quarta-feira, 30 de abril de 2008

Mulher sem medo

No dia em que passam quatro anos sobre a morte de Etelvina Lopes de Almeida, recordamo-la, numa auto-biografia, concluída há cerca de dez anos, durante uma investigação sobre a rádio nos anos 50. Numa entrevista inédita, esta voz da EN passa em revista alguns dos principais acontecimentos da década: os folhetins, inaugurações, os movimentos independentistas, Humberto Delgado e a oposição.

Recolha Virgílio Luís Silva fotografia Dina Cristo

Nasci em 1916, em Serpa, no Baixo Alentejo, e fiquei por lá até aos meus cinco ou seis anos. Os meus pais eram professores primários e, por volta de 1920, foram exercer a profissão em Idanha-a-Nova, onde residiam os meus parentes paternos.
Fiz a instrução primária em Idanha. Fomos, depois, residir para Barcarena, na sequência de um caso desagradável ocorrido com a minha mãe quando estava nos últimos meses de gravidez da minha irmã Maria Isabel: a minha mãe sentiu–se muito mal e faltou às aulas durante uma manhã. Nesse tempo as turmas eram muito grandes, na província um professor tinha três ou quatro classes juntas e, para poder ministrar o programa a cada classe, ficava na escola até muito tarde. Quando a minha mãe chegou à escola, depois do almoço, estava o inspector escolar à espera dela para a informar de que ia ser processada por ter faltado nessa manhã. A minha mãe, com uma gravidez mais do que evidente, lá se explicou. Mas não, não havia justificação plausível para o atraso.
O processo disciplinar penalizou-a em dois anos sem trabalho e sem remuneração. Ficámos numa situação difícil, com metade do orçamento para uma família acrescida. Descontentes, os meus pais resolveram sair do Distrito. Antes de nos fixarmos em Lisboa, ainda residimos no Monte da Caparica e Almada. As sucessivas aproximações da família à capital estavam relacionadas com a continuação dos meus estudos e dos de minha irmã.
Já em Lisboa, frequentei o Liceu Maria Amália que era, então, no Carmo. Tenho gratas recordações de algumas professoras. Quero prestar homenagem à minha professora de História, a Sra. Dra. Olímpia Bastos, que sabia prender a atenção dos alunos e transformava a aprendizagem num prazer. Era ela quem ensaiava as nossas festas e mantinha com as alunas um relacionamento de verdadeira amizade.
No Liceu fiz a secção de Letras. Pensei seguir o Curso de Filosofia, mas era necessário tirar a Secção de Ciências. Resolveu-se, em casa, que seria melhor ficar internada num colégio com boa reputação, que havia em Queluz. A mensalidade era de 400$00.
Eu tinha saído de um esgotamento cujo tratamento consistia em repouso absoluto, sem estudar, nem ler os jornais. Naquele tempo não havia muitas possibilidades de distracção sem sair de casa. Ouvia rádio. Entusiasmei-me, então, com as emissões de O Papagaio, dirigidas por José Castelo na Rádio Renascença e comecei a colaborar no programa enviando objectos que respondiam a jogos de adivinhas. Lembro-me, por exemplo, de que enviei um colar de bogalhos para completar a frase que devia ser ‘vila de Colares’.
Tinha uma participação activa no programa e a minha contribuição de artesanato foi tal que fui convidada para a exposição que encerrava o concurso. Conheci, então, a equipa de O Papagaio.
Por essa altura saiu a secretária do José Castelo e, lembrados do meu empenhamento, convidaram-me para a substituir. O vencimento era de 400$00 mensais. Aceitei, eu tinha 25 anos e achei que devia ajudar os meus pais a criar a minha irmã mais nova, a Maria Alexandra. Desisti do Curso de Filosofia.
Quando o José Castelo foi para a BBC, fiquei a substituí-lo tanto na locução como nos noticiários e sessões de lançamento de artistas. Lembro-me que nessas sessões se estrearam a Maria de Lourdes Norberto e a Carmen Dolores.
Fui acumulando trabalho e já estava a rever as provas da Revista da Renascença, ganhando os mesmos quatrocentos escudos. Não era justo nem suficiente. Eu estava a fazer economias até nas refeições. No andar por cima da Rádio Renascença havia a pensão dos pais do Igrejas Caeiro. Eu mandava vir o almoço da pensão, que constava de uma sopa, um prato de peixe, um prato de carne e vinho (que eu substituía por fruta) e pagava cinco escudos. Almoçava metade e guardava o resto para o jantar.
Sugeri ao Lopes da Cruz, então responsável pela Rádio Renascença, um aumento de vencimento correspondente ao aumento de trabalho. Recusou e decidi sair. Entretanto, o Adolfo Simões Muller que fazia parte da equipa de O Papagaio foi para o Diário de Notícias e, sabendo do meu descontentamento, convidou-me a ir também. Resolvi esperar mais um tempo para não deixar o programa sem substituto.
Surgiu outra oportunidade de trabalho que me pareceu interessante e deixei a Rádio Renascença. Entrei para uma empresa de recortes de imprensa, recém-criada. Recebia oitocentos escudos por mês, estava a melhorar.
Já tinha, então, a colaboração no Modas & Bordados. A Maria Lamas, então directora da Revista, convidou-me para a secretariar. E fui.
Em 1943 era chefe de redacção de Modas & Bordados e assinava contos e reportagens no Século Ilustrado, da mesma empresa.
Em 1944 concorri a locutora da Emissora Nacional. Na altura, a admissão na carreira exigia três provas de aptidão: prova de voz, que era eliminatória, em que passei sem dificuldade porque já vinha com a experiência da Rádio Renascença; uma segunda prova de conhecimentos de música erudita e ligeira; uma terceira prova que consistia na leitura de textos em língua francesa e inglesa. Passadas estas provas com êxito, fiz um estágio de oito dias ao microfone.
Em 1946, era locutora da Emissora Nacional e directora de Modas & Bordados. Por esses anos realizei, também, algumas tardes infantis no S. Luís e no Coliseu dos Recreios a favor da Colónia Balnear Infantil de O Século.
Nunca me desliguei de Serpa onde passava férias. Observava de perto o abandono sociopolítico do Alentejo. O desencanto dos trabalhadores espelhava-se nos cantares que, de uma forma poética chamavam a atenção para as disfunções sociais:
Bem podia, quem tem muito; Repartir com quem não tem; O rico ficava rico; E o pobre ficava bem.
No intervalo dos trabalhos sazonais, as mulheres (tal como os homens) do campo ficavam sem emprego e sem qualquer remuneração. Organizei uma ‘oficina’ de tecelagem onde mulheres da zona de Serpa pudessem aprender uma actividade que lhes valesse algum dinheiro para ajudar o orçamento familiar. Em 1945, a Casa do Alentejo, em Lisboa, expôs esses trabalhos de tecelagem. O certame abriu com uma conferência cujo tema foi A Mulher no Trabalho. Era, também, uma forma de chamar a atenção dos citadinos para os problemas económicos dos trabalhadores rurais.

Em 1948, surgiu a oportunidade de tomar posição a favor da democracia. Assinei, juntamente com outros colegas da Emissora Nacional, as listas da oposição que advogavam a liberdade de imprensa e a libertação dos presos políticos do Tarrafal, entre outras coisas.
A demissão dos cargos de quantos assinaram o documento era óbvia, mas não foi imediata. O António Ferro, então responsável pela Emissora Nacional, não tomou qualquer medida, pelo menos directamente. Só as atitudes das chefias mudaram. Eu pertencia à Secção Social da Casa do Pessoal e, nessa condição, era contactada pelos trabalhadores de menos recursos para lhes valer na compra de medicamentos e obter exames médicos de que necessitavam. Para isso, consegui um acordo com o Sr. Desidério, da farmácia do bairro: ele fornecia os medicamentos receitados pelo médico aos funcionários mais carenciados e eu, como funcionária da Casa do Pessoal, responsabilizava-me pelo pagamento no final do mês. Certo dia soube, pelo empregado da farmácia, que o meu nome «estava invalidado» pelo meu chefe.
A partir daí só conseguia consultas nos hospitais ou radiografias para os trabalhadores através de conhecimentos de gente da oposição que os faziam gratuitamente (não tinha garantia de que autorizassem o pagamento). Dificultava-lhes, assim, a tarefa de me excluírem dos serviços de Acção Social.
Quando o António Ferro saiu da Emissora Nacional para ocupar outro lugar, deixou na gaveta os processos dos oito trabalhadores que tinham assinado as listas da oposição. O Felner da Costa, que o substituiu (vinha da Federação Nacional para a Alegria no Trabalho!!!), apressou-se a pôr-nos na rua.

Em 1949, fiz-me sócia da Liga Portuguesa Feminina para a Paz, com sede num 1.º andar do Largo do Príncipe Real. Fazíamos reuniões em que se falava dos problemas da mulher, mas acabou. As sócias passaram para o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas e aí é que havia actividade. Na direcção esteve a Sara Beirão e depois a Maria Lamas que estava muito feliz por ter um espaço onde podia dizer o que queria.
Então o Conselho fez uma exposição de obras literárias de mulheres de todo o mundo, cedidas pelas embaixadas, com os respectivos retratos pintados por uma das sócias. Tudo feito no maior segredo. Em cada dia que durou a exposição houve uma conferência. Correu normalmente até que chegou a vez de Maria Lamas falar. Foi brilhantemente agressiva, foi presa. A Associação, obviamente, fechada.
Mais tarde a Fernanda Pires da Silva resolveu ressuscitar o Conselho: reuniu, na Sociedade de Geografia, a Maria Lamas, a Cesina Bermudes, convidou a Presidente do Conselho Nacional das Mulheres Brasileiras, falou-se muito, fizeram-se muitos projectos e... ficou por aí.
Em 1962, assinei um documento da oposição contra a guerra de África e, por isso, fui demitida da revista Modas & Bordados. Estava sem Rádio e sem Revista. Para sobreviver recorri ao trabalho clandestino total. Nunca assinei com pseudónimos, não assinava.
Estive assim até 1968, quando fui para Paris, para casa de minha irmã Maria Alexandra, donde mandei uma série de reportagens sobre os emigrantes portugueses, para publicar no jornal O Século (sem a minha assinatura, claro!). Era a época do boom da construção civil e dos bidonville, esses buracos de chão térreo, muito frios, aquecidos com braseiras e onde morreram alguns emigrantes intoxicados. Fui muito bem recebida, era alguém que se interessava por eles.
Colaborava, então, na revista Donas de Casa e aí contactei com o projecto Cidade Turística - Madeira Matur, ligada à imobiliária Construtora Grã-Pará. A empresária, Fernanda Pires da Silva, convidou-me para coordenar o Gabinete de Relações Públicas da empresa e promover, directamente, os hotéis da Ilha da Madeira e do Algarve em exposições que realizámos na Espanha, Suíça, Bélgica, Brasil e Canadá. Tínhamos públicos específicos: operadores turísticos, embaixadas e emigrantes. Lembro-me de que levámos milhares de estrelícias para distribuir. Foi um êxito. Era uma forma muito diferente de promover serviços, era directa e com calor humano.
No Canadá, senti-me em casa. Desci a Rua Augusta, todas as lojas tinham produtos tipicamente nossos. Acabei por assistir a 17 baptizados (ao mesmo tempo), na Igreja de S. Luís.
Quando fui ao Brasil, os emigrantes convidaram-me para uma festa e avisaram-me de que havia uma surpresa. Era uma surpresa confrangedora: um par de tamancos acompanhados da frase «foi só isto que trouxemos». Era uma forma de agressão. No meio da surpresa, apertei os tamancos ao peito e disse «foi a melhor prenda que me podiam dar, foi de tamancos que os portugueses fizeram o Brasil» e desfez-se o gelo.
Com a revolução do 25 de Abril fui reconduzida ao meu lugar de locutora na Radiodifusão Portuguesa (nome resultante da fusão da Emissora Nacional com outras estações de rádio não estatais). Em 1975, fiz um curso de Chefe de Equipa de Realização Radiofónica e, no ano seguinte, fui chefiar o Departamento da Radiodifusão Portuguesa Internacional, onde podia continuar a contactar com as comunidades portuguesas no estrangeiro. Nesse mesmo ano, no dia de Camões, organizei a primeira Mesa Redonda Internacional. Depois fui várias vezes ao estrangeiro visitar as comunidades emigrantes. Fui a Lyon, convidada pela Associação de Emigrantes Portuguesas para festejar o 1.º de Maio e aos Estados Unidos inaugurar uma estação de rádio dirigida por emigrantes portugueses. A revolução dava-me espaço para continuar a luta pelos meus ideais e achei que o faria melhor integrada no Partido Socialista, onde sempre me situara ideologicamente.
Em 1976, fui eleita deputada do PS à Assembleia Constituinte, pelo Circulo Eleitoral de Évora. Foi o ano em que se discutiam, na Assembleia, os artigos da Constituição da República. Nem toda a gente queria uma Constituição democrática. As galerias estavam cheias de pessoas a assistir que se manifestavam contra tudo o que se dizia no hemiciclo. A certa altura resolveram boicotar a Assembleia e fecharam-nos as portas. Os deputados ficaram prisioneiros dos manifestantes durante dois dias e duas noites. Os manifestantes ocuparam o refeitório e obrigaram–nos a uma greve involuntária de fome.
Havia uma senhora grávida que se sentia mal. Telefonei para a Radiodifusão Portuguesa a pedir que nos enviassem comida e os colegas da rádio solidarizaram-se e mandaram sandes mas o piquete, que estava a controlar a porta do palácio de S. Bento, não deixou que entrasse a comida.

Como não conseguíamos dissuadir os manifestantes, o Professor Henrique de Barros telefonou ao Vasco Lourenço a pedir ajuda e apareceu um helicóptero que deixou cair as sandes no jardim do palácio. Ainda tentaram impedir que apanhássemos a comida saltando para o jardim, mas não conseguiram.

Os deputados de então tinham que responder a desafios muito diferentes. Um deles era gerir a novidade das cooperativas agrícolas. Solicitavam-me para os mais diversos assuntos. Era necessário arranjar técnicos agrícolas, maquinaria, tudo o que faltava. Bati-me pelo meu eleitorado e fui reeleita em 1978.
O meu interesse pelos problemas das mulheres continuaram e, em 1983, fui distinguida pelo Conselho Nacional das Mulheres Brasileiras como A Mulher do Ano no Relacionamento Portugal-Brasil. Estava integrada na Associação Portuguesa de Mulheres Empresárias e Profissionais e colaborei, activamente, no 1.º Congresso Internacional, em 1987. Em 1994, fui homenageada pela Associação das Mulheres Socialistas.
Outra das minhas preocupações era a qualidade de vida dos idosos. Fui à Suécia para contactar com formas de organização de casas para a 3.ª idade e, em 1983, o Parlamento Europeu para o Idoso convidou-me a presidir a uma sessão em Estrasburgo, aquando foi aprovada a Carta Europeia para os Idosos. Estes contactos deram-me curriculum e experiência para o que faço agora.
No dia 10 de Junho de 1995, o então Presidente da República, Dr. Mário Soares, agraciou-me com a Ordem da Comenda de Mérito. Continuo a trabalhar e a escrever. Estou a finalizar a introdução para um livro que a Fernanda Pires da Silva vai publicar sobre o primeiro restaurante junto ao Cristo Rei (que respeita o ambiente) e a rever o livro de que já falei, Ao Levantar das Tendas. Não lamento nada do que me aconteceu. Quero que se saiba que não trocava a minha vida por nada.




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Rádio teatral

Na primeira parte desta entrevista, Etelvina Lopes de Almeida fala do teatro radiofónico. A “Coxinha do Tide” e as “Pupilas do Sr. Reitor” ficaram na história.

Entrevista Virgílio Luís Silva


Este é uma resumo das várias vezes que falei com a Etelvina Lopes de Almeida a propósito da Rádio. Quis saber como era o trabalho, que pressões se sofria, o que não se dizia, o que não se podia fazer. De própria voz, a Etelvina contou.
Em 1950 um dos dados interessantes que consegui recolher, foi a Invasão da Coreia do Norte pela Coreia do Sul. Não sei em certa medida que repercussão teve cá em Portugal e se foi feita alguma coisa a nível da rádio cá, ou como foi dada a notícia pela Rádio cá em Portugal...
Eu devo dizer-lhe que tudo o que era dado politicamente sobre qualquer acontecimento era só através da Nota do Dia que era uma folhinha que nós líamos antes de começar o noticiário...
A Nota do Dia era uma espécie de Editorial …
Era. Era um editorial político feito pela casa, evidentemente, ou feito por pessoas a quem a casa os encomendava. Nós tivemos várias pessoas a fazer essas coisas desde o Silva Dias ao João Ameal e outros assim e, portanto, a Nota do Dia era marcada pelo lado político do governo e depois eram notícias soltas, notícias das agências depois de censuradas.
O problema que a Coreia Norte e Sul teve para o público em geral, e para aqueles que tinham uma visão democrática da vida, resultava numa simpatia para a Coreia do Norte e o Estado tinha uma simpatia para a Coreia do Sul. Daqui havia, por exemplo um choque de noticiário, que as pessoas democráticas diziam “olha lá estão eles a dizer contra...” e nós a dizer a favor, portanto, nem a interpretação do público é que se poderia encontrar a diferença entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul, porque a partir da Guerra de Espanha, as pessoas ficaram cépticas em relação às notícias que dava o Estado.
Primeiro o Estado, enfim, os nacionalistas ganhavam em toda a parte, e não era bem assim, e claro, quando chegou à vitória do Franco, as pessoas, a maior parte dos portugueses, ficaram desanimados, muitos tinham combatido na guerra de Espanha. A Guerra de Espanha tinha trazido a Portugal um acender de novas ideias que não se coadunavam com as ideias do Estado Novo, houve muita gente presa por defender as ideias republicanas, portanto, houve por assim dizer uma explosão em Portugal de política, devido à Guerra de Espanha, até porque nós sabíamos todos que nós estávamos a apoiar Franco, que estávamos a mandar mantimentos para lá, que estávamos a ter cada vez menos mantimentos em Portugal mas o Estado continuava a negar. Portanto esse jogo de verdade/mentira estabeleceu aquilo que levou depois às listas da oposição.
Tanto assim que no principio da década de 50 o Marechal Carmona, na sua mensagem de ano novo, faz a apologia de Deus, Pátria e Família e diz a certa altura “com tal proceder, não só se afirma a consciência de uma solidariedade espiritual e o natural anseio de sobrevivência pela família, como demonstramos crer que alguma coisa na vida transcenda a nossa vontade, os nossos desígnios, o nosso próprio esforço, por muito dependerem de uma bênção superior, enfim da protecção da Providência que dirige os destinos dos homens e dos povos”.
Dá a sensação que tudo está bem, que o governo trata muito bem as pessoas, que estamos todos unidos, solidários, perante o futuro da Pátria, mas não é nada disso...
E que Deus está lá de cima a olhar por todos nós...
Não era nada disso! Eu pergunto: Onde cabe aí nessa ideia o Tarrafal, onde cabe aí nessa ideia o bailarico que existia no governo civil que, de vez em quando, eu ouvia na Renascença...
A Renascença quanto a isto, era mais liberal que a Emissora Nacional, ou não....A censura estava lá também.
Não sei como a gente pode dizer que a Renascença era mais liberal. Evidentemente, eu estava lá, fiz programas lá, que até fiquei a transmitir uma opereta russa chamada Katiuska, e eles não percebiam o que era. Não era mais liberal, talvez fosse menos agressiva no sentido de fiscalização, no sentido de censura, e deixava a nós “ad limitum” a responsabilidade daquilo que fazíamos. É a outra maneira de contornar o problema. Tu tens a responsabilidade, agora aguenta-te.
Isso fazia com que as pessoas respondessem posteriormente pelos seus actos...
Não nunca dei por isso, havia era coisas muito estranhas. Eu vou-lhe dizer. Na Renascença durante um grande período, fazia-se uns sorteios de automóveis, vendiam-se os bilhetes e depois o sorteio era pela Santa Casa da Misericórdia e um dia a chefe do escritório chegou ao pé de mim e disse: “Etelvina hoje o Monsenhor Lopes da Cruz convida todas as pessoas a rezar o Terço no seu gabinete, para pedir a Nossa Senhora que faça sair o número da lotaria, nos números de bilhetes que ficaram na casa, que são muitos. Ficou muito bilhete em casa”. Eu não vou pedir isso a Nossa Senhora, tem paciência, isso é um comércio. Sou cristã não posso de maneira nenhuma fazer comércio com Cristo. “Ah mas pede para estarem todas”... Evidentemente quando chegou à hora lá do Terço, o Monsenhor Lopes da Cruz, lá com as Senhoras que estavam junto dele e que pertenciam à sua Igreja, armaram um altar em cima do cofre a Nossa Senhora e Fátima, puseram uma vela e começou o Terço. Simplesmente isso era uma coisa que na minha consciência eu não podia, eu não peço nada para mim. Eu parto do princípio de que eu tenho aquilo que mereço. Para eu pedir para mim, eu tenho que pedir para a Humanidade inteira, de modo que eu não fui. Assumi a responsabilidade. O Monsenhor nunca mais me falou... Quando chegou a altura de pôr o problema da minha saída da Renascença, deixaram-me vir embora, percebi muito bem.
O que é certo, ou pela prece ou não, o número do automóvel saiu na casa. De maneira que ficaram todos contentes que Nossa Senhora de Fátima tinha feito um milagre. Havia estas coisas que dentro dos católicos, não quer ofender ninguém, mas para uma pessoa que de religião tem um respeito muito maior, não dá! Eu não podia colaborar numa coisa destas.
Outro dos acontecimentos grandes na década de 50, logo no início da década na rádio, nomeadamente o da E.N. ter decidido que o Teatro Radiofónico passaria a ser diário. A Rádio Nacional escrevia assim em 18 de Fevereiro de 1950: “um grande acontecimento na Rádio Portuguesa. A E.N. vai ter um folhetim radiofónico diário”. D. Etelvina, como é que foi? A rádio já tinha teatro radiofónico.
O teatro radiofónico já existia com a Virgínia Vitorino. Ela dirigiu o teatro radiofónico e muito bem. Trabalhei no teatro radiofónico da Virgínia Vitorino durante vários meses. Houve uma peça, “A Castro”, do António Ferreira. Pela necessidade, naquela altura nós não podíamos voltar a trás, tinha de ser tudo gravado de seguida. É claro, nós não podíamos de maneira nenhuma gravar teatro radiofónico nos estúdios da Emissora Nacional da Rua do Quelhas sem barulho e “A Castro” exigia o som de pedra pisada e o som de coisas daquela época. E então a Virgínia Vitorino disse: Só há uma maneira. É irmos para a Torre de Belém. Começamos às duas horas da madrugada e terminamos com o sol nascido”. Mas esse trabalho era um trabalho não para a Emissora Nacional, mas para nós próprios. Nós apaixonávamo-nos por aquilo que estávamos a fazer.
Agora em relação ao folhetim. O primeiro folhetim que foi para o ar foi no Rádio Clube Português e chamava-se “A Coxinha do Tide”. Esse foi o primeiro folhetim. Depois, não sei se foi o terceiro se o segundo, eu fiz a adaptação do Mário da Silva Gaio e fiz a adaptação da Rosa do Adro.
“A Rosa do Adro” teve um grande impacto. Foi para o ar três vezes. Esgotou os chocolates que a patrocinavam. De maneira que o dono da fábrica de chocolates me diz: D. Etelvina pare com o folhetim. Mas paro porquê, respondi eu. É que já tive de fazer um pavilhão na fábrica e não tenho mais espaço nenhum. Pare com isso. Eu agora não posso parar. Tenha paciência. Aumente outro pavilhão.
Era a Marquise, a fábrica de chocolates Marquise. Depois terminei, foram duas vezes e depois ainda uma terceira. Esse folhetim quem o tem é o Luís Sambado. Foi um folhetim que eu fiz com muito apego e com muito bons actores, à base do Vasco Santana e de pessoas do Teatro Nacional. Tinha a Maria de Resende, que naquele tempo era uma grande vedeta, tinha a Manuela Reis, eram as duas adaptadoras, que eu naquela altura tinha muito que fazer e dei a adaptação a elas.
E olhe, com o Vasco Santana aconteceu uma coisa engraçada. É que ele só podia fazer aquilo numa Segunda-feira, que era o dia em que não havia teatro. Tinha feito duas sessões no Domingo e depois tinha de fazer a sessão da noite de Terça-feira. E tinha oito folhetins a gravar, oito episódios. Lá chegamos, ele gravou os episódios todos e quando chegou ao fim era de madrugada, fomos embora. Isto está gravado e ele disse-me assim: Mas ó D. Etelvina então diga-me uma coisa, eu gravei isto tudo e agora não ouço. Se quiser ouvir, ouve, disse eu, mas oito folhetins, são oito vezes dez minutos. Como é que vai fazer isso, a que horas vai chegar a casa para dormir. Ele replicou: Ai, não me importo nada.
Ele era de um profissionalismo espantoso. Depois no Rádio Clube Português, os folhetins sucederam-se. É como hoje com as telenovelas. As pessoas ficavam agarradas ao aparelho, com uma vantagem, eu acho que é uma vantagem entre o folhetim radiofónico e a telenovela. Na telenovela nós somos só espectadores, vemos tudo quanto está ali, vemos a pessoa, ouvimos a sua voz, temos a cor, temos o décors, temos as viagens, temos a paisagem, temos tudo. Tudo nos é dado e nós só temos de receber. No folhetim radiofónico, como só existe uma via, o som, automaticamente o radiouvinte compõe o resto. E o folhetim é tanto melhor quanto através do diálogo ou através da sonorização nós levamos o ouvinte a compor o ambiente mais do que outro qualquer que não tenha a condição de compor. É uma das coisas que eu acho que a rádio ainda tem vantagem sobre a televisão. A pessoa colabora. Ao passo que na TV só recebe.
A propósito disto eu vou-lhe dizer que um dia fui para o Alentejo com o Urbano Tavares Rodrigues que queria falar com ceifeiros do Alentejo. Andava a fazer um romance, eu também fiz um sobre o Alentejo, ele é de Moura e eu sou de Serpa. Um dia tinha-me dito: Etelvina, eu gostava de falar com o povo autêntico. E eu disse-lhe: Então vamos embora. Fomos para baixo. Vejo uma quantidade de ceifeiras e disse-lhe: Urbano, vamos parar aqui e falar com elas. Bom. Chego ao pé delas e disse-lhes: Olhem eu sou da rádio, este senhor é escritor, tal, tal...- Ai a senhora é da rádio. Então diga uma coisa. Porque é que a senhora não nos dá conselhos de beleza para nós. Eu respondi-lhes: Dou conselhos de beleza a toda a gente. Não dou só para as senhoras que estão em Lisboa.
Porque é que não nos dá um remédio para a gente não esfolar as mãos, solicitaram elas. Olhem, porque eu penso que vocês enquanto estão no campo não ouvem rádio, retorqui eu. E eles responderam: Ai não. Então olhe ali para o corno da vaca. E estava um aparelho de rádio ali a transmitir. Devo dizer que o Urbano ficou impressionado com isto, que não conseguiu falar, estabelecer o diálogo, não conseguiu.
Eu disse-lhe: Então ó Urbano porque é que você não fala com elas. E ele: olhe é uma questão de pudor. Eu acho que esta gente vigorante é tão autêntica, tão simples e sincera que eu para fazer um romance não tenho a coragem de fazer perguntas.
Esta peça particularmente, que nós estamos a falar, e deu azo a esta notícia na Rádio Nacional, era as “Pupilas do Sr. Reitor”...
Isso foi dirigido pelo Adolfo Simões Müller.
Que era o produtor, tinha montagem de Jorge Alves, assistido por Jorge Santos, argumento e direcção musical de Belo Marques, que estará à frente, para este seu novo trabalho da Orquestra de Salão e o Coro Feminino da E.N.. E depois vem o rol de actores: Samwel Dinis (Reitor); Adelina Campos (Margarida); Barbara Virgínia (Clara); Estevão Amante (José Dias Dornas); José Amaro (Pedro); Álvaro Benamor (Daniel); Vasco Santana (João Semana); Rosina Rego (Joana a criada); Pestana de Amorim (João da Esquina); Luz Veloso (Stª Teresa de Jesus); Emíla Duque (Francisquinha); Barroso Lopes (mestre barbeiro). Lembra-se das Pupilas do Sr. Reitor?
Teve muito êxito.
Esta iniciativa de ter um folhetim diário na rádio não perdeu só com as “Pupilas do Sr. Reitor”. Teve seguimento?
Não me lembro qual foi o folhetim a seguir a esse. Lembro-me que foi o Mário da Silva Gaio, que foi adaptado também, mas não me lembro se foi na Emissora. Não deve ter sido na Emissora porque é um romance que a certa altura tem uma certa revolução lá dentro.
De qualquer modo o trabalho deste género de folhetim, implicava uma equipa muito numerosa a produzir e adaptar as peças para os actores.
Lembro-me quando eu fiz para os actores o folhetim “A Coxinha do Tide” não teve o respeito das pessoas que trabalhavam na rádio, percebe. Era uma coisa que todos diziam que era mal feita e era para as pessoas de bairro. Quando fiz a adaptação da “Rosa do Adro”, o Silva Dias chamou a direcção da Emissora e disse, porque é que nós não fazemos folhetins assim. É nessa altura que o Müller propôs a adaptação das “Pupilas do Sr. Reitor”.
Passando a diário.
Pois.
De qualquer modo as “Pupilas do Sr. Reitor” teve a importância histórica de ser um folhetim diário.
Sim, mas além disso havia uma coisa que era muito importante e que tinha muita audiência, que eram os diálogos de Domingo, o “Domingo Sonoro”, que era uma revista semanal e terminava com um diálogo de Domingo que era geralmente feito pelo Francisco Mata (escrito) e interpretado pelo Olavo d’Eça Leal e pela Maria João Duval, que era o pseudónimo da Virgínia Vitorino.
Mas teve uma altura em que era também interpretado pelo Ribeirinho e pelo Vasco Santana.
Não me lembro.

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Ofício radiofónico



Nesta segunda parte, Etelvina Lopes de Almeida fala das inaugurações, gravações e visitas oficiais. A morte de um presidente e a coroação de uma rainha.

Entrevista Virgílio Luís Silva

Em 1951, morre o Marechal Carmona. Presumivelmente haverá eleições e Salazar sobe ao poder. Esse período conturbado da morte do Marechal Carmona e da subida de Salazar ao poder como é que foi vivido na Rádio?
A rádio dava a notícia que o governo mandava.
Pura e simplesmente.
Pura e simplesmente.
E o ânimo das pessoas nessas alturas... Morre o presidente... Não houve um sentimento de luto nacional?
Havia da parte da oposição uma esperança de que qualquer coisa mudasse. Quando veio o Américo Tomás... As pessoas estavam muito cépticas, já não acreditavam. Claro, você vai para a rua e o povo todo que vai agora bater-se pelo Pinto, que foi castigado, vai amanhã bater-se pelo Presidente de novo. Eles deram uma volta grande pela cidade, veio de Belém, não sei onde ele está sepultado, se é nos Jerónimos se noutro sítio, sei que as pessoas acompanharam e choraram. Mas isso é o povo de rua que não tem qualquer consciência.
De qualquer modo a Rádio tinha de fazer a reportagem.
A rádio tinha de fazer a reportagem daquilo que acontecia.
Em 1950 foi eleito o General Francisco Craveiro Lopes, presidente, em Julho, mas em Abril havia morrido o Marechal Carmona e como candidatos oposicionistas à Presidência da República Portuguesa, apresentaram-se o Almirante Quintão Meireles e o Prof. Rui Luís Gomes. Estas são referências políticas da década de 50. Nesse mesmo ano é inaugurada a ponte sobre o rio Tejo em Vila Franca de Xira e a Barragem de Castelo do Bode.
Fez-se muita coisa sobre a Barragem do Castelo do Bode.
E sobre a Ponte de Vila Franca, também?
Também. Com o Carmona a inaugurar. Mas o Castelo do Bode até teve uma repercussão maior porque é lá que está uma estação retransmissora de rádio, ou da Emissora Nacional ou da Rádio Renascença. Se agora não existe, na altura existia de certeza, porque eu ligava os “bicordios” (sistema de comutação entre emissores ou entre Central-Emissor e vice-versa e entre equipamentos) ao Castelo do Bode.
O artigo da Rádio Nacional sobre a inauguração do Castelo do Bode diz assim: «Mas é justo assinalar o brilho da reportagem radiofónica realizada pela Emissora Nacional. Pode mesmo afirmar-se desconhecerem-se os meios que teriam tornado este trabalho mais meritório, tão completo e perfeito ele nos pareceu. Quem não teve a felicidade de assistir ao acto de inauguração pôde empreender com enorme facilidade as cerimónias realizadas. E só se a rádio podia oferecer ao ouvinte o desenrolar dos acontecimentos técnicos que trouxeram, em minutos, a energia até à Central Tejo. Na barragem do Castelo do Bode, Artur Agostinho descreveu aos radiófilos portugueses as principais cerimónias ali efectuadas dando emoção e quase realismo aos momentos da bênção da maquinaria pelo Senhor Cardeal Patriarca e início dos trabalhos da Barragem propriamente ditos, realizando simbolicamente, pelo Senhor Presidente da República. Na estação de Sacavém, Pedro Moutinho foi um perfeito rádio-reporter. O calor da sua voz, o trepidar das suas palavras, num fundo musical verdadeiro das maquinarias que gemiam ao esforço novo, deram na realidade, a todos os que o escutaram a noção grave e entusiástica do momento que passava. Raul Feio, na Central Tejo, aguardava que lá chegasse o novo fluído. E não foi menos feliz ao interpretar a satisfação dos engenheiros e pessoas daquela Central agora reforçada, graças ao trabalho e esforço de Portugueses. E a reportagem findou no estúdio. O percurso fora completo. A gota de água era agora energia. E a energia estava ao serviço da Civilização. Maria Teresa Caldeira fez, na cabine, o elogio do recém-chegado. Talvez em poema que cada um de nós gostaria de fazer - ou de dizer».
ELA - Eles eram por assim dizer os locutores oficiais de Estado. O Artur Agostinho e o Pedro Moutinho.
Em termos dos conteúdos, eles limitavam-se, por aquilo que o artigo diz, eles limitavam-se a descrever os acontecimentos, não entravam em grandes polémicas, por assim dizer.
Polémicas? Não. De maneira nenhuma. Eles descreviam. Umas das minhas provas de exame de locutora foi imaginar-me na Estufa Fria do Parque Eduardo VII para uma inauguração de flores com a presença da mulher do Chefe de Estado e com as entidades relativas à Câmara Municipal de Lisboa. E eu tinha de preencher dez minutos.
Portanto toda a descrição.... era aquilo que eu dizia, a TV dá a imagem nós temos de falar nas coisas. Eu desde as flores às plantas e toda a vegetação e ambiente antes da chegada das personalidades e a partir do momento da chegada da senhora eu elevava a voz exactamente para dizer que acabava de chegar.... Portanto eu tinha de imaginar tudo aquilo que estava a acontecer. Ora bem; se eu fiz isto como prova de locução para um exame, quem está a fazer isso na realidade tem a obrigação de dar o mais pequeno pormenor das coisas que vê. Mas só dava o que vê. Só dá o que vê.
Porque é que a D. Etelvina diz que o Artur Agostinho, o Pedro Moutinho, o Raul Feio, eram os locutores oficiais do Estado?
Porque eram sempre eles que eram nomeados para fazer as reportagens oficiais.
Foram eles também que estiveram na inauguração da Ponte de Vila Franca de Xira.
Sim.
Em 1951 realizou-se o 3º Congresso da União Nacional, cá em Portugal. Em Março de 1953, morre José Estaline na União Soviética. A Rádio Portuguesa fez ou disse alguma coisa de especial?
Além de dar a morte?
Nada mais houve?
Em 1957, no principio do ano a Rainha Isabel II vem a Portugal, e aí a Rádio Portuguesa brilha de outra maneira. Como é que foi D. Etelvina?
Olhe, com um palanque enorme no Terreiro do Paço, um bergantim todo enfeitado que vinha desde a fragata que a trouxe até à escadaria que estava toda forrada de tapeçaria vermelha. Depois havia um grande palanque, cá em cima, com as entidades todas, oficiais, para a chegada dela, havia hinos nacionais dos dois países e depois ficou alojada no Palácio de Queluz. Foi nessa altura que, dá-me a sensação, o Palácio de Queluz foi preparado para a Rainha e depois ficou a residência oficial para as figuras oficiais que visitam Portugal. Mas só chefes de Estado.
Mais uma vez os locutores oficiais do Estado fizeram a reportagem, Pedro Moutinho, Artur Agostinho... Em conversas anteriores, a D. Etelvina disse-me que havia uma estratégia de produção por detrás destas reportagens, que consistia no trabalho prévio dos produtores da Emissora Nacional investigarem e escreverem os textos de propósito para os locutores com vista ao preenchimento dos tempos mortos da reportagem.
O locutor quando ia para essas coisas já levava do Assistente Literário, os textos para preencher esses espaços, no caso de ser necessário. De maneira que eram textos que vinham da redacção, visados e tudo isso. Umas vezes eram precisos, outras vezes não. Mas isso era normal, tanto aqui como lá fora. Lembro-me de uma visita do Presidente da República a Madrid e foram todos os redactores para Madrid para apoiar o locutor.
Havia então sempre um trabalho preparatório destas coisas, muito grande, não só em termos dos produtores como também em termos dos meios técnicos, dos carros de exteriores e tudo isso.
E maquinaria e tudo.
A azáfama era grande. Eram momentos de tensão muito grandes.
Olhe. Era tão grande que eu vou-lhe dizer uma coisa. Quando eu estava na Emissora o Salazar gostava muito da minha voz e sempre que ele fazia uma apresentação ao País ele pedia que me pusessem de cabine e eu, evidentemente, nem sabia que era por pedido do Presidente do Conselho. Claro, como eu toda a vida fui uma pessoa profissional quer seja o Salazar ou outro qualquer. Tinha de dar o «gong», naquela altura era o «gong», e emitia as coisas todas por aí fora. Eu fazia o meu trabalho. Um dia eu estava preparada para fazer o trabalho, chega o Eng. Leote, que era um dos nossos directores técnicos, e disse-me: - Etelvina, hoje não pode ser. Hoje não pode ser. Hoje fala Salazar. Quem vai dirigir isto somos nós. Entrou ele. Entrou o Eng. Bívar e sentaram-se à mesa de comando e eu sentei-me numa cadeira cá atrás. Olhe não queira saber a barafunda que foi, porque os «pick-ups» (gira-discos) na Onda Média estavam todos atados com linhas e com cordelinhos, porque não havia técnica para substituir os «pick-ups» e como não havia substituição dos «pick-ups», nos que trabalhávamos todos os dias com elas adaptávamos conforme as nossas necessidades. De modo que naquele dia foi uma tragédia. - Como é que vocês fazem isto, como é que fazem aquilo. Isto é a prova de que, quando entram pessoas todas técnicas, pode não resultar, porque no dia-a-dia o trabalho que resulta é o trabalho do homem que está lá.
E na coroação da Rainha Isabel II, em 1953?
Nós estivemos lá.
Como é que a reportagem da coroação foi feita?
Os repórteres foram para a Inglaterra e faziam reportagens para cá, pelo telefone. Não podia ser de outra maneira. Já não me lembro muito bem como era. Ou então as reportagens eram gravadas lá e depois eram enviadas e transmitidas cá. O que eu me lembro é que alguns camaradas que lá foram me trouxeram lembranças da coroação da rainha, que ainda hoje tenho em minha casa.
Um dado interessante no que diz respeito a esta técnica de reportagem à distância foi por exemplo o que aconteceu relativamente ao Prof. Egas Moniz. A Revista Rádio Nacional fala de uma homenagens que lhe foi feita através de uma estação de rádio no Brasil, que descreve do seguinte modo: «No programa “Rosa dos Ventos” que Álvaro Dinis dirige na Rádio Cultura de S. Paulo, Brasil, foi prestada eloquente homenagem ao Prof. Dr. Egas Moniz por motivo da distinção que recentemente lhe foi concedido (conferida) pela Academia das Ciências e Artes da Suécia. Fizeram o elogio do eminente professor os senhores Pacheco e Silva e Edmundo Vasconcelos, tendo sido enviado para a Emissora Nacional, um disco com as palavras proferidas. Em resposta aos médicos brasileiros, o Dr. Egas Moniz esteve na Emissora Nacional, onde gravou uma mensagem de agradecimento radiodifundida pela E.N., através das suas estações 1 e 2 Porto, Coimbra, Faro e Ondas Curtas». Estas estações 1 e 2, concretamente o que eram?
Há o programa ligeiro e o programa clássico. Era música escolhida e música ligeira.
E como eram feitas as emissões nessa altura? Dá-me a sensação que a orquestra estava no estúdio, que os cantores estavam no estúdio, que os locutores estavam no estúdio.
Isso era na hora de variedades.
Só?
Só!
O restante já era gravado?
Era tudo gravado!
Então, quando no fim da década aparecem os discos estereofónicos, que foi em 58, é um marco importante em termos de rádio. Como é que isso foi sentido cá?
Pois! Sabe, havia uma espécie de política entre alguns locutores e as discográficas. As discográficas davam a esses locutores o disco para ser difundido. E a maior parte das pessoas não tinha. E muitas vezes nem a estação tinha, porque eles ficavam com o disco para si. De maneira que as pessoas que estavam medidas nesse «gang», digamos assim, usavam esses discos o mais possível e cá os radiouvintes gostavam de ouvir o programa, até houve um programa no RCP feito por gente nova, entre eles o José Manuel Nunes e o João David Nunes e outros. Era um complot de cinco ou quatro locutores que tinham os melhores discos.
O programa não se chamaria “Em Orbita”?
“Em Orbita”! Mas era do Rádio Clube Português.
Em 1953 foi inaugurado o Hospital de Santa Maria. As coisas passaram-se de novo do mesmo modo?
A mesma coisa. Era o relato visível, passo a passo do acontecimento, com a descrição das enfermarias inauguradas e que a maior parte dos apetrechos haviam sido dados pela Gulbenkian.

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Força democrática

Nesta terceira parte revisitamos os movimentos independentistas africanos, o documento dos 43, numa “Hora da Saudade”.

Entrevista Virgílio Luís Silva


Em termos da década há alguns factos políticos que marcam os anos 50 relativamente à política e à sociedade, resta-nos saber relativamente à rádio. Por exemplo em 1955, há uma tentativa, muito embora frustrada, de invasão dos territórios portugueses na Índia: Goa e Damão.
A rádio portuguesa, reagiu patrioticamente. Nacionalistamente. Os invasores são os invasores. Nós estamos na nossa casa. Simplesmente, Goa recebeu da metrópole armas velhas, o Salazar dizia: é uma guerra sem fim, portanto temos de aguentar. A mesma coisa que ele dizia para África. É uma guerra sem fim. É evidente que os heróis dessas guerras, lá por fora, foram geralmente pessoas da oposição, porque parte deles estavam deportados e eles não tinham outro remédio senão lutar. Passou-se isso em Timor. Havia muitos exilados em Timor. Bem, exilados não. Eram condenados a ir para Timor, como o Mário Soares esteve na Guiné, como outros estiveram assim, não é. De modo que isso foi considerado, à face do Estado, como uma agressão que nós tínhamos que defender. Mas o que é certo é que nós não cuidamos antes, nem durante, de dar meios às pessoas de lá de se defenderem.
Em 1955 morreu o Luís de Freitas Branco e o Egas Moniz. Estas perdas, que foram significativas, não só para a sociedade portuguesa, e no caso do Freitas Branco também para a rádio, já que ele era compositor...
Foi director de Orquestra durante muito tempo.
Como é que estas mortes foram vistas e como é que foram noticiadas?
Bom. O Egas Moniz não era uma persona grata ao Estado Português. Não houve folguedos nem nada dessas coisas pelo facto de ele ter tido o Prémio Nobel. Foi uma coisa que quase passou despercebida. Há-de haver muita gente que nem sabe que o Egas Moniz teve o prémio Nobel da Medicina. O Luís de Freitas Branco foi diferente, porque era um homem que mantinha uma personalidade independente. Era muito querido dentro da música. Era um bom director de orquestra e compositor e depois tinha um filho que lhe seguiu as pisadas, o João de Freitas Branco, que é uma pessoa extraordinária. Ele foi muito acarinhado e, claro, as suas exéquias foram à dimensão desse carinho.
Em 1956 começa a haver uns certos movimentos independentistas relativamente a Angola, Guiné e Cabo Verde, nomeadamente, nestes movimentos, que aliás vêm já desde o final da década de 40, com o que acontece na União Indiana face à Grã-Bretanha que governava o território. Em 56 Amílcar Cabral funda o PAIGC e por assim dizer faz voltar os olhos do Estado para a Guiné e para Cabo Verde. A rádio cá ficou de “bico calado”.
“Bico calado” não. A rádio cá dizia que o Amílcar Cabral era um traidor. Todos os movimentos africanos colocavam-se ao nível mais baixo e dizia-se: são negros que estão a fazer isto. Posso dizer-lhe que houve pessoas que vieram prevenir Salazar de que a guerra estava eminente e de que ele podia salvar o problema ainda, através de eleições, através dessas coisas. Ele não aceitou nada e disse sempre que era uma guerra até ao fim. E depois começaram os movimentos em Portugal já dentro da oposição a favor dos negros. Muita gente foi para a cadeia por causa disso. Eu própria assinei um documento pela libertação dos prisioneiros portugueses e pelas eleições livres. Fui demitida. Depois assinei outro documento pela libertação dos prisioneiros do Tarrafal, isto coincide nessa época toda. Esse documento foi assinado por 43 pessoas, até se chamava o documento dos 43. Pedia a liberdade dos prisioneiros do Tarrafal, pedia a liberdade de imprensa, pedia eleições livres, creio que eram as três coisas. E a maior parte foram demitidos ou presos.
É aí que começa em Portugal um latejar de qualquer coisa que não está bem e que há-de chegar ao 25 de Abril e que a guerra de África veio trazer muita força. Há medida que partiam daqui os barcos cheios de soldados para África, eram milhares de mães, de noivas e irmãs que ficavam no cais a chorar porque iam para a morte. Toda essa gente, agregada cá, estabeleceu nova desconfiança. Todos os meses ia um barco cheio e não voltava ninguém. Como é que é isto?
Evidentemente que da gente que foi para África nem todos iam para matar. Muitos até iam. Mas, principalmente os milicianos iam para estabelecer camaradagem com os homens de África e isso foi estabelecendo uma visão diferente do problema africano, daqueles que escreviam para cá, em relação aquilo que se dizia aqui, que era uma coisa até ao fim.
Isto que lhe estou a dizer, se fosse dito naquela altura eu ia para a cadeia, porque não era isto o que o Estado queria. O Estado queria era manter África, era manter a Guiné, tanto Angola como Moçambique, com o patrocínio de Portugal, mas simplesmente o que aconteceu sempre nas colónias portuguesas é que elas foram o berço de riquezas de pessoas de cá, mas não educamos as pessoas e você sabe que um homem que não tem instrução não tem independência. Não abrimos escolas, só duas ou três para fazer ver, não preparamos indústrias, com tanta coisa que tem África, deixamos através da guerra estiolar todo o campo que deveria ser semeado e cultivado, aquelas madeiras extraordinárias que Angola exportava, quase tudo ardeu e hoje vemos um país devastado por quem?
Eu estou neste momento como Vice-Presidente da Federação das Mulheres Empresárias a trabalhar com África, com as mulheres de África, e já conseguimos abrir sociedades e fazer protocolos com mulheres da Guiné, Angola e Moçambique. As dificuldades delas em abrir uma escola, mandando nós de cá a Cartilha Maternal, que é o princípio de qualquer coisa... “Pois é, mas nós temos de fazer uma escola debaixo de um embondeiro com uma palhoça que guarde o vento e os miúdos trazerem um banquinho de casa, aqueles que trazem. Os restantes sentam-se no chão. É esta a Angola que eles herdaram.
O dinheiro todo que se gastou na guerra de África, transformado em escolas, em indústrias, em ensino para a agricultura, tinha feito dos países da África portuguesa, países extraordinários. Mas nós mandamos dinheiro para queimar. Evidentemente, você diz isso porque foi uma pessoa da oposição, não foi uma pessoa do Estado Novo que queria manter o património nacional. Pois é, eu quero manter o património enquanto o possa aguentar.
Acontece-me agora isso com a Fundação Sara Beirão. Sara Beirão deixou um bom património para a gente aguentar o lar de idosos e deixou-nos algumas casas de renda em Lisboa. Eu tenho dito sempre ao Caeiro (Igrejas Caeiro): “Eu não vendo património”. Agora se eu tiver uma casa velha com uma proposta boa de venda para ser remodelada e eu pegar nesse dinheiro e o puser em Tábua a melhorar aquilo que lá está, então faço! O que não tenho é que estar agarrada às pedras velhas que se vão demolindo e cada vez é mais caro manter. Então é melhor largar.
Nessa altura, mais ou menos, aparece um programa que tem uma certa importância que se chama “A Hora da Saudade” que muito embora venha mais detrás, com a guerra assume outro fôlego.
É, eu fiz muitas vezes “A Hora da Saudade”.
Mas “A Hora da Saudade” começa por ser para a frota bacalhoeira.
Sim, começou para a frota bacalhoeira. Vinham as mães, as noivas, traziam um papelinho escrito, não se podia ler nem uma palavra que não estivesse nesse papelinho que era visado pela administração. Traziam o papelinho e liam aquilo ao microfone. Muitas vezes embargava-se a voz, não podiam, e era o locutor que tinha de fazer a leitura. Não era nada fácil, principalmente para uma mulher quando via aquelas noivas e aquelas mães a chorar. Agora,...pegar no papelinho e fazer a voz delas, não era nada fácil. Não era nada fácil.
Primeiro foi para os bacalhoeiros e depois foi para os soldados de África. Houve uma senhora do Estado, que não me lembro o nome dela agora, Pinto, Cortez Pinto,... não sei, que tomou a seu cargo ser madrinha de guerra dos nossos soldados e então ia a Angola e andava lá com os rapazes a levar medalhinhas para os estimular, mas era uma coisa que caía no ridículo aqui.
Acabava por ser mal vista?
É.
“A Hora da Saudade”. Qual foi a razão de existir da “Hora da Saudade”? Foi proposta por alguém ou saiu da cabeça do Estado?
Não sei quem é que propôs. Sei que era uma companhia que se dava às pessoas que estavam distantes. Os bacalhoeiros chegavam a estar dois meses, três meses no mar. Havia um navio que lhes prestava assistência de saúde, com médicos e tudo isso e era esse navio que recolhia via rádio as coisas todas.
As emissões eram essencialmente em Onda Curta?
Em Onda Curta.
Do outro lado chegavam alguma sensações para vocês, não vinham pessoas visitar-vos e dizer obrigado?
Cartas. Bem. Quando estava na Onda Curta, já recentemente, eu tive pessoas que me vieram visitar da América, do Canadá, de muitos países, eu mandava mensalmente para o correio à volta de três mil cartas e fiz concursos trazendo crianças de lá a Portugal e, enfim, muita coisa. Isso era uma maneira de os unir a nós e eles acabavam por trazer os pais para ver a terra dos seus amigos portugueses. Isso foi uma coisa bonita que eu fiz. E fiz uma coisa em rádio, que está hoje no Museu das Telecomunicações, com o Luís Sambado, que foi uma mesa redonda de sete países numa noite de Natal. Ligava ao Brasil, ligava à Venezuela, aos Estados Unidos, ligava a França e havia uma pessoa no estúdio que atendia a chamada que vinha de lá.
Mas voltemos à “Hora da Saudade”. O programa com a guerra de África assume uma outra importância, diferente da que teve para os bacalhoeiros?
Claro. Era sempre dar saudades, beijinhos para a mãe. Não se podia passar disso. Elas não deixavam. Não havia outras frases que não fossem as frases de família.
Mas não havia também bacalhoeiros durante a guerra de África?
Eu penso que a história dos bacalhoeiros terminou a certa altura. Até os barcos deixaram de ir e houve um problema qualquer em que a história dos bacalhoeiros acabou. Vou-lhe dizer que eu estive na Associação de rádio nessa altura e o nosso presidente era o Carlos Ribeiro que ia sempre no barco dos bacalhoeiros. Deu-me a sensação que houve qualquer problema a nível superior, que eu não soube, que se deixou de fazer. Depois passaram-se a fazer as “Horas da saudade” para África.
Bem. Depois já no final da década de 50, existiam algumas “coisas” interessantes que dizem respeito à entrada de Portugal para a ONU, por exemplo. A entrada de Portugal para a ONU deve ter sido um motivo de regozijo?
Houve regozijo da parte estatal. Da oposição não. Foi mal interpretada a entrada de Portugal para a ONU, porque nós não nos esquecíamos...
Mas a ONU era uma coisa boa para Portugal, no fim de contas...
Pois era, mas era americana. Espere estou a confundir ONU com NATO.
A ONU era uma coisa melhor que a NATO no que diz respeito a Portugal.
Era.
Em 1957, dá-se a assinatura do Tratado de Roma que cria a Comunidade Económica Europeia. O facto passou despercebido cá?
Houve assim um embandeirar em arco. E eu vou-lhe dizer porquê. É preciso a gente compreender a psicologia do Salazar. O Salazar era um homem de Coimbra, ou perdão, era um homem de Santa Comba Dão que tinha estudado em Coimbra. Tinha começado pelo seminário e depois passou para a Universidade e era um homem muito fechado. Era um homem que nunca saiu do país, senão para ir a Mérida a uma conferência com o Franco, uma vez... Aqui na fronteira. De resto, nunca saiu do País. Ele achava que não valia a pena e tinha uma frase que era: “Nós somos um país pobre e temos de nos governar como pobres”. Para ele era uma coroa de glória Portugal estar só, daí a sua frase, célebre frase: “Orgulhosamente sós”. Era um homem que detestava tudo quanto fosse para lá da fronteira.
Então como é que Portugal adere à ONU, que era uma organização estrangeira?
ELA - Porque ele foi empurrado depois da guerra. Não tinha alternativas.

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Sem medo da censura

Nesta quarta parte da entrevista, Etelvina Lopes de Almeida fala de algumas inovações técnicas (como a estereofonia, os LP, o fio de aço), a censura, o medo e Humberto Delgado.

Entrevista Virgílio Luís da Silva


Em 1958 é constituída a Sociedade Portuguesa de Escritores e eu julgo que, para a rádio, a constituição desta Sociedade é importante na medida em que a rádio vive da criatividade de imensa gente. A criação e constituição de uma sociedade deste tipo vão determinar, para a sua existência, o pagamento de Direitos de Autor. Como é que a rádio reagiu a esta criação?
Reagiu obedecendo, não é!
Foi uma coisa imposta pelo Estado?
Não, mas era por Lei. Aquilo foi feito por Lei. Nós tínhamos em cada programa de escrever os autores num papelinho que acompanhava a folha de locução e esse papelinho ia para a Sociedade Portuguesa de Autores, para depois serem pagos os direitos de autor.
Já falamos dos discos estereofónicos que apareceram em 1958. Eu penso que esta questão dos discos estereofónicos tem a ver com a rotação de leitura ou gravação dos discos. Passa-se de 78 Rpm para 33 ¼ Rpm. Eram os chamados Long Play. Isso veio modificar tecnologicamente a rádio?
Esses discos que têm a música toda seguida passou a ser um apoio à preguiça de muitos locutores. Punham o disco e iam ao café. O que se pretendia numa emissão de continuidade era exactamente a companhia do locutor com o ouvinte.
Se eu estou a transmitir uma opereta, uma série de discos de variedades eu não posso ter a mesma locução de uma opereta, que é uma coisa séria e é seguida, dos discos de variedades que são homens e que são mulheres a cantar, são géneros diferentes e tudo isso, e tenho de ter uma preparação para quando apresentar o disco abrir um bocadinho a inteligência do ouvinte para receber esse disco. Esses discos de continuidade, quanto a mim não se podiam interromper, tinham de ser seguidos ou então a pessoa tinha de estar muito atenta para levantar a agulha do «pick up» quando passava de faixa. Eu considerei sempre esses discos óptimos para casa mas maus para o trabalho de rádio.
De qualquer modo, em termos tecnológicos o som era melhor e era mais prático porque tinham mais variedade de músicas. Agora é bem pior, porque temos CD’s que têm em média 12 faixas gravadas e são todas de seguida.
A gente pode dormir até ao dia seguinte.
A rádio mudou, de facto. No princípio dos anos 50 muitas das gravações eram feitas em fita de papel. E o fio de aço?
Sim em bobines de fita. Normais. O fio de aço apareceu a seguir à guerra, mas foi uma coisa... Não dava um som bonito. Era um som metálico, de maneira que fizeram-se... nem sei se o “Domingo Sonoro” foi alguma vez gravado em fio.
Onde eu quero chegar é que com a fita magnética, seja ela fio, fita de papel ou suporte de poliéster, isso veio trazer a possibilidade de montar programas, de cortar elementos, de compor os programas conforme a criatividade do autor.
Como é que a gente fazia programas de actualidades? Era assim: Tu vais ali e captas uma entrevista daqui, o outro dali e depois nos estúdios todo aquele trabalho se montava, metia-se um «separadorzinho» (faixa curta de música ou de palavras geralmente utilizado para separar assuntos), uma coisa qualquer para amenizar o salto da fita, mas montavam-se coisas lindas. Lá na Onda Curta, fizemos coisas lindas em rádio.
Já no final da década o Américo Tomás candidatou-se à presidência da República e há aqui um dado interessante que é a candidatura do General Humberto Delgado como candidato da oposição. Dentro dos conteúdos das notícias, ressaltaram de algum modo as posições do Américo Tomás, por um lado e do Humberto Delgado, por outro, ou não se fez grande propaganda nem a um nem a outro?
Não pense nessa época, como está a pensar agora. Nessa época havia um comando e tudo quanto se fizesse fora desse comando era clandestino. A candidatura de Humberto Delgado era uma coisa clandestina. Numa casa do Arco do Cego, reuníamo-nos. Todas as pessoas, que lá iam, arriscavam-se. Agora pergunto-lhe: Como é que a rádio entra nisso? Não pode.
Então, em certa medida só houve um candidato, por assim dizer.


Agora há aqui uma coisa muito gira. Um dia o Pedro Moutinho foi esperar o Américo Tomás a Santa Apolónia, vinha não sei de onde e, claro, como andava nos ouvidos de toda a gente o Humberto Delgado... O Pedro Moutinho tinha corrido o país todo e à chegada do Américo Tomás o Pedro Moutinho disse: Acaba de chegar o Sr. General Humberto Delgado! Foi castigado três dias. Mas ele fez isso não por maroteira... Fugiu-lhe!
Aliás, o Pedro Moutinho tem algumas histórias deliciosas, entre elas uma particular que contávamos. Naquela altura, na Onda Curta ia para as cabines o alinhamento dos programas, com uma grelha que tinha discos e os textos do programa. Nesse dia o Pedro ia fazer o programa e o coordenador dos estúdios tinha-se esquecido de deixar na cabine o material correspondente. O Pedro Moutinho face ao impasse que não tinha sido criado por ele, com enorme profissionalismo, recitou de cor o texto de abertura da emissão, com a lengalenga dos emissores e frequências de trabalho, depois fez uma pausa e disse: “Vamos de seguida apresentar um concerto de «gong» por Pedro Moutinho” e desatou a tocar «gong». Nessa altura o «gong» era o correspondente instrumento musical utilizado pelas orquestras. Bem... o Pedro tocou «gong» até o coordenador aparecer com a grelha do material para o programa. Quando ele entrou e deixou os materiais para a emissão, ele deixou a reverberação do «gong» desaparecer e disse: “Acabamos de escutar um concerto de «gong» por Pedro Moutinho”. Isso valeu-lhe alguns dias de suspensão. Esta é uma história verdadeira, não é?
É. A mim aconteceu-me isso desta maneira. Cheguei à cabine e tinha só o mapa horário, faltavam-me todos os outros mapas e textos. Não tinha nota de abertura, não tinha sumário do programa, não tinha uma palestra que estava incluída... e eu digo: como é que eu vou fazer isto? Então liguei para o regente de estúdios para que ele me desse o trabalho, mas eu estava já quase em cima da hora. Ele disse-me do outro lado: “Eu não tenho nada”. Eu retorqui: “Então se faz favor, peça!”.
Chegou a hora, meti a Portuguesa, e inventei as notas de entrada do programa que a gente tinha, lendo o mapa horário, lendo o mapa eu sei o que vou transmitir, e eu fiz um resumo. Meti o segundo disco e depois, exaltada com a deficiência do meu trabalho, nas observações escrevi: “Atenção senhores dos vistos”. Bom. Depois apareceram as coisas todas.
Cada papel que a gente lia era assinado por quatro pessoas. Era o Silva Dias, era o Silva Tavares, era o regente de estúdios e era mais um da literária, e não vêem que a locutora/locutor tem de fazer o seu trabalho e não tem textos.
Aqui passou. Passaram-se uns dias e veio um amigo meu e diz-me: “Oh Etelvina o que é que se passou que há aí uma nota tão violenta contra si?”. “De quê?”, perguntei eu. “Uma coisa que você escreveu: Atenção Senhores dos Vistos”. “Bem... Escrevi e está bem escrito”, disse-lhe eu. “Mas você não pode escrever uma coisa dessas, são seus superiores”. “Os superiores têm obrigação de saber também as linhas com que nos cosemos”, disse-lhe ainda eu. Daí a bocado chega-me o papel para eu pedir desculpa às pessoas visadas naquela nota. Eu escrevi “Tomei conhecimento” e devolvi o papel. No dia seguinte aparece uma nota pior: “A Senhora tal, tem de pedir desculpa senão vai para o cadastro”. E eu escrevi “Tomei conhecimento” e dei a nota ao regente de estúdios. E ele disse: “Ai, a Senhora está a brincar”. “Pois estou a brincar. Eu tenho razão, não volto a trás”. A terceira então era uma coisa que não queira saber. Processo disciplinar, mais não sei o quê. E eu escrevi: “Tomei conhecimento”. E depois falei com o regente de estúdios e disse-lhe: “Tomara eu que isto vá para processo disciplinar, pois quem apanha no processo disciplinar são eles. O que é que se passava é que as pessoas de uma maneira geral tinham medo. O medo era o grande general do Estado Novo. Toda a gente tinha medo. Um medo abstracto, um medo físico, um medo mental. Toda a gente tinha medo e quando aparecia uma coisa qualquer em que a gente tinha de reagir, dentro da verdade ou dentro da justiça, ninguém reagia, porque toda a gente tinha medo do que viesse depois.
Um dia quando me demitiram, já na segunda demissão, fiquei sem trabalho e o Guilherme Pereira Rosas, a chorar, veio ter comigo e disse-me: “Oh Etelvina o que vai ser de si, mas então eu não sabia de nada, que você tinha assinado aqueles papéis”. E eu disse-lhe: “Oh Dr. quando a gente assina estes papeis não diz a ninguém. Assina e assume”. “Mas eu não sabia, porque tinha dado outras voltas”, disse-me ele. “Mas eu é que não consentia porque o Sr. ia-se comprometer, não pode ser”, disse-lhe eu. “Então agora, o que vai ser? Então e agora?”, dizia ele. “Oh Guilherme não esteja tão aborrecido, sabe que eu além de cozinhar, sei lavar casas. A mim o que me interessa é o trabalho”. “Ai não diga isso Etelvina, ter sido directora do “Modas e Bordados” e locutora e passar a lavar casas?”. “Isso não tem importância. Olhe a Adelaide Cabete também fez isso”.
Enfim. Era o medo, sabe. As pessoas prezavam pouco a sua personalidade e havia um medo que abafava tudo.
Aliás, contou-me que enquanto directora do “Modas e Bordados”, foi várias vezes à Censura.
Pois. Eu contei-lhe até por causa de um anúncio da última página, de um anúncio de seios de mulher. Coisas pequenas e ridículas. Como o outro. Os camponeses. Não diga ‘camponeses’ que é reivindicativo, ponha homens do campo. Veja se isto não é ridículo ou não é? Como é que uma pessoa que tem estrutura para ser directora de um jornal pode obedecer a uma coisa destas. Tem de lutar. Agora vou-lhe contar uma coisa, não sei se lhe contaram, mas foi muito notável. Eu estava na cabine e ia entrar a falar o Salazar e o regente de estúdios chegou ao pé de mim e disse: “Oh Etelvina. O «gong» à hora certa e Salazar!”. E eu disse: “Sim Senhor. Fique descansado”. Eu estava a transmitir uma sinfonia do Beethoven. A sinfonia terminou dois minutos antes e eu não podia dar o «gong» dois minutos antes. Então escolhi na grelha uma coisa que fosse anódina, escolhi um órgão de citeva com uma selecção do Conde do Luxemburgo. E pensei, isto não tem importância, ninguém canta. Porque havia discos censurados na Emissora como, por exemplo, aquela canção muito bonita de Coimbra, a “Samaritana”. A “Samaritana” não se podia tocar de maneira nenhuma.
As faixas eram cortadas a lápis branco.
Porque ela dizia que Cristo lhe deu um beijo na testa. Havia o “Toreador”, que também era censurada, e havia também a “Viúva Alegre” que também não se podia passar. De modo que eu pus uma selecção do Conde do Luxemburgo em órgão de citeva e, claro, quando chegaram as oito horas certas dei o «gong» e disse que ia falar sua excelência o Presidente do Conselho. E depois fiquei pacatamente, com a outra máquina já preparada para o fim, e daí a bocado apareceu-me o regente de estúdios, o Dr. Vaz, e disse me: “Ai Etelvina o que é que você fez?”. “O que é que eu fiz?” perguntei eu. “O que é que você transmitiu antes do Dr. Salazar?”. “Olhe, disse eu, é o que cá está ainda à espera que ele acabe para continuar. É uma selecção do Conde do Luxemburgo”. “Ai não me diga que é a “Viúva Alegre”?”. “Não é, disse eu, é do Conde do Luxemburgo”. “E do outro lado”, perguntou ele. “Do outro lado não sei. Deste lado eu sei o que é; Conde do Luxemburgo.
“Ai Etelvina, vêem aí duas pessoas da PIDE prendê-la porque você transmitiu a “Viúva Alegre” antes do Salazar falar. Eu disse: “Então deixe-os vir!”. Veio o Seixas, que era um brutamontes, um homem que foi retirado do Tarrafal por excesso de crueldade. Veio o Seixas e veio outro mais pequeno do que ele. “Ai a D. Etelvina. Então o que se passa aqui?” Eu disse: “Não sei o que se passa. Eu estou a fazer o meu trabalho, já falei com o Dr. Vaz e ele sabe o que eu fiz”. “Então, mas onde está a “Viúva Alegre?”. “Não está “Viúva Alegre”, disse eu. “Mas está na grelha”, disseram eles. “Na grelha não está”, disse eu, “e se estivesse não estava no prato”. “Ah mas não pode ser, nós temos de ir ouvir o disco que pode ser que esteja indicado como o Conde do Luxemburgo e impresso a “Viúva Alegre”.
Veja bem como aquela gente era. Nem acreditavam na tarjeta do disco. Felizmente que eu tinha do Dr. Vaz do meu lado e mais ainda, conhecedor de música. Então eu disse ao Dr. Vaz: “Ó senhor Dr. vá lá dizer ao Sr. Seixas a diferença que há entre a “Viúva Alegre” e o Conde do Luxemburgo”. Enfim. Estiveram lá para cima, mais de uma hora, com o disco para um lado e para o outro. É evidente que o Seixas não sabia a diferença. Depois vieram para baixo e o Dr. Vaz, coitado, só dizia: “Que maçada, mas que maçada. Eles dizem que trouxeram a contra-fé e têm de a levar para a PIDE”. “Então deixe-os levarem-me para a PIDE. O Sr. não deu já todos os testemunhos do que aquilo que eles dizem não é verdade?”. “Ai mas tenho de fazer qualquer coisa. Tenho de fazer qualquer coisa”. “Olhe, eu estou de serviço até à meia-noite, pode substituir-me ou não?”. “Não posso”, disse ele. “Então até à meia-noite temos o tempo connosco”.
Então ele foi falar para o director da PIDE e disse-lhe: “Olhe eu não sei o que se passa, somente a razão porque vieram buscar o locutor, não é verdadeira, porque ela não tem na cabine a “Viúva Alegre” e o que transmitiu foi uma selecção do Conde do Luxemburgo, que eu ouvi. Portanto isto não é verdade”. O director da PIDE então disse: “Então eu vou saber o que se passa”.
Sabe de onde aquilo partiu? Isto é só para você ver como é que nós vivíamos. Uma denúncia do “Diário da Manhã” que era um jornal do governo. Uma denúncia do “Diário da Manhã” leva uma contra-fé a prender uma pessoa. Esta história depois deu a volta a Lisboa, nem queira saber o que é que foi.
Agora, isto era o nosso clima. É por isso que as pessoas andavam cheias de medo. Tudo podia acontecer. O estar em casa e vir uma pessoa às quatro horas da manhã buscar o meu pai, era a coisa mais fácil do mundo. Eu cheguei um dia a Serpa para fazer um Natal com a minha madrinha, levei um peru para a gente comer e no dia seguinte o meu pai é preso porque éramos gente comunista. Ele nunca foi comunista, foi democrata, toda a vida, como eu. Era gente de ligação entre os comunistas de Lisboa e os da fronteira, com guias passadas para seguir para o Tarrafal no dia seguinte. Estou-lhe a contar coisas comigo.
Mas no fim de contas, aquilo que a D. Etelvina viveu, muitas outras pessoas viveram por razões praticamente idênticas.
Nós vivemos a ditadura, anos sob a autoridade do general MEDO!.
Todas as coisas que foram feitas em termos de Estado Novo, como o caso das eleições em que participou o general Humberto Delgado ou da decisão de que o Chefe de Estado passaria a ser eleito por um colégio eleitoral, são acções de fachada, porque nada daquilo se fazia.
Nada se fazia. E com o Humberto Delgado aconteceu uma coisa interessante: Quando ele veio a Santa Apolónia, no dia que veio do Porto com a rua cheia de gente, eles mandam a Guarda Nacional Republicana a cavalo, a galope, sobre aquela gente toda. Era um pavor. Era preciso semear o pavor por toda a gente.

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Dinâmica radiofónica


Nesta quinta e última parte da entrevista, Etelvina Lopes de Almeida recorda as qualidades da oposição e as vantagens da rádio.

Entrevista Virgílio Luís Silva

Existe uma referência no final da década de 50, que tem a ver com o conto da cadeira. Salazar caiu mesmo da cadeira onde esta sentado?
Acho que sim. Ela já não estava muito bem.
Foi isso que deu origem ao conto?
Eu acho que o que deu origem deve ter sido uma trombose, uma coisa assim que lhe deu e o fez cair.
Já em 1960, para além da Sociedade Portuguesa ter sido marcada pela guerra de África, os movimentos que existiram, por exemplo na música, na Inglaterra, com os Beatles.
Foram entusiasticamente recebidos cá. Era qualquer coisa de liberdade que chegava aqui.
Como é que a Censura via isso na rádio? Deixavam-vos passar essas músicas?
A gente passava. Não estavam censurados.
Não percebiam inglês?
Não percebiam inglês! O problema está nisso. Porque razão a oposição não foi destruída? Porque a oposição usava a inteligência e usava a cultura, e eles usavam a força. O problema é este.
Há uma coisa que eu tenho de lhe dizer, não sei se lhe interessa, pode interessar para a rádio também porque se fizeram palestras, fizeram-se folhetins e isso tudo. Houve a certa altura, no final da Guerra de Espanha, uma abertura intelectual em Portugal, com livros que vinham de fora, clandestinos. E também livros que se estavam a editar em Portugal, que se vendiam por debaixo do balcão. Sabe o que significa esta frase, por debaixo do balcão? Eram livros expostos, mas que eu sabia que uma determinada livraria, sabe é o Tam Tam, estava a editar um livro e chegava lá e dizia que estava interessada no livro. Depois passava pela livraria, punha o dinheiro em cima do balcão, ia aos fundos e davam-me o livro. Ora, eu recebia livros através de um amola tesouras que mos trazia de França e de Espanha e assim chegavam a minha casa. Um livro sensacional, que teve uma repercussão espantosa em Portugal, chamava-se “O drama de Jean Barois, você leu alguma vez? Eu recomendo-lhe vivamente. É um livro desta época, mas é um livro sensacional - Roger Martin Du Gard.
Vieram livros, por exemplo com a 24ª Hora do Steinbeck e veio Jorge Amado. Teve uma influência extraordinária. Foi proibido aqui “Os Capitães da Areia”, foi proibido “O Mar Morto”, foi proibido, no entanto a gente recebia os livros, tinha 24 horas para o ler e para passar a outro. Isto trouxe à oposição uma ânsia de cultura do que se passava nos outros países, que nos enriquecia. Não andávamos de bandeirinha na mão como hoje. Hoje não se faz oposição nenhuma, porque as pessoas não se preparam em ideias. Mas nós naquela altura preparávamos as nossas ideias. Nós sabíamos porque é que estávamos a lutar. E então em Portugal tivemos o Soeiro Pereira Gomes, o Alves Redol, o Manuel da Fonseca.
Esses escritores escreviam e os livros eram editados quase clandestinamente ?
Clandestinamente? Muitas vezes eram apreendidos. É por isso que nós íamos buscar o livro, antes da Censura saber que ele estava cá fora. É isso que se chama por debaixo do balcão.
Essa importância, essa linha de orientação, com aquelas músicas e os respectivos movimentos musicais dos anos 50 e 60, isso foi dando uma abertura cada vez maior à cultura portuguesa, não só pelos livros, mas também pela música.
Em todo o caso eu devo dizer-lhe que a música de uma maneira geral tocava a juventude que sabia inglês, os livros tocavam outra área, de pessoas já mais conscientes, já mais preparadas para a luta democrática, digamos assim.
A D. Etelvina acha que na década de 60, com esse advento da música e os movimentos jovens característicos da época, com a miniaturização dos equipamentos permitindo o seu transporte, acha, que com tudo isso, a rádio foi perdendo peso?
Eu acho que a rádio ainda hoje não perdeu o seu lugar. Fui uma pessoa de rádio, continuo a ser uma pessoa de rádio, continuo a dizer que a televisão não destruiu a rádio. A rádio continua a ser a rainha da informação enquanto ela for correcta. Eu vou-lhe dar um exemplo. Eu estou em casa a ouvir um noticiário da TV, mas eu não posso ouvir o noticiário da TV enquanto vou daqui para Tábua. Com a rádio durante a viagem vou mudando de canal e vou ouvindo os noticiários consoante o canal. Portanto a TV obrigou-nos a uma posição estática. A rádio continua a permitir-nos dinâmica.
Mas quando a televisão aparece em Portugal em 1957, acha que a rádio possa ter perdido alguma influência com a televisão como elemento de novidade?
Sim, isso evidentemente. Houve muitas pessoas que acharam que a televisão era o supra-sumo.
Mas D. Etelvina, eu não estive em 1957, como bem pode imaginar, na Feira Popular para assistir à primeira emissão da televisão. Estou a imaginar o que terá sido, e estou também a imaginar o que terá sido também no Porto a emissão experimental que aí decorreu.
Foi o que terá sido uma coisa nova que chega. O cometa que está no ar agora. É isso! As pessoas ficaram deslumbradas com aquilo tudo, mas evidentemente terminado o programa sente-se o vazio. Ao passo que a rádio estava lá. É contínua. Agora, tudo depende daquilo que a gente dá às pessoas. Eu por exemplo, sou incapaz de ver “A Noite da Má-língua”, sou incapaz de ver aquele programa que é o “Confissões”, da Teresa Guilherme, não posso, o meu cérebro não admite aquilo. No entanto gosto imenso de ver o Miguel Sousa Tavares, acho que ele tem uma inteligência extraordinária. Gosto imenso dele. Gosto muito da mulher dele (Laurinda Alves), que tem também um programa muito bom e sou capaz de ver um “Rei do gado” porque está muito bem feito. Está muito bem feito e tem até conteúdo revolucionário, muito bem dado, assim como quem não quer a coisa. Até se mata um senador. Portanto, um programa que tenha conteúdo, que tenha texto, que tenha actores, que me interesse, eu vejo. Agora não perco o meu tempo a olhar para o ecrã com uma coisa que é negativa quando tenho um rádio que me dá pelo menos música. É por isso que eu continuo a ser uma mulher de rádio.
No final dos anos 60, em 68 existiram problemas em França com os estudantes. Como é que isso foi visto cá pela rádio?
Isto foi feito cá pela grande esperança. Pela grande esperança da oposição. Porque estávamos na altura da guerra de África. Portanto as coisas todas... Nós tínhamos passado a guerra de Espanha que havia sido um caminho onde se desenvolveram as experiências para a Segunda Grande Guerra. Isso aprendemos nós. Ficamos com a marca do fascismo italiano e do hitlerismo alemão, ficamos com a mocidade portuguesa que foi feita à semelhança das hostes do Hitler. Foram pessoas lá, de cá do governo, estudar a maneira de como é que se faziam as juventudes hitlerianas e depois vieram para cá e copiaram. Houve muita gente, muitas famílias que não quiseram que os seus filhos fossem. Por isso os miúdos foram castigados e depois a oposição quando viu o “S” de Salazar na fivela dos cintos, fizeram anedotas e dizia-se a propósito “Somos Socialistas Sem Salazar Saber”. Estas coisas, percebe, é que era. Fazer revolução com um sorriso é muita mais útil que à pancadaria.
O cinema, nesta altura dá um contributo à rádio. O Arthur Duarte e os outros. O desporto na rádio acaba por ser importante.
Nessa altura também se dizia que a nossa vida era desporto, Fátima e outra coisa ... agora não me lembro. O que se dizia Deus, Pátria e Família, numa vertente, também se dizia Desporto, Fátima e... Bem não sei, não me lembro já.
As reportagens de Fátima também marcaram a rádio nos anos 50. Dá-me a sensação que os anos 50 são marcados pelas reportagens de Fátima, pelo Desporto, e prova disso é o “Leão da Estrela” do Arthur Duarte. Aliás o cinema português teve essas particularidades. Quando a rádio começa a aparecer em Portugal o fenómeno é transposto para o cinema “O Pátio das Cantigas”, “A Menina da Rádio”, “O Leão da Estrela” e outros.
Havia muita gente apaixonada, tinham de ir, toda a gente tinha de cantar na rádio, como agora toda a gente quer ir para a “Chuva de Estrelas”. É a mesma coisa. O fenómeno é o mesmo.
A imagem que tenho da rádio, e pode ser uma imagem totalmente errada da minha parte, é de que a rádio até 1950 em muitos programas era feita com recurso a orquestra, coro e com o locutor a servir de ponte entre os elementos da programação.
Os programas directos. Só os programas directos. Na altura já existia a hipótese de se montar os programas. Os directos eram assim. Eu fiz muitos assim na Rádio Renascença.
Como é que a rádio noticiou alguns avanços da ciência e da medicina, como foi por exemplo a descoberta da vacina da poliomielite, o aparecimento da pílula contraceptiva, da descoberta da cortizona.
Da pílula nada. Não se podia falar nisso. Da vacina da poliomielite dava-se a notícia, quando muito entrevistava-se o cientista. São notícias, como agora dão as notícias da SIDA. Só que com a SIDA nós vamos saber mais, vamos saber onde estão as pessoas, vamos fazer as imagens. Ainda no outro dia vi uma coisa horrível. Na América para apanharem um homem com SIDA, lançaram um jacto de água para o conseguirem prender. Acho horrível. Essas imagens de TV, acho horríveis. Você repare uma coisa. A TV desde que começa até que acaba um noticiário é tudo mau. Você já tinha reparado nisso?
Mas repare. Tudo o que está a acontecer com a polícia, com a sociedade, tem significado. Tem o significado de desautorizar a polícia. Ora enfim, eu fui educada desde pequena, que quando tivesse um problema qualquer na rua me dirigisse a um polícia, porque o polícia era o homem que me defendia. Agora nós não podemos ter essa ideia.
Sra. D. Etelvina, muito obrigado pela sua ajuda.
Disponha sempre.

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