quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Hora da saudade


O capitão tem 87 anos e recorda-se dos tempos em que decidiu seguir a vocação marítima. Embarcou na aventura da frota bacalhoeira portuguesa, rumo às águas da Gronelândia. Pescou bacalhau à linha entre 1943 e 1946. Um ano depois passou para a pesca de arrasto, onde se manteve até 1953.

Entrevista e fotografia Luís Manuel Martins 


Em 1937 era lançado pela Emissora Nacional de Radiodifusão o programa “Hora da Saudade”, dirigido à diáspora portuguesa no continente americano e à frota bacalhoeira nacional em campanha na Terra Nova. Apresentado por Curado Ribeiro, tornou-se rapidamente num dos programas mais famosos e marcantes de sempre da rádio em Portugal. O capitão João Braz, um velho “homem do mar”, evoca, numa entrevista única, as emoções vividas através das ondas da rádio, esse sopro mágico de vida que um dia soou mais alto, nos recônditos mares do Norte.

Capitão João Braz, como é que se processava a pesca do bacalhau há setenta anos?

Numa altura em que armadores portugueses se agitam e num ano em que perfaz 70 anos sobre a inauguração do programa radiofónico “Hora da Saudade”, publicamos uma entrevista a João Ramalho Braz, natural da Figueira da Foz.


As campanhas da pesca do bacalhau duravam, habitualmente, cerca de seis meses. A faina estava centrada nos lugres. Inicialmente, esses navios à vela navegavam sem sistemas eléctricos a bordo, pelo que a iluminação era assegurada por velas e candeeiros a petróleo. A vida a bordo era muito dura. Os navios partiam e voltavam de Portugal sem receber qualquer notícia, uma vez que não havia comunicações via rádio.
Na Terra Nova os lugres não iam a terra, seguindo uma prática que estava estipulada na época. Muitas vezes só à chegada é que se sabia que tinha morrido alguém. Os mortos eram atirados ao mar. Estou-me a referir aos navios à vela. O sistema em que eu andei mais foi em arrasto, onde a vida já era diferente. O pessoal já não saía de bordo, o navio é que pescava com uma rede a reboque. Nos lugres pescava-se ainda em botes a remos – os dóris – onde cada um pescava à sua vontade onde queria. Depois à tarde o capitão tinha uma hora a que içava uma bandeira. Os pescadores viam-na ao longe e regressavam com o peixe que tinham a bordo. A pesca acabava entre as vinte e três horas e a uma hora do dia seguinte, conforme o quantitativo que havia sido pescado e conforme a hora em que haviam começado o trabalho. O tempo de descanso nos lugres nunca excedia as cinco horas.
Nessa altura esses navios tinham más condições que mais tarde desapareceram. O navio estava fundeado, os dóris chegavam a bordo, descarregavam tudo o que os pescadores tinham. Os pescadores tiravam o peixe de dentro do bote e depois escalavam-no, salgavam-no. Quando acabava o trabalho, entre as 23 horas e a meia-noite, o capitão estava no porão do navio a ver a salga, que era a parte que exigia mais assistência, para o peixe não se estragar. Quando o capitão chegava cá acima perguntava que horas eram, já que não era hábito usar relógio de pulso. Lá lhe diziam: “Onze e meia!”. Ele fazia logo as contas e respondia: “Louvados às cinco horas da manhã!” Louvados era o mesmo que “levantados”.
O pessoal depois comia alguma coisa, deitava-se a dormir completamente vestido. Os pescadores não mudavam de roupa com frequência. Quando um grupo ia dormir, entravam logo dois homens de vigia. O navio estava ancorado. Não havia ainda motores nesse tempo. Estou-me a referir aos anos 35 e 36. Os vigias que rodavam de acordo com uma escala diária de serviço alertavam a tripulação no caso de se levantar uma tempestade de repente ou de vir um icebergue em direcção ao navio. Era muito trabalho para tão pouco rendimento. Um quilo de bacalhau nessa altura custava aí, em qualquer loja, quinze escudos e agora custa muito.
Quando os navios regressavam à Figueira da Foz, eram obrigados por lei a responder a um questionário feito pelo Capitão do Porto, à distância, através do Código internacional de Bandeiras. Cada navio tinha uma forma gráfica de apresentar o seu nome. O “Foz do Mondego”, onde andei, tinha como código as iniciais “SSPR”. O sistema de comunicação por bandeiras entre os navios, inventado pelo inglês Frederick Marryat, estava sistematizado num manual de referência.

Como é que é composto esse sistema de comunicação com recurso a bandeiras, que referiu?


Não consigo precisar. Os paquetes e os grandes navios comerciais terão sido os primeiros a receber esse tipo de tecnologia. A Lusitânia – Companhia Portuguesa de Pesca colocou o primeiro posto emissor/receptor da frota pesqueira num navio bacalhoeiro seu chamado “Trombetas”. Foi um caso pioneiro, ainda que não tenha sido seguido de imediato por outros navios. Os sistemas de radiocomunicação foram instalados muito gradualmente. Mais tarde, com a entrada dos arrastões na pesca do bacalhau – navios mais sofisticados – passou a haver telegrafista a bordo e aparelhos para poder transmitir e receber notícias, entre navios e estações costeiras. Finalmente podíamos comunicar com o exterior. Eu falei muitas vezes com a minha mulher. A empresa armadora passava a estar disponível permanentemente, em caso de necessidade.

Em que medida é que as campanhas lucraram com a radiocomunicação?
As comunicações constituíram um auxílio precioso para a navegação e rotina diária da pesca. Pela primeira vez o telegrafista podia contactar com a estação costeira da Terra Nova, para nos dar um azimute, ou seja, a direcção, a posição que nós tínhamos em relação à costa. Traçava-se esse dado no mapa e apurava-se, na medida do possível, a localização aproximada. Era muito difícil obter a demarcação exacta do navio, já que a Terra Nova estava sempre muito sujeita a nevoeiros e não havia possibilidade de poder observar o sol e as outras estrelas, como meio de orientação. Uma das vantagens mais importantes da radiocomunicação foi poder falar directamente para os pilotos da barra, quando havia necessidade de ir ao porto de Saint John, por motivo de doença e morte de tripulantes, ou de avarias nos sistemas internos dos navios. O telegrafista era o elemento-chave que assegurava as comunicações.

As novas tecnologias aplicadas à navegação foram uma grande prioridade da frota bacalhoeira nesse período?
Sim, sem dúvida. No que a radares diz respeito, por exemplo, foi no ano de 1950, salvo erro, que vieram para Portugal os dois primeiros radares, ao abrigo do célebre Plano Marshall. Um deles foi implantado num navio de comércio, que não posso precisar o nome, não sei se foi o “Pátria” ou se foi o “Império”. O outro radar veio para a Figueira da Foz para o primeiro arrastão em aço fabricado aqui, nos Estaleiros Navais do Mondego – o “Comandante Tenreiro” – um navio para o qual entrei como imediato no ano seguinte. O radar auxiliava-nos muito, porque as tradicionais zonas de pesca da Terra Nova estavam muito sujeitas a nevoeiros cerrados. Não havia grande perigo de afundamento dos navios, porque a velocidade a que se deslocavam a arrastar as redes rondava as três milhas (cerca de 5,5 quilómetros por hora). Ainda assim era uma enorme vantagem e privilégio poder contar com um radar a bordo.

Qual era o impacto do programa “A Hora da Saudade” da Emissora Nacional na frota bacalhoeira portuguesa em campanha na Terra Nova?
É bom recordar que o programa só foi possível de ouvir quando os navios começaram a dispor de meios de recepção. Ouvíamos a “Hora da Saudade" com muita satisfação. O pessoal que estava a trabalhar, normalmente de noite, escutava o programa através de um altifalantezinho. Se o capitão ou alguém estava a ouvir, dizia logo: “Ó João, a tua família está a falar na rádio!”. Se havia a possibilidade de ouvir facilmente, tudo bem. Mas parar o serviço, nunca paravam. O programa “Hora da Saudade” era muito bem recebido, porque as pessoas gostavam muito de ouvir os familiares. Mas a vida era tão pesada, tão trabalhosa... Não posso agora precisar quando é que começaram as emissões da “Hora da Saudade”. Numa fase inicial, o programa proporcionou-nos uma oportunidade fantástica de poder comunicar com a família, quando ainda não havia telegrafista. Com a “Hora da Saudade” estabelecíamos uma forte ligação à nossa casa, à nossa terra. Durava pouco, mas sabia muito bem. O procedimento mais usual era, quando os pescadores estavam a trabalhar, o capitão ia de imediato ouvir as mensagens recebidas em directo a partir de Portugal, retransmitindo-as de seguida pelo navio.


O Código Internacional de Sinais é composto por 26 bandeiras alfabéticas (cada uma com significado próprio), dez numéricas, três substitutas e um galhardete de código ou reconhecimento. O manual de que falei continha o meio de formulação de todo o tipo de perguntas através das bandeiras, por exemplo: “De onde vens?”, “Qual o nome do teu navio?”, “Tens doentes a bordo?”. O interrogatório costumava demorar entre uma e duas horas. Içavam-se as bandeiras e dava-se um sinal de reconhecimento. Normalmente as perguntas eram feitas a partir de terra daqui para os navios. Como este procedimento se havia tornado usual em todas as viagens, já se sabia as perguntas de cor. O que conto situa-se por volta de 1930/1940. Recordo-me de ir às vezes em rapaz, aí pelos meus quinze anos, ao pé do Forte de Santa Catarina, na Figueira da Foz, ver esse cerimonial.

Desde quando é que passou a haver sistemas de radiocomunicação nos navios bacalhoeiros?

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quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Darfur independente?

Não sabemos ao certo quantos, mas são milhares as pessoas que morre(ra)m e milhões as deslocadas. No terreno, há várias centenas de militares africanos cujo reforço está a ser preparado. O conflito, além das reportagens na comunicação social, tem dado origem a manifestações, campanhas, petições, filmes, documentários, discos, e até a uma televisão. Portugal pode ter, entretanto, uma palavra a dizer ao receber, em Dezembro, a II Cimeira Europa-África, pela mão da União Europeia e União Africana.

Texto Dina Cristo 

Desde há mais de cinquenta anos que o Sudão vive em conflito, entre o norte e o sul. Depois da primeira guerra civil entre 1955 e 1972, a segunda, a partir de 1983, não tem visto o seu fim. Apesar dos Acordos de Paz, assinados no Quénia, em 2005, e na Nigéria, em 2006, no terreno o desacordo impõe-se. Apesar das assinaturas no papel, as organizações humanitárias internacionais na região denunciam crimes contra a Humanidade como, por exemplo, o comércio de escravos ou genocídio.
Os conflitos étnicos sudaneses têm repercussões no Darfur, a terceira província, Ocidental, do Sudão, com meia dúzia de milhões de habitantes. Vive em guerra há quatro anos, quando o Movimento de Justiça e Igualdade e o Exército de Libertação Sudanesa, motivados pelo exemplo do Sul (cuja independência será decidida por referendo em 2011) pegaram em armas contra o Governo sudanês, acusando-o de privilegiar os pastores árabes em detrimento dos agricultores negros e de negligenciar a região da Casa dos Fur.
Por sua vez, Omar el Bashir respondeu com as milícias Janjawid, árabes aliados do Governo que tem massacrado a população Darfurense. Os ataques armados às comunidades já mataram milhares de pessoas, sobretudo civis, mulheres e crianças, destruíram centenas de aldeias, fizeram milhões de deslocados e mais seres humanos ainda a necessitar de ajuda para sobreviver. Segundo Desmond Tutu, Darfur regista hoje a maior concentração mundial de sofrimento humano.
Vítimas
Segundo o relato do jornalista da revista “Além-Mar”, Franco Moretti, o campo de refugiados de Kalma tem cerca de 170 mil pessoas, já pegado a Bileil, onde «os pobres, chegam em bicicleta, para adquirir a baixo preço óleo vegetal, algumas rações de cereais e pacotes de leite em pó fornecidos pelas ONG e pelo Programa Alimentar Mundial; os ricos, com carroças e camiões, sobre os quais carregam sacos, caixotes, fardos de roupa… para vender na cidade». Para proteger-se, nestes duas enormes fossas, os refugiados criam povoados de milhares de pessoas, que então enfrentam a falta de água e comida.
As mulheres, por exemplo, são várias vezes vítimas: são elas que vão buscar lenha e água para a família, são elas que são violadas e violentadas física e sexualmente e são ainda elas que depois são estigmatizadas socialmente e abandonadas pela família, vêem inviabilizada a sua futura realização. Por isso, os Médicos Sem Fronteiras apelam para que as vítimas sejam devidamente tratadas em vez de rejeitadas.
No Darfur está montada uma operação humanitária, com milhares de funcionários das Nações Unidas e da União Africana, cerca de cem ONG e missionários. O que sobra em assaltos e doenças falta em alimentos e medicamentos. Segundo o Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, há apoio humanitário ao nível da alimentação, saúde e até educação, mas falta a segurança e a protecção. Em entrevista à Missão Press, em Junho de 2007, António Guterres explicou as dificuldades na aplicação do acordo da “responsabilidade de proteger” os cidadãos, por parte do Estado ou da comunidade internacional, cujo segundo aniversário se comemorou no dia 16 de Setembro, Dia Mundial por Darfur, celebrando o momento em que vários Governos se comprometeram a acabar com os genocídios e massacres em massa.
Causas
Para a Secção portuguesa da Amnistia Internacional «A escassez de terras leva a uma partilha, muitas vezes forçada, das propriedades dos agricultores com os nómadas». Segundo Duarte Ivo Cruz, a guerra surge “na sequência de uma alteração das fronteiras internas do Sudão, que retirou ao Sul a parte das jazidas de petróleo descobertas em 1980. Ora hoje o Darfur é atravessado pelo chamado Bloco 6 de exploração de petróleo, administrado pela China National Petroleum (…)”, escreve na “Tempo livre”. Para António Guterres, uma das principais razões é a falta de outro recurso natural: água: «No Darfur nós temos árabes e africanos, nómadas e sedentários, pastores e agricultores. Estas comunidades viveram durante séculos em harmonia, mas é também verdade que, quando os recursos diminuem, nomeadamente quando a água diminui — e, porventura, aqui as alterações climáticas virão a ser um factor agravante deste problema —, há uma tendência para o conflito. É evidente que, quando essa tendência é manipulada politicamente, pode conduzir àquilo a que estamos a assistir — os Janjauid, os grupos armados que, simultaneamente, conduziam em vez do exército o confronto com os movimentos rebeldes e atacavam aldeias de populações agrícolas para poderem aproveitar os recursos, nomeadamente o acesso aos pontos de água».
Há especialistas que defendem o congelamento das contas sudanesas no estrangeiro, a interdição do espaço áereo do Darfur ou a limitação das viagens dos líderes sudaneses ao exterior. A Rolls Royce, por exemplo, que fornecia motores à indústria petrolífera sudanesa, suspendeu todas as actividades no país como forma de protesto pelo que se passa na região, cujos planaltos superam os três mil metros.
Sudão
A República do Sudão é o maior país de África; ocupa a bacia do Alto Nilo. A mais usual das 115 línguas é o árabe e a população é maioritariamente islamita. Contudo, os conflitos entre duas das três províncias, a do Norte, tradicionalmente constituída por pastores nómadas, árabes e muçulmanos, e a do Sul, por população sedentária, tribal, africana, pagã e cristã, são antigos.
No Sudão, floresceram na Antiguidade, as civilizações Núbia e Kush. Aquando da expansão islâmica do séc.VII foi integrado no mundo árabe, com excepção do sul. Em 1821, grande parte da região norte foi ocupada pelo Egipto. Logo depois entra na influência do Reino Unido e em 1898 fica sob o domínio Egípcio-Britânico. Em 1953 obtém uma autonomia limitada e em 1956 a independência total, mas com ela chega também a instabilidade política.
Depois de uma democracia multipartidária segue-se, em 1958, um golpe militar, e em 1964 um regime civil. Em 1969, Jaafar Nimeiri toma o poder pela força e sobrevive a 12 tentativas de golpe de Estado. Em 1973, depois da autonomia do sul, proclama o Sudão um Estado de partido único. A partir de 1977, procura auxílio, no Ocidente.
O Sudão é rico em petróleo, gás natural, algodão, açúcar e produz sésamo e amendoim. Chegou a ter um plano para o transformar no celeiro do Médio Oriente, mas falhou por falta de apoio. Na década de oitenta, à beira da bancarrota, recebe a segunda maior ajuda a um país africano. Depois, é a seca, na terra e nos rios. Desde a década de setenta que a precipitação diminui e a população afectada, com falta de alimentos, refugia-se nos limites de Cartum, a capital. Junta-se, assim, ao cerca de um milhão de refugiados, que ali fogem da fome e da guerra no Egipto e no Chade, dois países vizinhos.
Em 1983, Nimeiri introduz a Shariri, a Lei islâmica que determina, entre outras medidas, a proibição de bebidas alcoólicas e punições por enforcamento ou mutilação. Acaba por ser derrubado, em 1985, por um golpe militar. A Sul causa a fuga de mais de 350 mil sudaneses para países vizinhos.
Por isso, um dos deslocados sul-sudaneses nas periferias das três cidades que formam a capital disse a Franco Moretti: «Durante vinte anos, Cartum fez-nos a guerra. E os soldados que nos massacraram eram na maioria provenientes do Darfur. Chegou a sua vez de experimentar a política do governo central.»
Em 1986 realizam-se as primeiras eleições democráticas que colocam no poder uma coligação de partidos do Norte cujo líder, Mahdi, enceta conversações com os revoltosos, mas sem êxito, já que o Governo é abortado devido ao falecimento, num acidente aéreo, do Vice-Primeiro Ministro, designado pela oposição.

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quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Educação Moral



Começa na próxima semana a 30ª campanha de Natal dos cerca de 500 alunos da disciplina de Educação Moral Religiosa Católica (EMRC) da Escola Secundária de Peniche (ESP). Oportunidade para conhecermos, através do seu fundador, as actividades que preenchem, ao longo de todo o ano lectivo, estas aulas que, sendo opcionais, têm inscritos cerca de 80% dos estudantes daquele estabelecimento de ensino.


Texto Francisco Domingos fotografia Dina Cristo

Em conjunto com os alunos sonhámos, partilhámos, ousámos. Nasceram coisas bonitas. Muito bonitas.

Campanhas de Natal – a favor dos mais desfavorecidos e desprotegidos, dos mais pobres e dos mais doentes, da família da rua, ali ao lado, ou do povo lá longe em Timor-Leste, Moçambique ou Guiné/Bissau.

Foram "Coração em Moçambique", "Peniche no Coração", "Voa mais Alto", "Mil cartas por Timor" e, mais recentemente, a emblemática "Uma Escola no Coração", em que três escolas de Peniche – Escola Básica dos 1º, 2º e 3º ciclos, Escola Básica dos 2º e 3º ciclos D. Luís de Ataíde e Escola Secundária – se uniram para construir uma escola em Bajob, na Guiné-Bissau.

Festas de Natal – desde sempre ligadas à campanha de Natal, cujo ponto mais alto acontece no momento em que os alunos representantes de cada turma colocam no palco, aos pés do Menino Jesus, o fruto da campanha de suas turmas. São momentos únicos, vibrantes, fascinantes.

Festa Anual – 1 de Maio – Começou por ser, ainda na década de 80, uma simples festa dos alunos do 12º ano, finalistas na disciplina de Moral. Hoje é muito mais que isso. Com efeito, finalistas e demais alunos, professores, funcionários, pais, encarregados de educação e antigos alunos, associam-se à volta do altar da eucaristia em gesto e jeito de acção de graças. Nesta festa destaca-se a presença fidelíssima de um grupo muito especial: os nossos dedicadíssimos antigos alunos da disciplina de Educação Moral. São fantásticos, sublimes. Estão felizes e orgulhosos por um dia terem sido alunos de "R.M." (Religião e Moral) da Escola Secundária de Peniche. Uns vêm de longe de suas universidades, outros da aldeia aqui perto. Aqueles trazem seus filhos, ainda de colo, estes, são já os pais dos alunos ali ao lado, agora finalistas. É um ambiente maravilhoso. 'Um encanto para os olhos e para o coração'. Uma festa fantástica, seguramente uma das maiores e mais bonitas da cidade de Peniche.

Visitas de estudo – No sentido de evitarmos um número excessivo de saídas (há que haver bom senso e equilíbrio) somos fidelíssimos apenas a duas visitas – "visitas de amor" – como lhe chamamos: Doentes Profundos em Fátima e Reclusos do Estabelecimento Prisional de Caldas da Rainha.

Intercâmbios de Escolas – Desde há alguns anos que mantemos um intercâmbio muito interessante e sobretudo muito original: Uma escola secundária – Peniche – e uma escola do ensino básico, 2º e 3º ciclos – Josefa de Óbidos. Duas escolas que, pesem embora as suas naturais e múltiplas diferenças, são, como alguém um dia escreveu, "instituições, que, com seus alunos, professores e funcionários, constituem um raro exemplo de uma relação verdadeiramente notável". E tudo isto, sob os auspícios da disciplina de EMRC, o que é, sublinhe-se, uma coisa verdadeiramente extraordinária.

Aos professores do ensino secundário que queiram uma actividade verdadeiramente radical sugerimos uma… peregrinação. Isso mesmo: uma peregrinação a Fátima a pé. É uma experiência absolutamente única. Trata-se de um acontecimento notável que irá decididamente marcar, (leia-se revolucionar) a vida do adolescente.

Uma aventura? Sim, é possível, mas apenas nos primeiros quilómetros. Depois surgem as primeiras dificuldades, as primeiras bolhas. Começa então a caminhada interior. A verdadeira caminhada. As marcas, são agora mais profundas e não se eliminam com uma simples agulha ou massagem. É que as "bolhas do coração", também deixam marcas, desta vez, para toda a vida.

Mais de duas dezenas de peregrinações, mais de um milhar de alunos conduzidos até junto de Maria, dão-nos toda a segurança para saber do que estamos a falar.

O lema que escolhemos para a última peregrinação que realizamos, a 21ª, ajuda-nos a perceber claramente tudo isto: "Fátima a Pé é um milagre de Fé".

São cem quilómetros ao encontro da nossa Padroeira. Nossa Senhora de Fátima, por sugestão dos alunos, é desde 1999, a Padroeira do Alunos e Antigos Alunos de E.M.R.C. da nossa escola.

Fechamos este capítulo com uma sugestiva frase de um nosso antigo aluno, hoje professor de Moral na Escola Josefa de Óbidos: "Fátima a Pé é a rainha das actividades da disciplina de Moral da Escola Secundária de Peniche".

Deixando agora de lado o campo dos actividades, vamos agora deter-nos, um pouco, sobre alguns elementos que fazem parte de um precioso legado que a disciplina tem cultivado ao longo dos anos e que se têm revelado de fundamentais na construção de uma mística e de um espírito muito próprios do aluno de Moral deste estabelecimento de ensino.

O nosso hino. De facto, temos um hino. Um hino que se torna resposta ao chamamento do "Senhor das margens do lago". É cantado e respeitado religiosamente por todos. Para evitar a sua banalização cantamo-lo apenas em momentos muito especiais: na Eucaristia de nossa Festa Anual e na Peregrinação a Fátima a pé, à chegada ao Santuário. São dois momentos fantásticos.

O nosso lema: "Deixa por onde fores caminhando brilhante sinal da tua bondade". Da autoria de uma turma de finalistas do 12º ano, o lema desde há muito, foi consagrado como a magna carta do aluno de Moral da Secundária. E, por oportuníssima sugestão do Sr. Presidente do Conselho Executivo, encontra-se gravado num quadro de rara beleza, estrategicamente colocado, junto à porta de entrada, no exterior da sala de Moral. Trata-se de uma referência notável e decisiva na construção da nossa mística e da nossa identidade.

Intencionalmente deixámos para o fim o elemento mais emblemático de todo o nosso património: "O livro d´Ouro"! Guardião sagrado da nossa História e da nossa Memória. Ali podemos recordar os primeiros passos… os primeiros alunos… As primeiras histórias… A nossa vida. Toda a nossa vida. Um tesouro de recordações e de emoções.

O 1º volume, 1976-1982, encontra-se "religiosamente" emoldurado e colocado em espaço nobre na nossa sala de aula. "Olha o meu pai", ou "olha a minha mãe" ou ainda "o meu irmão também está no Livro d´Ouro". Estas sã algumas das expressões de espanto e de emoção, por cada vez que, no início de cada ano, abrimos o Livro d`Ouro e o apresentamos aos novos alunos do 10º ano.

A mensagem foi lançada. Todos percebem. O desafio é unanimemente aceite. Com entusiasmo, com emoção, e, porque não dizê-lo, com uma ponta de orgulho até. A eles, novos alunos, compete dar continuidade à nossa história.

Estamos certos de que outras histórias fantásticas, outras páginas igualmente belas, outros sonhos, outros projectos irão com certeza surgir. Naturalmente com novos protagonistas, é claro, porém, os mesmos autores de sempre: os Alunos da Disciplina de EMRC da ESP. Uns e outros com um coração do tamanho do mundo.

De referir que estamos a elaborar o 6º volume de “O Livro d´Ouro, que deverá ser oficialmente apresentado na próxima Festa dos Alunos de Moral, dia 1 de Maio. Nele poderemos recordar, entre outras actividades, Campanhas e Festas de Natal, Festa Anual 1 de Maio, Peregrinações a Fátima a pé, Visitas de Amor, Página de Sonho (estudantes que contraíram matrimónio, um e outro alunos de moral), alunos a quem Deus já chamou…

Parece-nos agora igualmente importante referir um outro elemento e pelo qual nos batemos durante anos. Trata-se da nossa Sala de Moral. Não a consideramos um privilégio alcançado, pese embora a clara falta de espaços na escola, antes, uma evidente necessidade, face ao volume e à natureza de alguns projectos a reclamarem um espaço próprio, devidamente adequado e equipado.

Esta tratou-se de uma conquista fundamental para a Disciplina. Equipada quase na sua totalidade pelo esforço financeiro e outros dos nossos alunos, é hoje considerada a melhor sala de aula da nossa escola.

Finalmente, e se nos é permitido, gostaríamos de dedicar este trabalho aos professores de EMRC que um dia passaram pela Escola Secundária de Peniche. Bem hajam, estimados colegas, por tudo quanto nos deixaram.
Gostaríamos também de o dedicar aos nossos queridos alunos de quem tanto gostamos e amamos. Bem hajam, por tudo, tudo, quanto de vós recebemos. Para nós, são os melhores alunos do mundo.

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quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Desejo de eternidade


Depois do Dia de Finados, em memória de todos os que morreram, divulgamos uma entrevista, originalmente publicada na “Notícias Magazine”*, em 2005, a José Manuel Anacleto.
Este investigador formou-se em Direito e estuda há mais de 20 anos as grandes tradições filosóficas e religiosas do mundo. Não se considera crente, nem seguidor de nenhuma religião em particular e, no entanto, admite ser «intimamente religioso, tão cristão, quanto budista, hinduísta, tauista, zoroastrista...». Preside o Centro Lusitano de Unificação Cultural e é autor dos livros «Espírito: Ciência ou Ilusão?» e «Transcendência ou Imanência de Deus», entre outros títulos.



Entrevista e fotografia Gabriela Oliveira


Apesar de todas as diferenças, algo parece ser universal no ser humano - a vontade de existir para além da morte. Uma certeza que todas as religiões postulam e que nem a filosofia nem a ciência conseguem negar. Todas afirmam «uma plenitude», garante José Manuel Anacleto, «seja da matéria, seja do espírito, seja, em suma, do ser», que nos abre as portas para a eternidade. Antes de nos interrogarmos se a morte é o fim, este investigador repõe a dúvida dos antigos gregos, egípcios e hindus: será que tivemos mesmo um início? Seremos feitos da «substância» da eternidade? Ponha de parte os preconceitos e pondere as explicações...
A ciência não responde à grande interrogação da morte. É por isso que procuramos a religião? Em busca das respostas que não encontramos?

É preciso ter em conta que a ciência, tal como a entendemos, tem 4-5 séculos, é uma aventura demasiado recente na história da humanidade e a busca religiosa é muitíssimo mais antiga e, portanto, não surgiu como uma procura para os vazios que a ciência moderna não preenche. Para quem assume uma postura mais reflexiva, o questionamento religioso nasce do deslumbramento perante a grandeza e o mistério do universo. A interrogação basilar - porque é que há o universo? e porque não existe o nada? - tem ocupado as mentes mais reflectidas de todos os tempos. Mas para o comum das pessoas, o questionamento é outro: até que ponto posso ser beneficiado pelas forças superiores, até que ponto esses poderes podem olhar-me de uma forma que me favoreça.

Agora e depois da morte...

Nesta nossa sociedade moderna e consumista, a maior parte das pessoas, pelo menos até chegar a uma idade mais avançada, raramente se interroga sobre a morte, é cansativo e demasiado incómodo pensar nisso. A religião é, sobretudo, encarada como uma espécie de seguro ou de contrato com vagos e hipotéticos poderes superiores, em que a manifestação de adesão a determinada igreja e o cumprimento de práticas mínimas, trariam uma protecção para as coisas imediatas da vida quotidiana. É a tentativa de «comércio» com o sagrado.

Habitualmente «herdamos» a religião da nossa família. Nem sempre escolhemos as nossas convicções religiosas?

A adesão a uma religião em particular, na grande maioria dos casos, não radica de uma escolha consciente e deliberada. Por isso em Portugal cerca de 90% das pessoas afirmam ser católicas, na Argélia quase 100% segue o Islão ou na Índia a grande maioria segue o que impropriamente chamamos de hinduísmo (e que eles chamam Sanatana Dharma - a religião eterna). A nossa apetência religiosa, não sendo reflectida, é imediatamente canalizada para a tradição predominante no país, na região ou no meio sociofamiliar em que nos inserimos.

Mas para muitas pessoas a busca religiosa não tem sentido.
Há quem se defina como ateu ou agnóstico – duas posições distintas, apesar de muitas vezes serem confundidas. O agnóstico autêntico questiona intensamente a natureza do ser e do universo e conclui que não tem certezas. O que é muito diferente das crenças pela positiva ou pela negativa, das pessoas que dizem eu acredito sem saberem muito bem no quê ou daquelas que dizem eu não acredito, desconhecendo também a que se referem quando afirmam não acreditar. Muitos ateus acabam por ser crentes, pela negativa.

Ao longo dos tempos, em todas as culturas, encontramos o culto do divino e dos mortos. Não aceitamos ser mortais?

Parece que não. Há um «sentimento inato» no ser humano que recusa aceitar a ideia de um fim. Se repararmos bem, nós também não temos a ideia de um início, a nossa existência é um dado adquirido. Não nos lembramos do primeiro momento, do primeiro pensamento, da primeira sensação, não temos qualquer memória da primeira vez, do primeiro instante... Temos a noção de que a existência é algo de sempre e para sempre. A religiosidade ocidental afirma que somos eternos, mas apenas num dos sentidos, isto é, sustenta que não teremos fim. Defende, no entanto, que tivemos um início, visto que somos obra de uma divindade criadora. Mas esta ideia de criação não resiste a um exame mais profundo. Nas filosofias mais antigas e profundas do oriente não há tal coisa como um ser criador e um ser criado - todos nós partilhamos um absoluto ou divino e não teremos fim precisamente porque não tivemos início. Essa será a verdadeira eternidade. Encontramos esta concepção, por exemplo, na Vedanta e no Advaitismo na Índia, e de um modo geral, em todo o pensamento antigo, dito pagão.

Queremos sempre deixar marcas da nossa existência, através de um filho, de uma obra... Temos pavor ao nada?

A ideia do nada é insustentável, por mais que queiramos, não conseguimos imaginar o nada. Se tentarmos «tirar o mundo ao mundo», como dizia Fernando Pessoa, algo parece sempre restar, nem que seja um espaço vazio e isso já é alguma coisa. Não pode haver um nada absoluto. E do ponto de vista individual, a noção de nada não só de algum modo nos horroriza, como nos parece inverosímil. A nossa existência é um contínuo, em que não há momentos de vazio ou de nada. Daí a nossa dificuldade em aceitar a morte como um salto para o vácuo.

Do ponto de vista da ciência, continuamos a ser matéria em transformação... «Nada se perde, tudo se transforma», diz a famosa lei da física.

A espiritualidade mais profunda e a ciência, mesmo a mais materialista, afirmam uma plenitude que perdura – seja da matéria, no caso da ciência, seja do espírito, no caso dos que têm uma perspectiva espiritualista, seja do ser (que é simultaneamente espírito e substância), na perspectiva da antiga tradição que perpassa todas as grandes religiões e filosofias. Portanto, não há fim de um ponto de vista espiritualista, como não há fim do ponto de vista materialista, e ambos à sua maneira afirmam a eternidade de algo.
A mesma raiz?
As religiões apontam caminhos diferentes para o além morte. Há algum trilho comum?
Estudos comparativos mostram que há uma base comum a todas as grandes religiões e tradições filosóficas. Se as situarmos historicamente, podemos ver como vão surgindo desdobradamente, umas de dentro de outras, com uma continuidade entre si e não como revelações únicas, que nada tenham a ver com o que está para trás. O problema é que durante séculos olhámos para o pensamento antigo e para as outras civilizações com os preconcebidos do Cristianismo, havendo graves distorções, por exemplo, na tradução de textos antigos, pondo povos que não tinham uma concepção monoteísta a falar de uma criação à maneira cristã... Mas se o cristianismo tem 2000 anos, o budismo tem 2500 anos, o tauismo outros tantos e o hinduísmo muitos milhares de anos.

As concepções orientais são muito diferentes das ocidentais. Em que aspectos?

O pensamento oriental está imbuído da ideia das vidas sucessivas. Cada morte é um momento importante mas é apenas um de muitos momentos, por haver uma pluralidade de existências. Não é assim no cristianismo, no islamismo e, até certo ponto, no judaísmo, em que se entende que temos apenas uma existência neste mundo e, portanto, a morte, quer ocorra aos 70 anos, quer ocorra segundos depois de termos nascido, é um momento único e radical, a partir do qual ficará determinada toda a nossa existência na eternidade. Se porventura, vivermos apenas 15 anos, esses 15 anos determinarão se teremos uma existência eterna de felicidade ou, pelo contrário, de condenação ao sofrimento ou, no mínimo, de privação da alegria. A hipótese reencarnacionista concede não uma mas inúmeras oportunidades de aperfeiçoamento humano.

Hipótese estranha ou sem sentido para muitas pessoas.

Ainda a olhamos com estranheza mas a ideia da reencarnação tem vindo a ser progressivamente encarada como plausível no ocidente. Se há cem anos atrás eram muito poucos os que davam atenção ao assunto, hoje já não é assim. A ideia popularizou-se embora de uma maneira confusa - encontramos as concepções mais díspares e tantas vezes insustentáveis sobre a reencarnação.

Como a de voltarmos à Terra no corpo de um animal...

Essa é uma concepção equivocada. Podemos «animalizarmo-nos» no sentido psicológico mas não no sentido literal e formal da palavra - isso foi muito bem explicado pelo grande filósofo neoplatónico Proclo, ao comentar um texto de Platão. Os antigos, como ainda hoje os orientais, sempre utilizaram uma linguagem muito simbólica, rica em imagens. Uma interpretação literal entraria em contradição com as leis da evolução e da hierarquia, que são basilares.

A ideia da reencarnação está presente em tudo?

Olhando à nossa volta, tudo é cíclico. É curioso que em obras de divulgação científica já se questiona se este universo, se este cosmos que conhecemos, não será apenas um numa longa série, numa sucessão de diferentes cosmos. E de facto a sucessão dos dias e das noites, dos movimentos das marés, das estações do ano, dos nossos movimentos respiratórios de inspiração e expiração... tudo isso evidencia a ideia de uma existência cíclica, que subjaz à teoria da pluralidade das existências ou reencarnação. O cristianismo nos primeiros séculos, em consonância com o pensamento da época, também considerava a hipótese da reencarnação, o que é visível em várias passagens da Bíblia. Só a partir do século VI, no 2º Concílio de Constantinopla, é que a Igreja Cristã considerou definitivamente herética esta posição ao rejeitar as célebres Teses de Orígenes. Até aí, era admitida por muitos cristãos.

Rituais de despedida
Para que servem os rituais funerários?
Podemos ver a sua importância de dois pontos de vista. Na perspectiva de quem fica, é um catalisador e, ao mesmo tempo, um meio de exorcizar o medo que a morte provoca na generalidade das pessoas. Os rituais religiosos reúnem a grande emoção suscitada por se assistir à morte de alguém que nos é particularmente querido, balizam essa emoção e de algum modo vão sublimá-la, ao referenciarem um caminho espiritual que irá ser percorrido por quem partiu e no qual, até certo ponto, podemos intervir dirigindo-lhe orações e pensamentos favoráveis.

E na perspectiva de quem partiu?

Na cultura tibetana, no antigo Egipto e também na cultura hindu, existem obras que descrevem pormenorizadamente (e com notável similitude entre si) os passos que se sucedem a seguir à morte, e todas falam na enorme importância dos últimos pensamentos daquele que morre e do ambiente que o rodeia nesses instantes finais. A sua existência futura será, em grande medida, determinada pela qualidade dos últimos pensamentos, que representam uma síntese da qualidade de todos os pensamentos, sentimentos e acções... de uma vida que ficou para trás. Para um tibetano ou um hindu, é ainda mais penoso morrer num contexto hospitalar.

Os rituais também diferem muito consoante as religiões e tradições.

Por exemplo, os rituais hindus são muito mais complexos, as cerimónias podem demorar 12 dias, usa-se o sari branco e o costume é a cremação, o que corresponde, entre muitos outros aspectos, à sua visão relativizadora do corpo e do mundo físico. Para nós ocidentais, a morte é vista como algo pavoroso, como uma desgraça, como um mal a que não nos podemos furtar, e na prática os rituais religiosos estão sempre matizados por essa ideia do pavoroso, pelo sentimento de que algo terrível aconteceu. Pelo contrário, nos rituais hindus assistimos a uma maior serenidade e a uma certa satisfação pela libertação do mundo físico. Para os orientais, o mais terrível e sofrido dos mundos é este em que vivemos - o mundo terrestre é o verdadeiro inferno, a morte representa a libertação.

Temos condições para levar por diante todos esses rituais?

Cada vez mais, diferentes culturas religiosas convivem no mesmo espaço geográfico, em parte, devido aos fenómenos migratórios. E isso cria sérios problemas para as minorias, que muitas vezes vêem-se impossibilitadas de seguir com rigor aquilo que as suas convicções religiosas lhes determinam. O Estado deve ter uma perspectiva imparcial, criando condições para que todos se possam expressar face à morte, o que ainda não acontece no nosso país.

Há quem defenda a criação dos chamados «funerais humanistas», sem ligação a qualquer Igreja.

Essa é uma questão importantíssima. O Estado se é laico tem de ser coerente com essa laicidade. Não faz sentido que um ateu, agnóstico ou seguidor de outra religião seja praticamente forçado a estar nas capelas mortuárias da Igreja Católica. Não faz sentido que nos funerais de Estado os corpos sejam levados para espaços de uma determinada Igreja. A situação incómoda que se verificou há pouco tempo, justamente num caso desses, devido à hipotética realização de um ritual maçónico na Basílica da Estrela, é reveladora dessa contradição. Gerou-se um conflito de interesses, ambos legítimos, entre a vontade de quem morreu e o direito que assistia à Igreja de impedir rituais indesejados. É urgente criar espaços neutros onde os corpos possam repousar e os rituais possam ser preparados, de acordo com as convicções ou crenças de cada um.

O Estado pode demitir-se dessa responsabilidade?

Não deve. A omissão do Estado é perniciosa e já se arrasta há demasiado tempo. É necessário também aumentar o número de crematórios, que são ainda escassos e insuficientes. Se um indivíduo morrer no interior do país e se pretendia ser cremado, a família vai deparar-se com enormes dificuldades para realizar a sua vontade.

Incoerência
Continuamos a ser preconceituosos em relação a outras religiões e tradições?

Continuamos. Há maior tolerância, é verdade, mas continua a haver uma grande ignorância. E o preconceito nasce sempre da ignorância ou quando nos recusamos a conhecer de uma forma neutra e imparcial. Na verdade, muitas pessoas são ignorantes da própria religião que dizem professar. Por vezes, ridicularizam preceitos de religiões ou de igrejas a que não pertencem, desconhecendo por completo que são também comuns à religião que seguem. Quanto mais longe de nós está a religião em causa, maior é o preconceito e a ignorância. Se olhamos de soslaio para as igrejas cristãs protestantes, muito mais o fazemos em relação ao islamismo ou ao hinduísmo.

Temos tendência para desvalorizar as outras crenças e tradições?

Sim. Está enraizada a ideia de que “a religião é a nossa”, as outras são as outras... mais ou menos bizarras, mais ou menos duvidosas. Esta posição egocêntrica - de que o nosso modelo religioso é a medida de todas as coisas – não nos permite ter uma atitude imparcial, de tentar compreender o que subjaz a determinada afirmação, a determinado conceito ou até a determinada prática religiosa. Infelizmente, no mundo da religiosidade continua a predominar a noção de acreditar, sendo desvalorizada a noção de compreender. Mas as crenças cegas (religiosas, rácicas, políticas...) já fizeram demasiados e terríveis males ao mundo...

Podemos não ser tão tolerantes como pensamos...

Ma maior parte dos casos, temos uma tolerância negativa, uma tolerância complacente com presunções de superioridade. Achamo-nos muito bonzinhos por evitarmos rir à gargalhada perante certos costumes ou ideias que nos parecem tão disparatadas. Toleramos... mas consideramos os outros ridículos.

E a associação do islamismo ao terrorismo, é uma ideia perigosa?

Sem dúvida. É preocupante a facilidade com que se fala no terrorismo islâmico, como se fossem quase sinónimos, como se cada islâmico fosse potencialmente um terrorista. E sejamos justos, se fizermos uma história imparcial dos terrores já provocados por religiões, talvez o islamismo não ocupe o primeiro lugar. E pergunto-me se será mais aceitável o terrorismo dos exércitos supostamente civilizados que no pavor da noite descarregam os seus arsenais de destruição sobre cidades habitadas por centenas de milhares de pessoas, ou o de um indivíduo que num acto violento, sem dúvida reprovável, se faz explodir por uma causa fanática, perdendo também a sua vida?

Curiosamente o islamismo tem muitas semelhanças com o cristianismo, mas não reclama ser representante do «único filho de Deus».

Os islâmicos sempre tiveram Jesus na mais alta consideração. O mesmo não se pode afirmar em relação aos cristãos que durante séculos identificaram Maomé com o demónio. A teologia islâmica durante muito tempo foi bem menos sectária e feroz do que a teologia cristã. Não devemos esquecer que em determinado momento da civilização ocidental, a luz da cultura (a arte, a medicina, a arquitectura...) foi-nos trazida do Islão. Os «mouros» não eram assim tão terríveis nem demoníacos como os pintávamos.

A religião é ainda um factor discriminante?

Na prática é. As minorias, religiosas ou outras, continuam a ser olhadas de esguelha. Numa sociedade cada vez mais mediática e competitiva, os poderes instituídos estão ao serviço das maiorias, até porque essa é a lógica consumista, que é a de chegar à maioria dos consumidores. E aí, mais uma vez, o Estado deve ter uma função correctiva. Ainda encontramos com a maior facilidade numa escola ou numa repartição pública, símbolos religiosos alusivos a uma determinada igreja. Será isso correcto, tendo em conta os direitos da igualdade e da não discriminação consagrados na lei? Não me parece.

Que religião, ou religiões, teremos no futuro?

Espero que haja mais religiosidade com menos igrejismos e, sobretudo, menos sectarismos. Penso que a diminuição da crença religiosa, nomeadamente entre as faixas etárias mais jovens, levará a que no futuro a religiosidade seja mais autêntica, por ser procurada, questionada e mais fundamentada.

Caminhamos para a «globalização» também no domínio religioso?

Espero que um dia possamos assistir a uma religião universal. O que há no momento é um vislumbre do que poderá vir a ser a globalização da religiosidade. Hoje temos uma espécie de supermercado religioso – que tem sido objecto de vários estudos sociológicos – no qual as pessoas, sem uma preocupação muito séria do que é verdadeiro ou rigoroso, procuram em diferentes tipos de religiosidade aquilo que mais convém aos seus interesses imediatos. Rezam, por exemplo, orações cristãs seguidas de mantras orientais para se sentirem mais protegidas ou serem beneficiadas. É uma lógica imediatista e egoísta que, a meu ver, não é verdadeira religião.

Religião, filosofia e ciência podem ser conciliáveis?
Já o foram no passado. Grandes pensadores da Grécia antiga, como Pitágoras e Platão, eram simultaneamente filósofos, cientistas e eminentes estudiosos do sagrado. Na altura não havia qualquer dicotomia, a busca de sophia - do conhecimento integral - estava sempre presente. O drama é que se perderam as chaves e os códigos interpretativos que estão na base da ciência e das formulações teogónicas e mitológicas do mundo antigo. E perderam-se devido ao fanatismo religioso, que no século IV e seguintes, desencadeou a mais terrível perseguição e destruição contra todo o património da sabedoria, da ciência e até da arte da antiguidade, consideradas demoníacas. Foram perseguidos e aniquilados pensadores genuínos, pilhados e queimados centenas de milhares de livros que reuniam o esforço de gerações sucessivas de investigadores... Em que patamar poderia estar hoje a humanidade se ao longo dos tempos não tivesse havido tanta intolerância e fanatismo? Certamente, estaríamos bem melhor.

*Entrevista a José Manuel Anacleto "Notícias Magazine", nº683 (suplemento do Diário de Notícias/Jornal de Notícias), 26-06-2005, págs.26-32.

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