quarta-feira, 28 de março de 2012

A (des)colonização jornalística



Texto e fotografia Dina Cristo

Nas sociedades tradicionais a organização humana permitia a igualdade. Eram comunidades de carácter tribal, onde “reinava” o povo, a re(li)gião e o simbólico. Com a evolução, as nacionalizações, o êxodo rural, a industrialização e a modernidade, as sociedades complexificaram-se. A organização da vida colectiva burocratizou-se, distanciou-se da vida de todos os dias e introduziu a desigualdade.

A vida simples, com ligação ao passado e à Natureza, perdeu-se. O desejo de diferenciação e de liderança impôs-se. O entendimento da vida e a compreensão da natureza das coisas e do mundo transferiu-se para o campo dos especialistas. Aquilo que até então era objecto de entendimento partilhado foi relegado para o campo distante do pressuposto e a troca comunicativa, baseada nas diferenças humanas, geradora de vero consenso, substituída pela instituição de códigos.

Com a legalização e a oferta de soluções cada vez mais estandardizadas a necessidade de apresentar, ouvir e discutir argumentos – incluindo os subjectivos - desapareceu. Aos poucos, a normalização destruiu o processo comunicativo. A diferença que antes unia foi sendo exterminada num falso consenso cada vez mais separatista.

O todo - presumivelmente - passaria a integrar as partes. Mas, na verdade, as diferenças foram sendo excluídas. Ilusoriamente, o todo foi confundido com a parte e esta com a abstracção, vã. Uma correspondência que assegurava um sentido para o desconhecido e oferecia uma sensação de ordem e estabilidade mas redutora e superficial. O signo, não menos do que o mito, tornara-se também ele totalitário quando ao redefinir extirpava as particularidades.

Esta exclusão da representação, uma violência estrutural, fez-se sentir aquando da formação das Nações, pela imposição de uma língua vernácula sobre as demais como pela contenção das diferenças tribais e culturais pela força. Uma hegemonia que se aperfeiçoou aquando das vagas migratórias para as cidades, tirando partido do isolamento na multidão. Quando mais afastado da sua identidade cultural de origem, perdido no anonimato de uma sociedade massificada, maior a vulnerabilidade.

A técnica, cada vez mais desejada, naturalizada e facilitada, ao mesmo tempo que permite compensar as necessidades não satisfeitas ao nível social, vai agravando o afastamento do indivíduo de si próprio, dos outros seres (humanos) e dos objectos. Aos poucos, os mass media (primeiro a rádio, depois a televisão e agora a Internet) vão-se infiltrando na vida doméstica e familiar. Cada vez mais separados, os indivíduos vão-se ligar progressivamente a uma autoridade externa, que os conquista.

Socialmente desintegrado, o indivíduo torna-se cada vez mais vulnerável e dependente da emergente indústria cultural, à qual se submete. Sem dar por isso, o sub-sistema mediático vai dominando-o: diz-lhe quem é, ou melhor, quem pode ser, fazer e, sobretudo, comprar. Enquanto as suas motivações utilitaristas e empíricas são estimuladas, a sua natureza racional e humana, pelo contrário, vai sendo reprimida.

Com objectivos lucrativos, a indústria dos mass media encarna uma razão calculista, que sucumbe aos interesses (capitalistas), e embrutecida pelas inclinações (sensoriais), longe da razão pura, promotora da verdade, liberdade, autonomia e desenvolvimento humano e cujos conceitos universais, como o Bem, integravam efectiva e sinteticamente todas as partes.

No iluminismo, os diferentes “eus” eram coerentemente unificados numa identidade essencial, central e individual, auto-suficiente, permanente e soberana, verdadeiramente estável e segura, residente no seu núcleo interno e inato, (re)conhecido. Na modernidade, com a disseminação da faculdade intelectual da mente como meio e, também perversamente, dos meios tecnológicos como fim, a racionalidade instrumentaliza-se e degenera.

Mais desloc(aliz)ado e descentralizado, o indivíduo distancia-se de si próprio e abre-se ao estranho. É na relação social, no domínio público, com crescente importância, que a sua identidade se vai (re)formando, primeiro a nível nacional e, mais tarde, a nível internacional. O indivíduo torna-se um ser com uma personalidade cada vez mais fragmentada e (re)constituída heteronomamente.

Com as indústrias culturais globais e as migrações, a oferta de identificações possíveis alarga-se a tal ponto, que, apesar da resistência de algumas ao nível da tradição e da adaptação por outras no âmbito da transição (tal como categorizado por Stuart Hall), permite cruzadas maneiras de ser, incluindo algumas de forma descontinuada e mesmo contraditória, às vezes inconciliável. Apesar desta multiplicidade de possibilidades, muitas identidades são, contudo, assimiladas, homogeneizadas num relativismo cultural, e previsíveis, o que permite a antecipação industrial dos modos de se comportar, associados ao consumo.

A personalidade dos indivíduos é rebaixada, estigmatizada, amputada, sujeita à instalação de complexos enquanto são estimulados traços de competição, agressividade e brutalidade – um retrocesso ao nível da infantilidade, irracionalidade e mesmo barbaridade. A sua auto-imagem é depreciada, as suas características abafadas, com oferta prazerosa, que o mantém adormecido, seduzido e, acima de tudo, ‘convenienetemente’ passivo e satisfeito com a sua “chupeta electrónica”.

Ao mesmo tempo que a sua dimensão interna, da auto-regulação, é obscurecida, a externa, dos lugares objectivamente ocupados, é exaltada. Restringe-se a personalidade interior, autónoma, e sublima-se a exterior, heterónoma. Limita-se a realidade psíquica ao mesmo tempo que se alarga o leque de variedades sociais, aumentando a instabilidade, insegurança e impermanência de um “eu”, cada vez mais desagregado e dependente.

Com a falta de condições para a expressão de identidades, esta é substituída pela política da diferença. Se antes alguém era definido pela sua classe ou nacionalidade, agora pode sê-lo pelo género, raça ou ideologia. Caracterizações variáveis e incompletas, dado o continuo “bombardeamento” de novas propostas apresentadas pelos “media”, onde procura, compulsivamente, gratificação para a sua carência interna, universo do qual se desvincula cada vez mais.

Afastado se si mesmo e da relação presencial com outrem, em lugares familiares, o indivíduo é conduzido para outros cada vez mais distantes, representados pela mediação tecnológica, na qual acredita e, fascinado, abusa. Assim, o sub-sistema cultural e mediático, a par do político e do económico, intermedeia cada vez mais a realidade do dia-a-dia.

Embora com origem na vida orgânica, a burocracia, o dinheiro e a técnica evidenciaram-se e os seus líderes e especialistas destacaram-se. Aos poucos contribuíram para a autonomização do Sistema (capitalista) que reproduzem e com tanta eficácia que não apenas tem vindo a substituir a sua fonte, a lifeworld, como existe o perigo de a dissipar. De simulação do mundo real, o signo, converte-se num simulacro, sem referente.

O Sistema copiou tão credivelmente a realidade que gerou a confusão e se impôs ao original. Aquela que é a parte supre agora o todo. Uma equivalência perigosa e redutora, pois não integra todas as particularidades. Eis o problema da relação vicária entre o todo e as partes, em ambos os sentidos, tal como (pro)posto por Theodor Adorno, ilustrado pelas canções com os seus refrões ou as ideias críticas interpretadas segundo outras mais gerais.

A independência e poder do Sistema é tal que ele não só se reflecte na vida quotidiana como a coloniza, explora e domina. Os colonizadores infiltram-se nos campos comunitários, penetrando-o e viol(ent)ando os colonizados - uma agressão para a qual a indústria cultural, através do entretenimento, oferece não apenas ‘socialização’, através do desporto competitivo, por exemplo, mas também “alívio”, como através das séries de humor.

Os que se diferenciaram, as minorias, transformam-se através do Sistema, que as sobre-representa, maiorias poderosas. Pelo contrário, as maiorias - pobres, desfavorecidos ou cuidadores - por exemplo, são sub-representadas, nomeadamente nos órgãos de Comunicação Social. A parte, minoritária, ao ser, enganosamente, identificada com o todo, a maioria, faz alargar o fosso entre a lifeworld e o Sistema e gera uma falsa consonância.

Contudo, nem todos foram assimilados, como escreveu Stuar Hall, e hoje grupos sub-representados no espaço público simbólico reivindicam a sua participação pública. Trata-se de um sucedânea da luta de classes sociais, apoiada pelos sub-sistemas, tendo em vista interesses comerciais, que advêm da formação de grandes audiências, seja ao nível da política ou dos “media”, novos ou tradicionais.

São largas camadas da população que se sentem à parte dos sub-sistemas. Ignoradas, são conduzidas a um exílio forçado, a uma marginalização num sistema que conquista cada vez mais centralidade. São seres humanos silenciados e discriminados pelos “media”, com a supremacia dada a quem possui Know-how e se graduou.

Se por um lado o sistema acaba bloqueado em curto-circuito, por outro a própria vida real também, uma vez que a linguagem, agora usada para o criticar, não o atinge. Sinal da cisão são as expressões usadas no quotidiano, “Eles”, e no âmbito dos sub-sistemas a ideia de um “Outro”, para o qual são remetidas as partes, deste modo cada vez mais distanciadas.

A periferia, que é o mundo dos acontecimentos, das coisas e da co-presença, é, pois, desautorizada por um mundo artificial, planeado, de pseudo-acontecimentos, de signos e de seres ausentes. Uma realidade virtual, aparente, de (pré)conceitos, imagens e hiper-realidade, suficientemente atractiva, no entanto, para que seja o público a desejar a sua escravização. Uma condescendência possível dada a fabricação pela própria indústria cultural, não apenas dos produtos culturais mas também dos gostos da audiência.

Ao contrário da auto-propaganda, de que encarna a liberdade, democraticidade, tolerância e novidade, a indústria cultural elimina qualquer possibilidade de risco ao nível da alta cultura, inovadora, criativa, autónoma e diferente. Uma forma de arte heterogénea que preserva, livremente, a tensão (entre a parte e o todo, a forma e o conteúdo, as regras e a individualidade) mantém a complexidade dialéctica, a dissonância e a melodia.

Pelo contrário, na baixa cultura a tensão é substituída pela gratificação sensorial imediata, através de uma linguagem previamente formatada de acordo com as normas de sucesso comercial da indústria, rápida e facilmente reconhecida, em fórmulas repetidas em que o conflito é resolvido leve e harmoniosamente, prescindindo de qualquer esforço intelectual, próximo da banalidade e longe de qualquer “aura” de autor(idade).

A lógica do Sistema, conservadora, violenta e mercantilista, é exposta em doses residuais, como um veneno que, homeopaticamente, elimine a malignidade do organismo. É mostrada para que possa ser ocultada e ridicularizada, em pequenas doses (de humor) que, assim, a absorve, neutraliza ou anula e faz a alternativa, o heterogéneo, que ameaça o estabelecido, parecer irreal, impossível, indesejável ou impensável. Reitera, assim, a ideia de que o Sistema é a encarnação da liberdade e de que não pode ser alterado sem a perda da livre expressão.

Ao contrário do discurso retórico, os Golias reduzem as oportunidades de expressão, cuja igualdade e liberdade são inerentes aos sistemas democráticos, uma repressão dissimulada, enquanto os sujeitos, submetidos aos objectos e enfraquecidos na identidade e na razão, consomem os mesmos programas reduzindo cada vez mais a diferença.

A indústria, que é a mesma, cria, além dos produtos, os próprios meios de comunicação e as comunidades de audiências, como canais de distribuição para os seus produtos. É o exemplo da Web e das redes sociais. No caso mais concreto da Web 2.0, em que se difundiram promessas de ultrapassar as desigualdades mesmo no off line, com a celebração do acesso e participação, Lincoln Dahlberg verificou o contrário.

O cientista consolidou a ideia da sobreposição do sistema, neste caso, on line, em relação à vida real, off line. São os que possuem maior estatuto e capital (social, educacional, digital, etc.) os que mais vantagens retiram das oportunidades do novo medium. Enquanto isso, largas camadas da população nem sequer têm as condições mínimas para o acesso, como infra-estruturas, electricidade e equipamento, tempo ou competência.

Quanto à possibilidade de participação esta também não se verificou. Dos que têm acesso, a maioria limita-se a consumir, reproduzir ou imitar os conteúdos difundidos pelos media tradicionais. Mesmo no universo da blogosfera, tida como exemplar neste campo, são muito poucos os que se conseguem transformar em «vloggers», aqueles que não apenas disseminam as mensagens dos grupos do “mainstream”, mas, além de fazerem “uploads” e, portanto, produzirem efectivamente algo de novo e diferente, também são vistos por uma audiência significativa.

A falta destas duas condições básicas mostra o quanto a desigualdade é, antes de mais, estrutural e que a insistência na ideia de que a Web 2.0, com as suas potencialidades ao nível da interactividade, do trabalho em rede e da geração de conteúdo, iria permitir ultrapassar as barreiras é enganosa. Para o autor, ela não só não diminuiu a separação, como além de a manter a reforçou. Aqui, a exclusão, a invisibilidade ou silenciamento, agravam-se e as diferenças de poder acentuam-se.

Além do acesso e da participação, as disparidades verificam-se desde logo ao nível da propriedade dos -significativos - “domínios”, cujo valor da aquisição a torna impensável para um cidadão comum. Posse, que está, assim, cada vez mais concentrada nas mãos de poucas corporações de grandes dimensões e que determina, desde logo, o controlo do espaço digital, nomeadamente através dos termos de uso, das licenças e dos códigos.

Numa economia da atenção, como a digital, os proprietários dos domínios têm o poder de decidir se e quando pretendem ser vistos, usando estratégias como os «floggers», «bloggers» que são pagos, sem conhecimento do público, para publicitar produtos ou serviços de determinadas empresas, ao passo que os usuários estão a ser monotorizados, vigiados e policiados nas suas pesquisas, compras e perfis, sendo estes vendidos a empresas de publicidade para marketing cada vez mais dirigido.

Enquanto uns controlam, armazenando mesmo registos de informação privada, contidas nos – significativos – “cadastros”, outros são vistos e fiscalizados, mesmo pelos empregadores. Contudo, além deste desnível de poder no âmbito da atenção e vigilância também se verifica tal fosso ao nível da exploração já que todo o trabalho de publicação em rede, feito voluntariamente, é expropriado, pois pertence aos proprietários dos sistemas que, discretamente, parecem mudos e invisíveis.

Assim, são formadas, pois, as grandes audiências, baseadas nas mesmas fontes, repercutindo as vozes já dominantes – recorde-se que em canais como o Youtube, apesar da menor presença de conteúdos de meios profissionais comerciais são estes os mais vistos – que fazem o próprio trabalho de retransmissão e que, além de serem objecto de “outsourcing” e “crowdsourcing” - o que, segundo Lincoln, são mais novas linhas de montagem digital do que novas oportunidades de emprego, como é publicitado – se consomem, em última instância, a si próprios.

O poder de produzir audiências e de lhes dirigir os desejos, criando um pensamento homogéneo, como referia Adorno, está agora tão ou mais presente no sistema digital, onde se evidencia o fascínio pela (facilidade da linguagem) técnica. Lincoln Dahlberg mostra que os argumentos dos entusiastas, pouco críticos, não se têm verificado. No caso das escolhas, por exemplo, estas mostram ser, na verdade, falsas escolhas, além de irracionais e previsíveis.

Em vez do reequilíbrio, o particular e diferente, seja nas línguas seja nos grupos, foi relegado ao “enclave”, antecâmara do extermínio. As línguas nacionais, em vez de se expandirem, foram “eclipsadas” pelas dominantes no sistema. Ao nível grupal os já privilegiados adiantaram-se ainda mais: homens, jovens, ocidentais e móveis.

O desnível entre os especialistas, activos e produtores, e os ignorantes, passivos e consumidores, aumentou; o hiato entre o Sistema, agora digital, e a lifeworld expandiu-se, alastrando o controlo, o predomínio, a supremacia sobre os mais necessitados. Os pobres, que sustentam o sistema, mesmo em bairros de lata ou em campos de refugiados, são os que dele são afastados e ocultados. O diferente, genuína expressão da vida, é suprimido por uma suposta consonância irreal.

Ao discurso diverso e comum do dia-a-dia - alternativo, comunitário, cooperativo e pacifista – sobrepõe-se um discurso instituído, capitalista, neo-liberal e individualista, de líderes e especialistas. São estes que estruturam a agenda digital, dominada por significados consumistas, competitivos e agressivos que obscurecem o diverso.

O desejo de distinção, de identificação, forçada muitas vezes, com um “Nós” central em detrimento do “Outro” periférico, amplia a divisão, entre os adaptados ao Sistema e os que, apesar do desprezo, permanecem fiéis à sua identidade e práticas culturais. Erguendo barreiras, nomeadamente normativas e legais, que salientam ainda mais não só a desconexão mas também a coersão, bem longe da coesão dos tempos antigos.

O poder, ligado ao verbo, constitui mais uma questão política do que técnica. Contudo, Dahlberg defende que esta, ao contrário das outras áreas de divisão, é reversível. O autor acredita que o reequilíbrio se fará através de uma contestação radical ao nível do contra-discurso. Um activismo contra-hegemónico que desafie a divisão de poder-discurso, central na desconexão digital para que os David deixem de ser abusados.

As promessas de uma comunicação democrática, com igualdade de oportunidades e condições livres de expressão, estão ainda por cumprir. A wikipédia, apesar dos ataques a que é sujeita, é uma referência e uma esperança no trabalho colaborativo, cooperativo, voluntária, independente, de uma plataforma mais livre, aberta e disponível tendo em vista o Bem Comum. Mas existem outras que é preciso ocupar, no âmbito de um activismo digital.

Está em causa a equidade, ao nível legal e de dignidade, e a liberdade para expressar as identidades, diferenciadas como é próprio dos Seres Humanos, onde cada um possa ser a parte específica que contribui, com a riqueza da sua diferença, para o todo comum. Para tal, é necessário desbloquear os fluxos de informação, em curto-circuito, e fazê-la circular tanto do sistema para lifewold como do off line para o on line, reconciliando-os.

Aquilo que até ao momento tem servido, perversamente, para dividir, oprimir e destruir - a razão degenerada, a linguagem totalitária, a significação mediática distorcida – pode doravante servir para libertar, passando a reunir num todo, verdadeiramente sintético, integral, que represente e inclua cada uma das partes. Uma comunicação racional, pura, desinteressada, que una, autónoma e universalmente, e propicie, como defende Habermas, a emancipação social.

À semelhança da razão, também a ética degenerou. De uma ética universal e impessoal, independente, mal compreendida ou interpretada, resultou num distanciamento e separação, com repercussões também na área jornalística, dominando até aqui, motivado pela auto-defesa, um modelo de objectividade, neutralidade e imparcialidade, operacionalizado na mera observação, indiferente.

Uma ética racional e monológica, livre e autónoma, como a iluminista, transformou-se numa desvinculação, num afastamento. Os modernos não entenderam - ou não lhes foi conveniente por motivações mercadológicos de criação de audiências massivas, as grandes maiorias, através da desideologização - que a tomada de posição não significa parcialidade. Pelo contrário, a marca de um sujeito que, desinteressadamente, defende a Justiça, a Lei, o Bem, a Verdade, está ao serviço do geral, do todo, do comum e não dos interesses, conveniências ou inclinações de qualquer parte.

A ética do cuidado tem vindo a apresentar um modelo complementar, senão alternativo, ao dominante, propondo a expressão da subjectividade. Os sujeitos não apenas devem ter e manter como também explicitar as suas ligações, mesmo ao nível profissional. O desafio é, agora, reaproximar, o que, no âmbito da imprensa, se traduz pela reconexão entre jornalistas e audiência - uma das reivindicações mais fortes do jornalismo público, quase a completar 20 anos.

Este jornalismo, também designado de jornalismo cívico, defende ainda a participação pública, o envolvimento dos cidadãos nos temas colectivos. Embora seja difícil propor aos colonos, que ainda se estão a desenvolver, que se envolvam no processo de democratização, a ética do cuidado propõe que sejam estes jornalistas a dar o exemplo e a religarem-se às minorias excluídas da representação pública dominante.

Uma vez que o jornalismo público pugna pela deliberação, os defensores da ética do cuidado advogam que deve ser (re)examinado, discutido e decidido, afinal, quem mais necessita e merece de atenção pública – que histórias narrar, que fontes escutar, que ideias escolher, como relatar os acontecimentos. Os cuidadores são, sem dúvida, para as autoras Linda Steiner e Chad Okrusch, quem mais deve ser ouvido e tratado com atenção e cuidado. Cuidar de quem cuida é um tema público, sustentam.

Tal significa pesquisar, seleccionar e publicar de forma cuidadosa as pessoas, seja como fontes, como sujeitos centrais das notícias ou leitores, ouvintes, telespectadores ou usuários. Também o ouvir, dar atenção, escutar, zelosamente, implica retirar os que são habitualmente sub-representados do isolamento, torná-los audíveis e visíveis, promovendo uma verdadeira integração no sistema mediático.

Os mais discriminados pelos “media” são, por norma, quem trabalha na esfera privada, voluntariamente ou com uma baixa remuneração, embora com funções de grande exigência em termos de tempo e dedicação no cuidado e atenção dada a outros seres humanos, em sofrimento, ou na esfera pública, em profissões com grupos pequenos, como enfermagem ou docência, com relacionamento presencial. São habitualmente actividades mais generosas e em que se usa um vocabulário também mais afectuoso.

Tratar atenta, cuidada e correctamente as pessoas; restabelecer os laços afectivos; dar importância não apenas ao factual mas também às relações humanas; valorizar o vínculo ao colectivo, a responsabilidade social; o carinho, a preocupação, a compreensão pelo outro são algumas das propostas da ética do cuidado – valores que podem e devem ser aplicados não apenas à esfera íntima mas igualmente à esfera pública não só a nível nacional como igualmente a nível transnacional.

Numa altura em que o público está cada vez mais consciente do sofrimento humano, em que se constituem grupos, independentemente dos lugares, e se verifica mesmo entre os jornalistas uma vontade de harmonizar a sua identidade pessoal, ansiosa por cuidar do outro, com a profissional, no âmbito da qual tal tem sido impedido, a ética do cuidado apresenta a caridade ou compaixão como virtude, não a esconder mas a desenvolver, nomeadamente como forma de conhecimento e, mais especificamente, como rotina de produção informativa.

Está em causa a versão politizada da ética do cuidado, transitando da ênfase dos direitos para os deveres profissionais, do interesse, disfarçado de neutralidade, para o desinteresse puro, sem medo da aproximação, física ou psicológica, da barbaridade para a verdadeira civilização, humana. Um jornalismo que em vez de explorar o sofrimento, alheio, com intuitos lucrativos, prefira dar espaço e tempo a quem se ocupa em aliviá-lo e faça novas e mais perguntas sobre as propostas políticas para a sua resolução.

Desta forma poderá ter consequências positivas sobre jornalistas, fontes e público, incentivando a que a benevolência se transforme em efectiva beneficiência e acção social. Um contributo para a ajuda mútua a nível mundial, de forma a atingir uma política global de solidariedade colectiva, um estágio de desenvolvimento moral pós-convencional em que a preocupação pelo outro se expande a nível universal, num amor à humanidade - o estágio de maior desenvolvimento, de acordo com Kohlberg, atingido pelos jornalistas cívicos e de investigação.

Segundo as autoras, Linda Steiner e Chad Okrusch, a ética do cuidado já contém a da justiça, está integrada no jornalismo público e deve fazer parte da ética da virtude. Uma mudança de atitude tendo em vista uma unificação e agregação das partes até aqui subordinadas, marginalizadas e desautorizadas que restaure o equilíbrio, a igualdade, a unidade, a comunicação e a integração, verdadeira, autónoma, livre e racional, mais purificada, agora em tempos de pós-modernidade global, digital e interdependente.
 
Bibliografia:DAHLBERG, Lincoln – Web 2.0 divides: A critical political economy. University of Queensland. s/d. HALL, Stuart – A identidade cultural na pós-modernidade. D&A Ed. Pág. 7-97. LAYDER, Derek (1994) – “Habermas`s Lifeworld and System” in Understanding social theory. Sage. 2005. Pág. 213-238. STEINER, Linda; OKRUSCH, Chad – Care as a virtue for journalists in Journal of Mass Media Ethics, 2006, 21, pág. 102-122. TAYLOR, Paul; HARRIS, Jan – Critical theories of Mass Media: Then en Now Maidenhed. Open University Press. 2008. Pág. 62-84.

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quarta-feira, 21 de março de 2012

Rádiotelefonia de sessenta IX




"Revista Rádio & Televisão" 22/08/1959, p.10

Neste último artigo contemplamos os postos particulares, as inovações técnicas, de programação, algumas estações e programas marcantes.

Texto Dina Cristo

Foi nos anos 60 que se iniciaram, em Portugal, as emissões estereofónicas e se generalizou a utilização da Frequência Modulada (FM), inovações técnicas que permitiram alterar programas, públicos e a própria maneira de fazer rádio.

“O som estereofónico prestou provas que merecem uma acolhida entusiástica por parte dos ouvintes”, afirmava, em 1961, Máximo Esteves, director da Rádio Peninsular de Madrid(1). Em Portugal, as emissões em estereofonia do RCP (através do emissor de FM, de Lisboa) e da EN iniciam-se em 1968.

A instalação da rede de modelação de frequência que inundou o continente nacional repartiu-se pelas três principais estações, o RCP, a RR e a EN. O Rádio Clube Português realizou, nos anos 60, a radiodifusão por FM, iniciada na década anterior. O RCP colocou em funcionamento, em 1963, o novo emissor de FM de Lisboa, assegurando o funcionamento dos emissores de Monchique, Valongo, Lousã e Mendro, no Alentejo, seguindo-se-lhes, em 1967, Bornes e Guarda. A Rádio Renascença iniciou a montagem da rede em 1964, com a entrada em funcionamento do primeiro emissor de FM, em Monsanto.

A utilização do transístor, por exemplo, veio revolucionar os hábitos dos ouvintes. Mais pequeno e a um preço mais económico, permitiu um maior acesso do público à rádio, que diversificava os locais de audição, introduzia uma nova dimensão intimista à escuta radiofónica e provocava uma apropriação renovada por parte dos jovens.

Programas inovadores

O surgimento, em 1965, do “Em Órbita”, no Rádio Clube Português, foi um reflexo do fluxo de mudanças então em curso, a nível (inter)nacional, provocando significativos índices de audiência, avaliados pela correspondência e pela venda de discos que o programa transmitia. Emitido em FM, o programa inovava em forma e conteúdo, ao preparar previamente tudo o que iria ser dito ao microfone, apenas por uma pessoa, e divulgando música desconhecida em Portugal. “De repente, no meio da pacata paisagem do nacional cançonetismo, que o regime se entretinha a cantarolar, ouviam-se os Beatles, o Jimy Hendrx, os Rolling Stones, o Leonard Cohen, a geração do Woodstock, das guitarras eléctricas, dos poemas de protesto. O mundo em mudança chegava assim pela rádio todos os dias ao fim da tarde”(2).

O Rádio Clube Português foi ainda o pioneiro nos horários nocturnos na rádio portuguesa, primeiro, com o programa “Meia-Noite”, emitido entre as zero e as três horas da manhã, e depois com o “Sintonia 63” que, naquele ano, ao ser transmitido entre as três e as seis horas da manhã, tornou possível a emissão de 24 horas ininterruptas.

A “Página Um”, da Rádio Renascença, nascida a 2 de Janeiro de 1968, constituiu a primeira audição do que, de ora em diante, se tornaria o símbolo-resistência da rádio portuguesa ao regime, chegando a emitir discos censurados. Ao longo dos anos 60, a rádio nacional, ao ultrapassar os 25 anos, atingiu a idade adulta: em 1960, a EN completou 25 anos; em 1961 já o RCP festejava os seus 30 anos, e, em 1962, foi a vez da Rádio Renascença comemorar o seu quarto de século – mas veria falecer alguns dos seus progenitores.

Finados de fundadores

A revista “Rádio & Televisão” (R&T) relatava assim, em 1961, a morte de Jorge Botelho Moniz, co-fundador do RCP: «Morreu em Lisboa um verdadeiro “homem da Rádio” (…) A ele se deve o Rádio Clube Português (…) Mas Botelho Moniz foi compreendido. O seu exemplo perdurará. Logo que se soube da sua morte, a urna foi rodeada – e manteve-se assim pela madrugada fora – de velhos amigos e camaradas, dos homens da nossa Rádio oficial e particular”(3). Alberto Lima Basto, co-fundador do RCP, viria a falecer em 1968.

Monsenhor Lopes da Cruz, o edificador da Emissora Católica Portuguesa, desapareceu em 1969: “Foi durante a Missa do aniversário das Novidades, em 15 de Dezembro de 1968, que Monsenhor Lopes da Cruz teve o primeiro rebate da doença que havia de vitimá-lo. Dias depois diagnosticava-se o mal implacável que logo aconselhou uma intervenção cirúrgica. Internado no Instituto Português de Oncologia, ali seria operado no dia 7 de Janeiro de 1969. (…) Sucederam-se meses de sofrimento, suportado sempre com edificante resignação. Até que se deu o seu encontro definitivo com Deus, falecendo às 22 horas de 9 de Junho. O corpo foi transladado para a Basílica dos Mártires e o funeral realizou-se, no dia 11, de Lisboa para o cemitério de Faria, Barcelos. Toda a Imprensa Portuguesa, a Rádio e a Televisão prestaram digna homenagem à memória do ilustre sacerdote e realçaram os vários aspectos da sua obra de apóstolo, principalmente no domínio dos Meios de Comunicação Social”(4).

Rádios insulares

Nas ilhas adjacentes, o regime deu especial atenção à rádio açoriana: “Dados os perigos que comportava um prolongado contacto das populações insulares com as forças estrangeiras aí estacionadas, impôs-se a necessidade de montar uma estação emissora que, no mínimo, limitasse os efeitos dessa convivência e, por outro lado, justificasse e propagandeasse, de modo permanente, a integralidade do território nacional, bem como a política de neutralidade de Salazar, permanentemente colocada em causa por estações estrangeiras”(5).

Nos Açores, em 1964, entraram em funcionamento dois emissores de OM, de 1 kw cada, e um emissor de FM, de 0,2 kw, não sendo, no entanto, coberto o território na íntegra. Em 1962, o Emissor Regional dos Açores (ERA) emitia nove horas diárias, distribuídas por três períodos de emissão; transmitia programas dedicados aos militares açorianos, em Ultramar, perfazendo em 1968, 4382 horas, 832 gravações, 208 das quais em exteriores(6).

Ao longo da década, o ERA revelou-se de capital importância para a informação e orientação das populações, aquando de dois acidentes naturais, o primeiro dos quais foi o vulcão dos Capelinhos, em 1958, que significou “(…) um ponto alto na informação da estação, fazendo-a transmitir para todo o país e desenvolvendo um serviço público de informação às populações sinistradas”(7). Em 1964, ocorreu um novo sismo, em S. Jorge, cujas informações do ERA, em colaboração com as autoridades, se revelaram importantes para orientar e aconselhar a população.

Em Outubro de 1967, o Emissor Regional da Madeira da EN iniciou, com 1kw e para um terço do território, a retransmissão de quatro horas da emissão nacional, um espaço que, até ao final da década, não se autonomizaria.

Emissores regionais

Por seu lado, os Emissores Associados de Lisboa (EAL), bem como os Emissores do Norte Reunidos (ENR) destacaram-se enquanto rádios mais populares, cumprindo algumas delas um papel de algum afrontamento ao “status quo” e inovação da programação. Na sua primeira crónica depois do 25 de Abril, Natália Rego, crítica de rádio, elogiou a “Alfabeta”: «Reconhecemos o esforço da maior parte dos jovens de “Alfabeta” para a conquista, ainda tímida, de liberdade de expressão e juízos de valor»(8).

Tratava-se de uma estação que produziu um êxito, “1-8-0” (vencedor ex-aequo do Prémio Imprensa, em 1969) e que emitia na Rádio Peninsular, uma das constituintes dos EAL, à qual se juntavam o Clube Radiofónico de Portugal, a Rádio Voz de Lisboa e a Rádio Graça – independentes, mas a trabalhar com os mesmos emissores: um de 1 kw e outro de 10 kw, para a OM, e o terceiro de 1 kw, para o FM. No Norte, os ENR eram constituídos pela Electro-Mecânica, o Rádio Clube do Norte, a Ideal Rádio e a Orsec.

No resto do país, para além das emissoras regionais, como a Rádio Ribatejo, existiam também as chamadas “rádio-fantasma”, estações modestas e quase desconhecidas como a Rádio Oceano – Posto Emissor dos Marinheiros (na Serra do Caramulo), Estação C.S.B.23, que emitiu “de e para doentes da Estância Sanatorial do Caramulo”(9); a Rádio Pólo Norte – Estação C.S.B.20, Emissora das Beiras, que transmitiu diariamente, entre as 10 e as 19 horas. Em Setembro de 1967, recebia, em média, mais de mil cartas por mês e cerca de quatro mil pedidos e dedicatórias de discos; a Rádio Alto-Douro, da Régua – Estação C.S.B.33, possuía 4h 30m de programação, tendo recebido, em 1966, em “Cartas do Ultramar”, 6324 aerogramas com mensagens de soldados e de 385 madrinhas de guerra(10).

(1)R&T 11/11/1961, pág.17. (2) Alexandra Lucas Coelho - RDP 01/04/1997. (3) “R&T” 05/08/1961, pág.3. (4) “Para a história da Rádio Renascença”, pág.99/100. (5) Op. Cit., pág. 49. (6) Idem, pág.52. (7) Idem, pág.51. (8) R&T 04/05/1974, pág.27. (9) R&T 16/12/1967. (10)Idem, 07/10/1967, pág.11.

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quarta-feira, 14 de março de 2012

Ofício de pai


Antes do Dia do Pai publicamos uma singela conversa tida há quase 35 anos entre uma criança e o seu pai.

Texto Isabel Mota


O paizinho gosta do seu ofício?

Sim, gosto muito.

A sua oficina é longe?

Não se torna muito longe.

O que faz o paizinho no seu trabalho?

Eletrifico as coisas para as pessoas terem melhores condições nas casas.

Gosta mais de arranjar ferros ou campainhas das portas?

Gosto mais de arranjar ferros porque são mais necessários para as senhoras.

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domingo, 11 de março de 2012

Documentários



Na nossa quinta Primavera celebramos o redespertar da vida natural com alguns filmes de não ficção sobre diversos assuntos.

Selecção Francisco Guerreiro fotografia Dina Cristo   

KITIDY, Katerina; CHATZISTEFANOU, Aris - Catastroika:




BIOSFERA - Plano Nacional de Barragens (2011):




COSTA, Jorge - Donos de Portugal (2012):



ROGERS, Heather - Gone Tomorrow: The Hidden Life of Garbage (2002):

 

 KEADY, Jim - Behind the Swoosh:



EUXTV (Comissão Europeia) - Nano, the next dimension (2002):

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quarta-feira, 7 de março de 2012

Ser cuidadoso



Na véspera do Dia Internacional da Mulher, seguimos de perto um artigo* que reflecte sobre o valor da atenção, dedicação e amor ao outro.

Texto Dina Cristo


A Ética da Justiça e dos Direitos Humanos, formalista, masculina e individualista, levou à adopção, por auto-defesa, dos valores da objectividade, neutralidade, imparcialidade, distanciamento e ao jornalismo de mera observação, como refere Bell.

A Ética liberal, universalista, não prescritiva, monológica, impessoal e independente, egocêntrica e baseada no Self provocou, segundo os autores, uma crise de Imprensa que se traduz quer na separação entre audiência e jornalistas (como no caso da política entre eleitores e eleitos) quer no seu conflito de identidade entre a personalidade pessoal (ansiosa por cuidar) e profissional (forçado pelas exigências redactoriais) gerando constrangimento, desconforto e frustração.

Os defensores da Ética do Cuidado, que a reviram e aplicam à profissão, propõem a sua versão política como um modelo complementar ou mesmo alternativo ao dominante. Esta Ética da compaixão afirma que os valores dos vínculos, praticados até aqui sobretudo ao nível doméstico e local, têm condições, podem e devem também ser aplicados à esfera pública (e não apenas privada) e transnacional (ultrapassando o âmbito local).

A ética do Cuidado tem por base a relação, a (re)ligação com a comunidade, com o colectivo, o contexto [cf. Grierson], no âmbito de uma responsabilidade social. Propõe a expressão da subjectividade, da parcialidade e da aproximação como um envolvimento que não anula o desenvolvimento ou a realização, pelo contrário. Trata-se de uma Ética que defende não só a tomada de posição, e ligação ao(s) outro(s), como o dever de as assumir e explicitar tal como os interesses e experiências. Como afirma Bell, uma ética que não se mantém neutral entre o certo e o errado, a vítima e o opressor e que, entre o bem e o mal, toma posição.

Esta proposta revisitada é mais feminina, emotiva, afectiva, sensível, pessoal e (inter)dependente. É uma ética que não apenas se ocupa de pessoas e dos seus problemas mas com eles se preocupa e «pós-ocupa». Uma ética em que a caridade é uma virtude a ter em conta nas instituições, designadamente jornalísticas.

Os autores afirmam que o jornalismo sempre foi uma profissão atenta e cuidadosa, quer em relação aos acontecimentos internacionais quer em relação às reacções provocadas; além dos valores profissionais, como verdade, credibilidade, exactidão e justiça, o jornalismo possui valores democráticos de uma vida cívica; uma profissão séria e deliberativa, descrita por vezes como apaixonante.

Mas se hoje, com o Jornalismo Público, os profissionais exigem da audiência uma maior preocupação e envolvimento com os assuntos públicos, deverão ser eles os primeiros a dar o exemplo e, de facto, a cuidarem devidamente do seu trabalho, das palavras que (ab)usam ou não, dos actos perante as fontes de informação e pessoas (in)directamente relacionados com o facto a conhecer e relatar. Tal implica uma nova atitude que começa na atenção e termina na compreensão, sem esquecer a responsabilidade e a competência.

O género tradicionalmente mais dedicado ao cuidado dos outros é o feminino e em termos de profissões as que estão mais associadas a pequenos grupos e ao contacto pessoal, tais como amas, enfermeiros ou professores. Quer se trate de trabalho voluntário, desinteressado, praticado naturalmente ou não são tarefas que exigem muito maior intensidade, nomeadamente em tempo e dedicação, possuindo menos autonomia, e que em termos salariais, quando este existe, é menor.

Estas pessoas realizam as suas funções de forma (mais) generosa, humana e frequentemente sem julgamentos, em ambientes domésticos e com um vocabulário mais sentimental (como a designação de Mãe-Terra). São precisamente estes cuidadores, subordinados, desautorizados, marginalizados, e discriminados pelos “media”, que também mais sofrem e precisam de carinho. Uma necessidade que pode e deve ser satisfeita pelos órgãos de comunicação social, fazendo novas e mais perguntas, dando-lhes voz activa e ocasião para serem ouvidas.

Ajudar homens e mulheres em sofrimento é um tema público, que requer deliberação a esse nível, sobre que histórias escolher, quem ouvir, o que citar, como relatar, enfim, o quê e quem mais precisa e merece atenção colectiva. Uma reflexão, análise e decisão moral, numa profissão, com agentes, modos de produção, respostas e, agora, epistemologia também ela moral.

Numa altura de grande circulação de textos e sobretudo de imagens, com o seu fácil acesso e eficácia afectiva; de constituição de comunidades cada vez mais independentes dos lugares [cf. Hall] construindo novos espaços sociais; com uma audiência cada vez mais consciente do sofrimento humano à escala global e cada vez mais pessoas ansiosas por ajudar, incluindo os próprios jornalistas, este novo hábito de tratar atenta e cuidadosamente as pessoas, estejam elas a montante ou a jusante do trabalho informativo, traz várias oportunidades.

Estas histórias assim contadas pelos jornalistas, e sem indiferença, podem levar outros repórteres a também prestarem atenção a estas vozes cuidadoras, inspirando o cuidado a nível geral, florescendo assim, uma auto-ajuda mútua a nível mundial. Foi o que ocorreu com o “Live Aid” [em 1985]. Ver e ouvir, cuidar de quem cuida [caso das ONG], levará, antes de mais, a aliviar o sofrimento e a reduzir a sensação de isolamento, com o benefício da interacção quase mediada.

Conteúdos atentos às propostas políticas para a (re)solução do sofrimento e elaborados cuidadosamente poderão levar, segundo as autoras, a que se passe da benevolência à efectiva beneficiência, do sentimento de bondade ao serviço social, da pena distante e geral à compaixão próxima e concreta. Uma das maiores vantagens será a manifestação de uma política global de solidariedade colectiva, como afirma Frase, fruto da conjugação entre a Individualidade e a Humanidade, entre o campo institucional e o da intimidade.

Esta Ética do Cuidado, que contém a da Justiça, tem condições e deverá integrar a da Virtude, nomeadamente enquanto forma de conhecimento, numa pesquisa, recolha, selecção e edição virtuosas com todos os efeitos positivos daí decorrentes, designadamente para profissionais e público. Para as autoras, o Jornalismo Público integrou e deve aprofundar a integração da Ética do Cuidado, ao ter como conceitos fortes precisamente o cuidado, a conexão e a ligação.

Além do mais, a Ética do Cuidado pode completar a sub-teorização do Jornalismo Público enquanto este tem para oferecer à Ética do Cuidado o movimento prático que impulsionou. O cuidado servirá igualmente para evitar o isolamento ao nível do hiper-local das experiências do também chamado Jornalismo Cívico, alargando as suas fronteiras para comunidades ao nível transnacional.

Esta reconexão global manifesta os princípios da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, herdeiros da Revolução Francesa, correspondentes ao estágio pós-convencional de Kohlberg, indicativo de um desenvolvimento moral em que o círculo de compaixão e caridade se expande até ao nível universal expressando preocupação em relação a toda a Humanidade – atingida pelos jornalistas cívicos e de investigação - depois da responsabilidade para com a família e amigos, característico da etapa convencional, e distante da primeira fase, a pré-convencional, restrita ao pensamento egoísta.

* STEINER, Linda; OKRUSCH, Chad – Care as a virtue for journalists in Journal of Mass Media Ethics, 2006, 21, pág.102-122.

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