis e convenientes, a vida sócio-cultural censura o lado emotivo dos indivíduos e estes, para se protegerem, acabam por reprimir-se, culpar-se, fingir (sentir o que não sentem e não sentir o que sentem) e fugir das suas próprias emoções. Por forma a melhor serem aceites em sociedade, as pessoas escondem aquilo que sentem, por vezes não só dos outros como também de si próprias – quando tentam suprimir o lado mais afectuoso ou combate-lo, seja pela negação ou mesmo rejeição do que sentem.

Homens e mulheres procuram eliminar momentos mais intensos recorrendo a dependências, que geram um prazer imediato mas falsificado, e ao consumo excessivo que levam ao ciclo vicioso, seja ele o alcoolismo ou o consumismo, por exemplo. Tentam dessa forma evasiva alienar-se e afastar-se daquilo que o seu próprio corpo revela, ao nível da respiração, circulação ou secreção.

Esta luta pela exclusão das emoções, este combate pelo corte emotivo, na verdade, só o reforça e nem mesmo a falsa frieza ou a aparente indiferença conseguem vencer. Pelo contrário, as emoções, assim barradas, encontrarão outras saídas, mais agressivas. Como explica Lise Bourbeau, no seu livro “O teu corpo diz ama-te”, o bloqueio emocional acaba por desencadear outros a nível físico, manifestados em doenças, então, somatizadas. Outras vezes aquilo que vai sendo implodido chega a uma altura em que rebenta – são as revoltas colectivas ou individuais, em que as ondas emotivas se propagam. O excesso de energia emocional, até ali contida, explode e é derramada de forma descontrolada, violenta ou destrutiva.

Desertificação emotiva

A vivência emocional é uma fonte natural de energia. Como a água, se ela se infiltrar no solo vai nutrindo os campos e quando em excesso gerará uma fonte, da qual nascerá um rio que alimentará vastos terrenos até desaguar no mar. Pelo contrário, se não houver um contentor para a reter ela rolará apressadamente até aos vales deixando os terrenos secos e em tempos de maior abundância de chuva arrastará muita vida ao longo do seu percurso. Também nos humanos, se a emoção não for aceite e fluir livremente acabará por se manifestar raivosamente – qual mola que motiva a agir é assim desperdiçada em vez de ser aproveitada como bússola orientadora.

Querer descartar as emoções é como tentar eliminar os sinais de um automóvel ou das próprias vias de circulação – um perigo. Meio de expressão das necessidades humanas, elas estão presentes para informar e ajudar a pensar e a agir, a decidir de forma mais correcta, não apenas por interesse ou com indiferença, mas por dever, como explica Abílio Oliveira, psicólogo social, no seu artigo “Entender as emoções” (publicado na revista "Biosofia", vencedora do IV Prémio de Informação Solidária). Uma sensação de dor, por exemplo, é um claro sinal de que o caminho que se está a seguir não é o mais correcto, indicado ou o melhor.

Se Kant considera as inclinações como patológicas, Omraam vê-as como um meio de acesso a uma via mais elevada: a Intuição. Se o ser humano quer transcender as emoções e, assim, atingir o Graal, tal não poderá suceder sem antes as atravessar. Não se chega ao Cabo da Boa Esperança sem antes ter vivenciado o Cabo das Tormentas. Os santos, antes de o serem, experienciaram toda a gama de emoções pelo que limitar as diversas frequências emotivas às culturalmente toleráveis é, na verdade, restringir o desenvolvimento humano.

Ao se separarem de si próprios, os indivíduos afastaram-se dos outros também. Com o coração fechado, a distância entre todos aumentou. Algumas pessoas, de tanto se querer convencer a si próprias de que não sentiam nada, acabaram, à força de tanta insistência, por secar. De tão camuflados muitos campos emocionais tornaram-se quase desérticos ao ponto das pessoas, tão adormecidas e anestesiadas, se sentirem mortas, pois eram as emoções que lhes davam vida. Depois são precisas campanhas de sensibilização e para que voltem a sentir algo são necessárias grandes quantidades de quase tudo, desde a alimentação à sexualidade.

Vida emocional

António Damásio lembra que o cérebro emocional é bem mais lento do que o cognitivo. Desta forma, as montagens, técnica muito usada para criar e aumentar tensão emocional desde Eisenstein, impede o desenvolvimento emocional. Com um consumo informativo cada vez mais acelerado e baseado em imagens, vê-se (quase) tudo e não se sente (quase) nada. Assim, além de ampliar a intolerância, aumenta a impotência emocional - a incapacidade para lidar e gerir as emoções.

Prescindir delas, como se tal fosse sintoma de progresso civilizacional, é próprio de uma sociedade patriarcal, regida pelo medo, poder e competição, em que os homens, pouco presentes fisicamente, estão ausentes emocionalmente. Neste tipo de organização social, dispensa-se a vinculação – aos sentimentos, a si próprio e aos outros (a solidariedade) e desvalorizam-se as Pessoas Altamente Sensíveis, profundamente emotivas.

Contudo, mesmo após a devastação a vida irrompe, nem que seja sob a forma de dor. Mesmo com altas doses de analgésicos ela lá está a dar sinal de existência. Ainda que escondido, o lado emotivo não desapareceu e agora, ao iniciar-se um período de transição, as emoções e os sentimentos recomeçam a ser apreciados. Há quem nunca os deixasse de assumir, mesmo publicamente. Roberto Carlos, o rei das emoções, é um exemplo; numa das suas mais célebres canções, entre centenas, canta: «se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu senti». 

Em Portugal - que Teixeira de Pascoais afirma ter uma alma mais emotiva do que racional, com mais tendência à poesia do que à filosofia – no fado, agora reconhecido internacionalmente, se expressa o sentimento saudoso, a tristeza própria da memória do sofrimento passado como também a alegria da esperança no futuro. Dando voz ao sentir do coração, fadistas animados, no máximo silêncio, comunicam com o público, em idênticos estados de alma.

Alguns sentimentos - mais estáveis, extensos, estruturais, duradouros e íntimos, como a amizade ou o amor – e várias emoções - mais instáveis, intensas, conjunturais, momentâneas e públicas, autênticos sentimentos em movimento, como a paixão, o medo (sinal de risco ou perigo que pode ajudar a vigiar, desacelerar e a proteger) ou a raiva (por vezes traduzida em silenciamento, revela um défice de expressão e estimula a auto-afirmação). Associadas a impulsos nervosos que induzem a libertação de neurotransmissores e se traduzem em sensações e alterações físicas, as emoções mudam com frequência: chora-se “hoje” por coisas que haviam encantado “ontem” e alegra-se agora com algo pelo qual antes se tinha entristecido.

Integração emocional

Mas observar, dar atenção, conhecer e saber reconhecer as emoções não significa deixá-las expressar-se como um autêntico cavalo à rédea solta. Saber lidar com a vida sentimental implica preservar a via racional, controlar as emoções mais grosseiras, em vez de ser consumido por elas em tempestades emotivas, preservar as mais finas, como o altruísmo, a compaixão, e de uma forma geral dispor o âmbito psicológico ao serviço do mental, ou seja, treinar a conciliação, a conjugação, a cooperação de ambos em vez da competição.

Como explica Omraam Aivanhov, razão e emoção são como duas pernas, ambas necessárias para se avançar em segurança. Como ensinou o autor, civilizações mais evoluídas do que a nossa desapareceram pela preponderância dada ao intelecto em detrimento do coração, que deve ocupar o seu lugar pois, como disse, só este pode remediar os efeitos malfazejos daquele[1].

Por sua vez, Kahlil Gibran instruiu que em vez da competição, concorrência ou combate entre a razão e a paixão, estas devem ser unificadas e compatibilizadas aproveitando para descansar no juízo, que sozinho restringe, e actuar no apetite, que só consome. O conselho é para exaltar a razão até ao cume da paixão e dirigir a paixão com a razão.

Substituir o conflito emocional (entre por exemplo um desejo íntimo e uma vontade pública) pela compatibilização entre os pensamentos e os sentimentos, usando-os de harmonia com a razão e não contra ela, é, pois, uma das formas mais úteis e construtivas de aproveitar beneficamente as emoções, muitas delas expressas em palavras.

Em vez de se desgastar tentando, em vão, combater as emoções, o que não raras vezes conduz à perdição, elas podem ser aproveitadas antes de tudo para o conhecimento da própria Identidade e ajudar a promover as mudanças necessárias, escolhendo o caminho e o veículo mais apropriado (seja uma auto-estrada, uma via nacional, uma rua regional ou mesmo um estrada alternativa, um percurso pedestre, enquanto outros irão de alta-velocidade ou de avião) para uma direcção decidida racionalmente, atingindo assim não só a salvação como a realização.

Dieta emocional

Para os casos de “inflamação” emocional, por irritação, exaltação ou excitação, em situações mais agudas, é recomendado fazer dieta emocional, o que significa alimentar-se menos mas de melhores e mais adequadas emoções, devidamente processadas e digeridas conscientemente, caminhar, tomar florais, recentrar em Si próprio, amar, trabalhar, escrever, ouvir ou ser ouvido reflexivamente, comunicar empaticamente, o que significa pedir a satisfação das necessidades em vez de as exigir ao outro, e contactar com o sol e a água corrente, observando-a ou banhando-se nela. A febre emocional, pela concentração de energia, acaba, em cerca de dois dias, por queimar, purificar e curar, ao libertar os resíduos inúteis, nocivos e venenosos das máculas emocionais.

Se em vez de mastigar se for engolindo e em doses excessivas, os detritos emocionais acumulam-se, envenenando o organismo. Para que, em alternativa, as cinzas não sejam lançadas a despropósito e abruptamente sobre o primeiro indivíduo mais receptivo que aparecer, é preciso filtrar de forma a que os sentimentos mais refinados possam ser assimilados e libertados convenientemente os mais grosseiros – o baixo astral de que falam os brasileiros.

Supressão emocional

Para processar as emoções, observar e geri-las é preciso tempo, para as enfrentar e manifestar é necessária coragem tal como para abrir o coração é fundamental aceitar e perdoar. Algo difícil no actual sistema social que conota a experiência emocional, mais subjectiva e pessoal, como uma ilusão, um devaneio ou uma fraqueza – uma fragilidade. Como a Teoria Crítica vem denunciando, a violência estrutural do sistema é tal que leva o indivíduo acreditar que aquilo que o seu coração sente, e o torna verdadeiramente humano, é um engano, uma mentira – o que se traduz, segundo a Escola de Frankfurt, numa brutalidade, crueldade e desumanidade.

No caso dos homens, onde a repressão é maior e os limites ainda mais estreitos (crescendo sob a ameaça de que um homem não chora), a emoção acaba por ser extravasada através da arte, nomeadamente da música, do desporto ou mesmo do trabalho – às vezes vividos excessivamente como forma de compensação. Também há tantos homens como mulheres altamente sensíveis, como revelou Elaine N. Aron, tal como existem homens marcados pela personalidade, motivação ou destino “dois”, uma vibração de extrema emoção e receptividade. Alguns, superdotados adultos, por exemplo, afogam as suas mágoas, incompreendidas pela sociedade, em dependências variadas – virando a agressividade que sofreram contra si próprios. Outros, mais integrados, ao adaptar-se à secura emocional, sem tempo nem espaço para deixar fluir as emoções, tornam-se carentes e (co)dependentes: naturalmente ricos e abundantes transformam-se em vampiros afectivos ao apropriarem-se, sem querer, de sentimentos alheios.

Capital emocional

As emoções traduzem uma forma de inteligência própria - são um capital altamente desvalorizado mas com uma riqueza que pode ser extraída pelo intelecto, como aconselhou Omraam. Para que a falta de autonomia se transforme em responsabilidade emocional, para que haja higiene emocional, através da expressão moderada que dissolva as emoções mais densas e as transmute em sentimentos positivos, para que as feridas e traumas emocionais se curem e os abusos emocionais se dissipem, para que se promova o bem-estar e a disponibilidade emocional, se satisfaçam as necessidades afectivas e a vida emocional deixe de ser tabu, para que a vida não seja apenas preenchida com cifrões mas também com significados, para que haja serenidade emocional, em equilíbrio dinâmico, para que a chantagem e a hipocrisia emocional diminuam é preciso que o pudor sentimental, como identificado por Gilles Lipovetsky, acabe e dê lugar à integração emocional.

Abílio Oliveira indica que há que, sem as banalizar ou exagerar, as entender, saber adequá-las e dirigi-las pois dado o seu potencial para refinar a mente e despertar o pensamento abstracto contêm a força de levar a agir para e pelo bem. Como se sabe um ser um humano emocionalmente adormecido é capaz de cometer as maiores atrocidades, daí a importância que António Damásio lhes dá ao nível do desenvolvimento moral.

Inteligência emocional

As emoções estão ligadas à memória implícita. A sua génese está no cérebro límbico, responsável pela aprendizagem e memória. Como Lucienne Cornu demonstrou a percepção é subjectiva, é um conhecimento que reflecte o estado emocional e depende dos filtros internos, e a interpretação não é mais do que o tratamento da informação segundo a memória, habitualmente baseada nas sensações de medo/desejo.

Reflectidas nas águas dos sonhos e ligadas ao corpo electromagnético, conotadas, nas antigas sociedades matriarcais, com as plantas e a adolescência, entre os sete e catorze anos, as emoções são habitualmente mais profundas do que as ideias e mais fortes e poderosas do que os factos, influenciando ambos – o nível mental e comportamental. Também os (pre)sentimentos costumam ser mais reais e poderosos do que aquilo que se está a fazer, as acções visíveis.

Abrir o coração

Hoje, é possível inaugurar um tempo de novas descobertas marítimas, não já ao nível do mar exterior mas das águas internas, até aqui encobertas. Como vimos, ignorar as emoções além de não conduzir ao seu desaparecimento só as vira, quais águas revoltas, contra a própria pessoa, traduzindo-se quantas vezes em “stress” e até a exaustão emocional. Se em vez de insistir em obliterá-las - por medo de se magoar, o que só conduz ao enfraquecimento e a doenças coronárias, através das quais o coração dá sinais de existência – os seres humanos se se empenharem em conhecê-las, pelo exame introspectivo e concentração, elas irão reforça-los e devolver-lhes a felicidade e a verdadeira segurança

Com moderação, sem mastigar de menos ou triturar demais, o ressentimento dará lugar à compreensão, à aceitação, ao perdão e à libertação. Poupando-a e aproveitando-a, os seres humanos podem, assim, usar a energia emocional, disponível gratuitamente, não só a seu favor como também em benefício dos outros, já que ficam mais enriquecidos para também os nutrir com sentimentos positivos.

Com a consciência de que as emoções ajudam não só a comunicar, a (sobre)viver, a aprender e a mudar, mas também alertam para as necessidades humanas, permitem avaliar os estímulos aos quais respondem, assinalando os acontecimentos significativos e apoiando a tomada de decisões, pode-se mudar o paradigma do medo de sentir para a confiança naquilo que se sente; pode-se ir além do envolvimento emocional e promover o seu progresso, aumentar a competência e habilidade emocional, reconhecer as emoções em si próprio e nos outros, possibilitar a telepatia, permiti-las na vida pública, como defende a Ética do Cuidado, e tornar a sua expressão receosa e indirecta algo (ultra)passado.

* Anos 70 [1] AIVANHOV, Omraam – Pensamentos quotidianos, Publicações Maytreia, 2012 – 16/11/2012.

Etiquetas: , ,