Há dez anos, um movimento de cidadãos congregou-se em prol de (maior) independência nas eleições para os municípios e Assembleia da República. Recordamo-lo pelo seu principal impulsionador.
Texto José Luís Maio fotografia Victor Hugo Cristo
As extraordinárias potencialidades humanas com que, todos, somos dotados jamais deixarão de alimentar o sonho, uma vez e num átimo refulgente – “aqui e agora” – projectado no consciente. É em momentos como esse que se dissipa o também humano cepticismo da impossibilidade da utopia, que a relega para as calendas gregas.
E quanto mais escarpada é essa escalada, quantos mais obstáculos são colocados nessa senda inelutável, tanto externa como interna, desde o começo dos tempos, tanto mais lúcida é a determinação, mais enérgica, a força e mais abrangente, o amor por tudo o que vive, se move e tem o seu ser na eternidade, mesmo que corrompido no existir igualmente inexorável e quantas vezes aviltado pela brutal, néscia e absurda insensibilidade.
Passados que são dez anos desses momentos entusiasmantes e vibrantes de uma energia inexcedível pois o pensamento já habitava o paraíso idealizado – a construção de uma sociedade por todos, não apenas por uns “predestinados” –, cabe-nos agora, um pouco mais depurados pelo vento ígneo e implacável da realidade, não só da crença ingénua na irresponsabilidade e na retórica inconsequente dos actores (não agentes) públicos, como igualmente dos miasmas4 que contaminam os corredores oficiais, fazer um balanço daquilo que, no alvor do terceiro milénio, ficou conhecido por “Movimento de Cidadãos”, um dos inúmeros grupos de portugueses que começavam a surgir no país, numa manifestação de desagrado e repúdio por práticas governativas, legislativas, judiciais e económico-financeiras.
Imaginarão, por certo, os leitores que tal ideia poderá ter surgido de fontes etéreas, inspiradoras de mitos e transcendências, como as que deram origem à República ou às Leis platónicas. Nada mais errado! Os fautores da iniciativa jamais abrigariam a pretensão – pelo menos nestes éons5 mais próximos – de atingir os elevados cumes do pensamento intuitivo do divino filósofo. A fonte foi muito mais terrena, pretensa e idealmente próxima dos cidadãos: Belém.
Não a Belém – Beit Lehem, literalmente “Casa do Pão” – de Jesus Cristo, o Menino-Rei, o Homem Perfeito, a Luz do mundo ocidental, mas aquela em que se instalam outros menos elevados “reizinhos”. Na época, a “humilde e discreta manjedoura”, ou antes, a residência do mais alto magistrado de Portugal era ocupada por Jorge Sampaio.
Tantos foram os apelos, as exortações, os incentivos à participação dos cidadãos na definição de políticas públicas, que dois dos seus atentos e solidários ouvintes decidiram actuar, trabalhando num texto a que foi dado o título de “Uma resposta ao apelo presidencial”.
Essa insistência presidencial pode ser inferida de um artigo do "Diário de Notícias" de, pasme-se, cinco anos mais tarde:
«Sampaio quer sistema eleitoral 'recalibrado'.
Por Francisco Almeida Leite, 26 de Novembro de 2005.
O Presidente da República, Jorge Sampaio, defendeu ontem uma "recalibragem dos sistemas eleitorais, de forma a garantir melhores condições de representatividade". Na abertura do seminário "Pensar a Democracia", que ontem decorreu no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, Sampaio mostrou-se favorável a "novas formas de participação dos cidadãos na definição das políticas públicas."
Para o Chefe de Estado, a democracia confronta-se neste momento com problemas como a "quase-submersão da agenda política por uma agenda mediática" condicionada muitas vezes pela "contabilidade das audiências". Isto para além de outro problema, muito enfatizado por Jorge Sampaio, que é a "coexistência, nem sempre pacífica, nas democracias reais, entre direitos civis e políticos, por um lado, e direitos sociais, por outro."
Numa altura em que há alguma contestação social em Portugal no sector público, militar ou entre os juízes – por causa de medidas tomadas pelo Governo –, Sampaio garantiu que "vale a pena insistir" que o "núcleo básico de direitos sociais é, hoje, consubstancial à democracia". E acrescentou que a "erosão generalizada de tais direitos" conduz a "formas extremas de apatia cívica”.»
Usando o vernáculo teológico, tivemos, durante nove ou mesmo dez longos anos, um Presidente da República transformado num vigoroso e incansável repetidor dessa sirénica ladainha acerca da imperiosa necessidade de uma efectiva participação dos cidadãos na construção do seu próprio futuro. Com tal conduta, tornou-se num fiel seguidor – por certo de forma inconsciente, dada a sua qualidade de convicto agnóstico – das regras da santa madre igreja católica apostólica romana.
Do mesmo modo que uma mentira não se transforma numa verdade mesmo que propalada biliões de vezes, ou retocada para ter uma aparência mais refinada, uma promessa eivada de intenções inconfessáveis (ou até sem qualquer intenção, o que certamente não é melhor) jamais se transformará em realidade. Antes pelo contrário, tem efeitos narcotizantes e conduzem os destinatários a um estado de torpor e de dependência, em vez de actuantes, partícipes, autónomos e solidários. De facto, não vemos nenhuma diferença entre estas duas instituições no que respeita à eficácia da sua retórica “salvífica”: ambas servem de intercessoras entre os paraísos celestiais e terrenos e os seus acólitos partidários. Para que serve tal papagueio? Ora, no nosso quotidiano político, chamamos republicanos, laicos e socialistas a exemplos destes.
Passemos então a essa resposta, longamente preparada a partir de finais de Junho de 2000 com a preciosa colaboração de amigos anónimos:
«UMA RESPOSTA AO APELO PRESIDENCIAL
I
Nestes últimos tempos, o senhor Presidente da República tem exortado os cidadãos a influenciar e a intervir mais activamente nas decisões que os afectam, não só no seu quotidiano mais imediato mas, também, no seu futuro mais distante.
II
Este apelo não pode deixar de sensibilizar todos aqueles que partilham da sua atenta e avisada preocupação, todos aqueles que, conhecendo a natureza humana nos seus aspectos nucleares ou essenciais, são tolerantes, fraternos ou bondosos para com todos os seus semelhantes que erram por fraqueza, ignorância ou outra limitação inerente à sua condição, mas não são permissivos, cúmplices ou cobardes perante o erro que essa mesma condição provoca.
III
A exortação presidencial demonstra uma consciência lúcida, abrangente e cooperante e que, em obediência à marcha inexorável do progresso, vai crescendo em cada vez mais cidadãos anónimos, embora escasseie nas personalidades que se movem na esfera político-partidária, facto que não se pode deixar de se considerar insólito.
IV
Os desafios e os problemas com que todos nos confrontamos são demasiados profundos (mas não complicados) e inter-activos para que a nossa classe política, ainda incapaz de abdicar de privilégios pessoais e corporativos, seja capaz de os prever, detectar, implantar e resolver ou eliminar. Falta-lhe o desapego emocional, a visão clara e penetrante e o sábio discernimento que lhe permitiriam distanciar-se dos envolvimentos classistas e reflectir sobre as verdadeiras causas que condicionam e estimulam a vida e o progresso colectivos e, a partir daí, encontrar soluções eficazes para o Bem Comum.
V
Os sectores fundamentais da nossa vida – familiar e educacional, produtiva, sanitária, económica, “mediática”, cultural, política, jurídica e social – padecem de enfermidades gravíssimas e os portugueses correm o risco de submergir na lama da mediocridade, da incompetência e do egoísmo dos que se têm limitado a envolver-se e a esgotar-se em questiúnculas menores.
VI
Além disso, é imperiosa e urgente a criação e cuidada preservação de um terreno – lares com pais conscientes e escolas com orientadores sábios – propício à sementeira e crescimento das virtudes e atributos que façam multiplicar o número de cidadãos solidários, realizados, responsáveis e livres.
VII
Os exemplos (não rumores nem insinuações) que nos têm chegado da prática política e esferas adjacentes já ultrapassaram há muito (e em muito) as raias do opróbrio. A crescente repulsa que os portugueses têm manifestado pela classe política (que ocupa o último lugar de todas as actividades nacionais) e o aumento da abstenção nos actos eleitorais, são disso prova irrefutável.
VIII
Algo tem que ser feito, e muito rapidamente, quando nas mentes dos cidadãos começa a ganhar forma e a dominar a ideia de que o edifício da Política é o último refúgio da ganância, do oportunismo, do ódio, da ignorância, da violência, da mediocridade, da vaidade e de todos os outros males que corroem e destroem os anseios mais legítimos dos portugueses.
IX
Há que haver a corajosa determinação de se “nomear” personalidades de elevada estirpe, à altura de tomar decisões sábias, pioneiras e de vanguarda e de agir em nome de princípios e de valores de universalismo, de verdade e de justiça, em vez de imitar modelos estereotipados caducos e de reagir a iniciativas alheias e a pressões imediatistas.
X
Para isso, são necessários muita coragem e humildade, um equilibrado senso de proporções e uma consciência esclarecida. Toda e qualquer construção sólida exige o empenho e a participação do maior número possível de mentes e vontades livres e humanistas, responsáveis e solidárias.
XI
A verdadeira autoridade (a que não é imposta despótica e irracionalmente, aquela que é livremente aceite por cidadãos conscientes) só pode ser exercida por pessoas legitimadas pela sua honorabilidade, férrea determinação, visão superior, inclusiva e universal, grandeza de alma e equilíbrio interior, sentido lúcido de justiça, simplicidade, parcimónia, profundo idealismo, espírito de sacrifício em prol da Humanidade e uma real e comprovada sabedoria.
XII
Evitar o excesso de partidarização da nossa vida pública é hoje, mais do que nunca, urgente e vital para que se estanque a grave hemorragia e exaustão das nossas melhores energias. Apesar de terem sido dados alguns passos muito tímidos nesse sentido e de o supra-partidarismo já poder ser uma realidade nos actos eleitorais para as freguesias, impõe-se idêntica decisão para os municípios e para a Assembleia da República. Urge trazer para o campo prático da nossa vida ideias, valores e métodos correctos, tais como os da cooperação e do trabalho de equipa, humilde e perseverante, os únicos capazes de congraçar os genuínos esforços e as capacidades de todos os portugueses.
XIII
Grande parte dos actuais políticos partidários fingem desconhecer que também existem pessoas sábias, capazes de dar o seu melhor ao serviço do progresso, mas que detestam participar em disputas estéreis, que apenas servem para exacerbar o aspecto mais sombrio e nocivo dos protagonistas.
XIV
Temos espíritos profundamente lúcidos, homens e mulheres reconhecidamente bons e sábios, acima dos jogos e interesses pessoais/partidários e não nos podemos dar ao luxo de continuar a desperdiçar potencial tão precioso. É isso que a maioria dos nossos concidadãos anseia, quando expressa a sua desilusão e desencanto pela situação actual e aspira à moralização e dignificação da actividade política em Portugal.
XV
O nosso mais alto Magistrado, aquele que - e porque - nada deve aos aparelhos partidários, já deu um passo decisivo ao apelar aos cidadãos para exercerem e intensificarem conscientemente a sua participação cívica. Na sequência da sua intervenção, estaríamos, por certo, no bom caminho, se se avançasse, prática e resolutamente, nesta via de regeneração.
XVI
Face ao colapso, à incapacidade, à falência e ao descrédito do sistema vigente, há razões de sobra para crer que uma iniciativa desta natureza (ou com espírito idêntico) iria merecer o melhor dos acolhimentos e aplausos e a mais entusiástica simpatia da grande maioria dos portugueses, tão “desgastados” mas ainda ansiosos por paz em todos os sectores da sua vida individual e colectiva.»
Ao elaborar uma espécie de manifesto como este, a nossa intenção era fazer desencadear um genuíno sentimento nacional de repúdio pelo que, já nessa altura, surgia aos olhos de todos de forma evidente. A degradação da ética politica, visível e com ampla repercussão no poder local6, e a utilização ilegítima e criminosa dos fundos comunitários, propiciadora da consequente restauração ostentosa do iníquo, decadente e ancilosado novo-riquismo, são dois simples exemplos dessa, esta sim, “pandémica” e imunda atmosfera, irrespirável para a regeneração de um país por reconstruir.
O estado de espírito dos autores do documento parecia repercutir a preocupação presidencial – que se via a braços com uma indecisa e frágil maioria parlamentar – e esta “agonia” vivida por Jorge Sampaio era por eles secreta e anonimamente partilhada.
Já tinham sido nomeados por mais de uma vez, em finais de 1970, entre 78 e 80, governos de iniciativa presidencial de António Ramalho Eanes, com Alfredo Nobre da Costa, Carlos Alberto da Mota Pinto e Maria de Lourdes Pintasilgo como primeiros-ministros, pelos quais não adviera nenhuma desgraça ao país nem aos cidadãos, antes pelo contrário.
E foi nessa linha de pensamento que se sugeriu isso mesmo a Belém, no ponto IX: «…“nomear” personalidades de elevada estirpe, à altura de tomar decisões sábias, pioneiras e de vanguarda e de agir em nome de princípios e de valores de universalismo, de verdade e de justiça…».
Como se pode ver no ponto XII, foram feitas idênticas propostas a nível autárquico e parlamentar: «…Apesar de terem sido dados alguns passos muito tímidos nesse sentido e de o supra-partidarismo já poder ser uma realidade nos actos eleitorais para as freguesias, impõe-se idêntica decisão para os municípios e para a Assembleia da República...».
E se, mesmo pesando as gravíssimas e chocantes permissividade, omissão e cumplicidade “corporativas” entre certos “independentes” e os aparelhos partidários, foi tomada essa decisão para as autarquias através, como se sabe, da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais, a Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de Agosto, a inexistência de legislação para candidaturas independentes à Assembleia da República subsiste até hoje7.
Passada esta primeira fase (de elaboração do manifesto), tratou-se de fazer a sua divulgação entre as pessoas mais próximas e as das nossas relações e, a partir daí, paulatina e progressivamente, pelo método multiplicador – em que uma vela acende duas, duas acendem quatro, quatro acendem oito, etc. –, passámos a enviá-lo pelo correio para conhecidos mais distantes, dentro do país, na esperança de que, por esse processo, se conseguisse um número assinalável de adesões. O manifesto ia acompanhado de uma pequena nota explicativa e de um exemplar para recolha de assinaturas, que aqui se dão a conhecer:
«Prezado concidadão.
Este documento é de todos os que anseiam e lutam pelo despertar e exteriorização das melhores energias, vontades e capacidades abrigadas na Alma Portuguesa. E é por isso que é deles a autoria deste manifesto, pois a sua essência tem estado mais ou menos latente, mais ou menos expressa, nas suas consciências, não sendo, por isso, legítimo, a quem quer que seja, arrogar-se como seu proprietário ou autor.
Se, após a sua leitura, se identificar com o seu conteúdo e pretender que tenha o maior alcance e a máxima eficácia, a nível nacional, divulgue-o por todos os meios ao seu dispor, de forma a que se consiga obter um esmagador e convincente número de assinaturas, de preferência legíveis e identificáveis através do preenchimento da coluna respectiva da folha anexa, o que contribuirá para a elevação e dignificação da iniciativa.
A folha anexa que contém os espaços para as assinaturas deverá ser conservada em branco para que posteriormente possa ser fotocopiada para novas recolhas.
O objectivo desta acção será a remessa, a partir do maior número possível de pontos do país (aldeias, vilas e cidades), do texto acompanhado de todas as assinaturas recolhidas, para o seguinte destinatário:
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
PALÁCIO DE BELÉM
Praça Afonso de Albuquerque
1300 Lisboa
Para que não se verifique qualquer dispersão e o consequente esvaziamento desta iniciativa, é importante que o envio do manifesto e assinaturas seja feito em simultâneo em todo o país. Assim, sugere-se a sua remessa ao destinatário entre os dias 1 e 15 de Abril de 2001, escrevendo-se apenas no remetente (...)».
Esta iniciativa, iniciada em meados de 2000, teve como corolário o envio ao Presidente da República de uma carta de apresentação do movimento, que aqui reproduzimos na íntegra:
«Sua Excelência
O Presidente da República
Sr. Dr. Jorge Sampaio
23 de Março de 2001
ASSUNTO: O SURGIMENTO DO MOVIMENTO DE CIDADÃOS E OS SEUS OBJECTIVOS.
Excelência,
Vimos por este meio dar-lhe a conhecer, de forma sucinta mas, esperamos, clara, a razão do aparecimento do MOVIMENTO DE CIDADÃOS e os fins a que se propõe.
Como Vossa Excelência poderá facilmente concluir pelo teor do manifesto “UMA RESPOSTA AO APELO PRESIDENCIAL”, que temos a honra de anexar a esta e que circula actualmente no território nacional para recolha de assinaturas e que, no período de 01 a 15 de Abril, pensamos que chegará, de diversos pontos do país, ao Palácio de Belém, o MOVIMENTO DE CIDADÃOS teve como factor impulsionador a exortação que o Senhor Presidente fez a todos os portugueses ao longo da sua magistratura.
Porque já há muito aprendemos que o mundo e a sociedade são o que todos nós queremos que sejam e porque os princípios, os valores e as ideias que nos norteiam na vida e por que nos batemos coincidem com os de Vossa Excelência, esse apelo teve em nós um profundo impacto. Após uma séria ponderação, entre os vários elementos deste pequeno grupo de cidadãos, acerca da pertinência, actualidade e, sobretudo, eficácia duma estrutura tão frágil como esta, decidimos levar à prática esta ideia, há cerca de nove meses, mais exactamente no dia 29 de Junho de 2000.
De facto, ser-nos-ia bastante difícil, perante a nossa própria consciência, continuar a assistir passivamente aos acontecimentos que têm ocorrido nestes últimos anos no nosso país e a percorrer o caminho em que fomos colocados, depois da exortação de Vossa Excelência, sem pelo menos tentar fazer algo para os prevenir ou alterar.
Quanto aos seus objectivos, este MOVIMENTO DE CIDADÃOS pretende modestamente contribuir para a criação e propiciação dos instrumentos e mecanismos para que emirja, se legitime e consolide a integridade, a força e a acção das mais competentes, dinâmicas, dignas e prestigiadas individualidades que personifiquem o ESPÍRITO do verdadeiro e responsável Serviço Público, do duradouro e equânime progresso económico, da elevação cultural e da coesão e consciência sociais, tão bem reflectido no discurso de tomada de posse de 09 de Março de Vossa Excelência.
No campo prático, ao longo de todas estas semanas, limitámo-nos a entrar em contacto com todos os amigos, bem como com pessoas que pensamos conhecer minimamente para termos à-vontade em lhes darmos a conhecer este projecto, a fim de que, se com ele se identificassem, pudessem partilhá-lo e divulgá-lo a todos aqueles com quem se relacionam, até englobar todo o país, na convicção de que tudo o que se encontra em sintonia e em harmonia com o ritmo do verdadeiro Progresso acabará por se concretizar.
Por esse motivo, ser-nos-á difícil, se não mesmo impossível, determinar o número de portugueses que subscreverão o manifesto e o farão chegar às mãos de Vossa Excelência. Mas também pensamos que este pormenor é irrelevante, pois a qualidade (o grau de consciência cívica) deverá sobrepor-se à quantidade (o número dos que possuem essa consciência), apesar de o ideal ser a união de ambos os factores, consecução que o Tempo e a Evolução se encarregarão de fazer coincidir.
Esta acção é indubitavelmente ínfima, em comparação com as ingentes e complexas, mas honrosas, tarefas que Portugal e os Portugueses têm à sua frente. Porém, acreditamos que, deste pequeno sonho, poderá nascer uma digna e elevada Realidade.
Senhor Presidente, caso pretenda ver esclarecidos alguns aspectos porventura menos claros desta iniciativa ou outros pontos que considere pertinentes, pomo-nos desde já ao inteiro dispor de Vossa Excelência para uma audiência que entenda conceder-nos.
Aproveitando esta oportunidade para lhe desejar os maiores êxitos na sua decisiva e nobre missão,
Atentamente nos subscrevemos, com a nossa mais elevada consideração (...)».
Desta carta jamais foi acusada a recepção. Silêncio idêntico mereceu a “audácia” de um conjunto de cidadãos que transformou os (fingidos) apelos do presidente Jorge Sampaio numa iniciativa de que nunca se soube o verdadeiro impacto na sociedade portuguesa, nem a quantas mãos chegou.
Não nos cabe a nós dizer se algum mérito ela teve, nem isso é relevante. O que verdadeiramente importou foi a autenticidade com que se interiorizou e deu corpo visível a um sentimento popular de amor pátrio e de rejeição ética e social pela apropriação e usurpação, por parte de personagens obscuros, medíocres e indignos, dos bens inerentes a uma democracia que se pretende saudável e digna.
Epílogo
Confrontados hoje com o mesmo problema – o da exclusividade ou monopólio dos partidos políticos na gestão da res publica, a coisa do povo8, e o de se saber até que ponto um conjunto de indivíduos, não arrebanhados pelo chefe (seja-nos perdoada a rudeza da expressão, mas, infelizmente, é isso que sucede na maioria dos casos da actual vida partidária), e por muito elevada e inquestionável, em termos técnicos e éticos, que seja a sua capacidade em representar e servir o povo a que pertencem, podem organizar-se num grande projecto nacional, transcendendo ilusórias barreiras pretensamente ideológicas – pensamos o seguinte:
Embora os partidos políticos tenham comportamentos inadmissíveis na nossa sociedade, o certo é que os responsáveis por isso são os seus dirigentes e as pessoas que gravitam à sua volta pelas piores razões – as mesmas que motivam os comportamentos dos chefes.
Assim, os partidos políticos – que deviam ser "parte" do todo nacional, daí o conceito "partido" como nós o entendemos –, em vez de contribuir para a construção de uma unidade maior, fazem exactamente o oposto: "partem", dilaceram, destroem essa unidade, esse TODO que é o país, não agem em prol da UNIDADE ATRAVÉS DA DIVERSIDADE, como acontece com a luz branca que é reflectida ou manifestada pelas sete cores através do prisma óptico.
Ora, a nossa triste situação não se deve à existência de partidos políticos, mas, antes, ao tipo de psicologia e ao nível de consciência que caracteriza os agentes políticos. Se os partidos terminassem, não acabaria esta mentalidade (ainda) maioritária que devasta o que de mais sublime possuem todos os cidadãos. Por exemplo, nenhum autarca, deputado, legislador, governante e dirigente público não se transmuta em termos de consciência pelo mero facto de sair de um partido político e fundar um movimento de cidadãos. A sua motivação é exactamente a mesma: servir-se dos cargos que ocupa para benefício pessoal, em vez de servir o povo nos cargos que ocupa.
Já há quase 2.500 anos Platão dizia que os realmente melhores (aristos) da polis não deviam demitir-se da responsabilidade de governar, sob pena de serem substituídos pelos piores e mais indignos. Não se trata, portanto, de algo novo!
A única solução é o surgimento de pessoas dotadas de consciência determinada, lúcida, sábia e compassiva. Ora, isso só acontecerá através de uma educação correcta.
O nosso empenhamento terá de passar por aí, pensamos. Se formos capazes de influenciar concidadãos dotados dessas características e com vontade de assumir um projecto desta natureza, isso será o bastante
1 Doutrina dos que afirmam que o homem não pode atingir a verdade absoluta. In Dicionário Priberam da Língua Portuguesa.
2 Do latim tardio utopia, palavra forjada por Thomas More para nomear uma ilha ideal em A Utopia, do grego ou-, não + grego tópos, ou, lugar. Ou país imaginário em que tudo está organizado de uma forma superior. Sistema ou plano que parece irrealizável. Idem.
3 Isto é, para nenhum momento no futuro.
4 Emanações morbíficas provenientes de substâncias orgânicas em decomposição. In Dicionário Priberam da Língua Portuguesa.
5 Éon, eão, eon ou ainda aeon significa, em termos latos, um enorme período de tempo, ou a eternidade. A palavra latina aeon, significa "para sempre". Ela é derivada do grego αιών (aión), em que um dos significados é "um período de existência" ou "vida". In Wikipédia.
6 A impunidade dos autarcas a contas com a justiça iniciara a edificação do seu condomínio privado, com um número crescente de candidatos à sua ocupação.
7 Não pode deixar de soar a estranho, contraditório e, em última análise, absurdo – na linha do cristão Tertuliano e da sua famosa máxima “creio porque é absurdo” – o facto de serem os membros de um órgão de soberania a decidir sobre matéria do seu próprio interesse. Deveria haver um outro órgão para esse fim. É, para não dizer pior, caricata a arrogância de alguns destes órgãos – como o governo ou o parlamento –, quando, com uma lastimável parcialidade, uma óbvia incoerência lógica e o desplante que tão bem se lhes conhece, acusam de “corporativos” os grupos profissionais que pretendem ver respeitados os seus direitos e interesses legítimos, enquanto, numa inequívoca demonstração de abuso de poder e, este sim, de ditatorial “corporativismo” colegial, estão isentos de dar satisfações a quem quer que seja. E não colhe a nefanda argumentação sofística da “eleição” popular quadrienal para se eximirem a uma prova de, no mínimo, seriedade intelectual e, para cidadãos mais exigentes, de magnanimidade. E, dado que muitos se dizem cristãos, seria bom que tivessem presente a parábola do Evangelho de Lucas, 6, 49: “E porque atentas tu no argueiro que está no olho do teu irmão e não reparas na trave que está no teu próprio olho?”.
8 Res publica é uma frase latina, composta de res + publica, significando literalmente a "coisa do povo". O termo normalmente refere-se a uma coisa que não é considerada propriedade privada, mas que é em vez disso mantida em conjunto por muitas pessoas. In Wikipéda.
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