domingo, 25 de abril de 2010

A Ciência da Polis I

Em aniversário do 25 de Abril inauguramos a publicação de um ensaio político.

Texto José Luís Maio fotografia Dina Cristo

Nenhum cidadão minimamente sensível pode deixar de lamentar o agora já visível e “instalado” agravamento das tensões que se vive generalizadamente nas relações interpessoais e nas instituições em geral, desde a política à familiar. Seja em que sector for, as desavenças e os conflitos acabam invariavelmente por tomar conta do espaço psicológico (se me é permitida esta expressão) e por levar, inclusive, a um irreversível virar de costas entre as pessoas, o que cria uma permanente e dolorosa atmosfera de animosidade, com consequências funestas para a pacificação e a harmonia do todo que é o próprio país – tal como uma única célula cancerígena acaba por contaminar todo o organismo.
E isso, essa paz e concórdia que ajudariam a construir o “paraíso” psicossocial, ninguém tem o direito de pôr em causa e de destruir, designadamente aqueles que foram mandatados para servir as populações, no seu preconceito obsoleto e demencial de separar os cidadãos, em vez de os unir em torno de ideais, projectos e programas verdadeiramente inclusivos e nacionais (ou mesmo internacionais, dada a globalização da vida que varre o planeta de lés a lés).
É fácil de compreender a analogia entre a hierarquia comum da sociedade – que podemos exemplificar através da relação existente entre a cadeia de comando de um navio, a tripulação e os passageiros – e a estrutura piramidal. Os governantes, os “timoneiros”, unidos por um propósito comum – cuja função essencial é traçar (a fase de concepção) a rota que conduza o “navio a bom porto”, através da acção da tripulação (a fase de execução), de preferência sem grandes sobressaltos, conflitos e imprevistos e de modo a evitar riscos para todos –, encontram-se no vértice, o restante pessoal, a meio e os passageiros, na base da pirâmide. Ora, estes últimos, apesar de estarem no fim dessa estrutura hierarquizada, são os principais destinatários do plano traçado pelo comando – a sua viagem e desembarque, sãos e salvos.
Valores superiores
Todos nós, portugueses, velhas almas (pois formamos a nação com as fronteiras europeias mais antigas), já temos a experiência milenar da cíclica dualidade das coisas ao longo da nossa caminhada individual e colectiva: de autonomia e de dependência, de riqueza e de pobreza, de domínio e de escravidão, de “noites repressivas” e de “dias libertadores”. Essa velha experiência também nos ensinou que os momentos “bons” prevaleceram na proporção directa do respeito pelos valores universais da Justiça, da Verdade, da Beleza e do Bem, e os “maus”, na do seu desprezo. E, finalmente, também já aprendemos que não é através da aquisição e posse desproporcionadas (desarmoniosas e desajustadas) de bens e riquezas visíveis, palpáveis, materiais, que conseguiremos conquistar a felicidade, o equilíbrio psíquico, ou a bem-aventurança.
De acordo com a ordem natural das leis da sociedade, aqui análoga às leis da natureza (ou cósmicas), são os timoneiros, os “homens do leme” (o poder político), que devem garantir, sábia e seguramente, as condições favoráveis ao surgimento daquela harmonia por meio da auto-realização dos cidadãos – do mesmo modo que é aos pais que cabe a missão de proporcionar aos filhos as condições ideais para a sua autonomia e liberdade.
Para tal, isto é, para que esses justos e dignos anseios e ideais que os cidadãos gostariam de ver manifestados e conservados no seu quotidiano, deveriam os timoneiros saber que a Justiça, a Verdade, a Beleza e o Bem existem de facto – mesmo que ainda jazam adormecidos no nosso ser mais íntimo e profundo. Mais, são estes os valores que a verdadeira essência de todos os seres humanos procura. Ora, para saber, de “ciência certa” e sem quaisquer margens para dúvida, que tais realidades existem, esses timoneiros deveriam necessariamente ter vivido com plena consciência momentos de contacto com elas (por muito breves que tivessem sido).
No entanto, o comportamento e as atitudes a que habitualmente assistimos por parte da esmagadora maioria dos nossos “timoneiros” evidencia o mais absoluto desrespeito e desprezo para com aqueles valores e realidades fundamentais. E, a continuar por essa via, acabaremos por “naufragar” ou nos despedaçar no fundo do abismo que nos ameaça na caminhada sinuosa para a evolução, alegorizada na subida ao cume da montanha da sabedoria, da fraternidade e da paz.
Quando a Justiça, a Verdade, a Beleza e o Bem verdadeiros forem uma realidade, sê-lo-á para todos, pois “justiça” só para alguns é “injustiça” para a maioria (e, em suma, para todos), “verdade” só para alguns é “falsidade” para a maioria (e, em suma, para todos), “beleza, harmonia, proporção, ordem e equilíbrio” só para alguns é “fealdade, desarmonia, desproporção, caos e desequilíbrio” para a maioria (e, em suma, para todos) e “bem” só para alguns é “mal” para a maioria (e, em suma, para todos).
É imperativo democratizar, isto é, tornar património comum de toda a humanidade, o conhecimento e a compreensão do antigo aforismo “Homem, conhece-te a ti mesmo”.
Deve-se a esse desconhecimento o facto da Humanidade viver atolada em todo o género de misérias que degradam não só as nossas naturezas física e emocional, como também a ética e a espiritual. Deve-se a esse desconhecimento a confusão entre conceitos e princípios básicos de convivência em sociedade. Por exemplo: quem, da legião de responsáveis que pululam pela “polis”, é capaz de distinguir a “tolerância” e a “permissividade”, ou a “fraternidade” e a “cumplicidade”, ou ainda a “bondade” e a “indefinição ou cobardia”, para que esteja em condições de avaliar, agir e julgar com lucidez e bom senso? Outro exemplo: quais, das figuras que definem políticas de educação – alicerce fundamental para a construção de um ser humano mais consciente, filantropo e livre –, são capazes de saber e de nos dizer “como devemos ensinar”?
Princípios (des)conhecidos
De acordo com as mais recentes correntes filosóficas, psicológicas e científicas, que curiosamente se aproximam das que regeram durante milénios as mais remotas e famosas civilizações da Antiguidade, o Homem é um ser constituído por um conjunto septenário de princípios hierarquizados, de energias físicas, anímicas e espirituais, que se distinguem, num certo sentido, pela sua frequência vibratória. Às mais elevadas – comummente chamadas espirituais – corresponde uma maior velocidade na vibração das suas “partículas” constituintes; e às mais baixas – tidas por materiais – corresponde uma menor velocidade vibratória.

Assim, facilmente saberemos que o princípio emocional do ser humano comum é mais denso, material ou “inferior” (vibra com menor frequência) do que o princípio mental. De facto, já todos vivemos situações em que os desejos, emoções e paixões egoístas, a indiferença, o desprezo, o ciúme, a inveja – isto é, estados indesejáveis que, juntamente com outros mais elevados (como o amor filial, paternal ou conjugal), formam o nosso corpo emocional – condicionam e alteram, “favorável ou desfavoravelmente”, os nossos pensamentos e juízos.
Em si mesma, a mente humana é neutra e o que a qualifica são as estruturas superiores (intuição e vontade espiritual) ou inferiores (emoções, sentimentos e paixões egoístas) que a envolvem e influenciam. À mente influenciada pela nossa natureza egoísta e separatista dá-se o nome de “mente inferior” e à mente inspirada pela nossa natureza crística, intuicional, ou búdica, unificadora, dá-se o nome de “mente superior”.
Evolução espiritual

Os indivíduos espiritualmente evoluídos (aqueles cuja consciência está polarizada ou sintonizada com a intuição, que é a capacidade sábia e amorosa de penetrar na essência das coisas, dos seres e dos fenómenos) já ultrapassaram (isto é, dominaram e sublimaram) as suas tendências inferiores egoístas, infantis e separatistas e possuem uma consciência ampla, abrangente e inclusiva – que não exclui nada nem ninguém – e amam desinteressada e universalmente todas as criaturas, expressões de Vida existentes no Cosmos. As suas elevadas consciências, adquiridas pelo esforço de terem alcançado o cimo da montanha, permitem-lhe actuar de acordo com a interconexão e interdependência de todas as realidades e de todos os seres. Tais indivíduos, posteriormente, passam a ser considerados pelos povos como seres “divinos”, pois atingiram a perfeição humana. Temos bons exemplos de tais seres: Vyasa, Krishna, Kapila, Patanjali, Shankara, Buda Gautama, Lao Tsé, Confúcio, Zoroastro, Hermes – no Oriente – e Pitágoras, Platão, Jesus, Paulo, Hipácia – no Ocidente.
Os indivíduos espiritualmente pouco desenvolvidos, pelo contrário (aqueles cuja consciência – infantil – ainda está escravizada e iludida pela sua natureza emocional e passional inferior, por fantasias, devaneios, sentimentos e paixões pessoais e egoístas), vivem exclusivamente para si mesmos ou, quanto muito, para os que lhes são mais próximos. A ausência de lucidez, de discernimento e de visão inclusiva e vasta que os caracterizam é própria de quem está situado na base da montanha e não fez qualquer esforço de aprimoramento ético (de subir essa montanha). É por isso que é habitual dizer-se que, salvo raríssimas excepções, não se é bom juiz em causa própria, pois a nossa capacidade de ajuizar justa e imparcialmente está embotada pelos nossos pensamentos primários e emoções e sentimentos animalizados e bestiais.
Uma das correntes acima referidas, a escola hilozoísta (do grego hylé = matéria, substância + zoé = vida) – que afirma que toda a matéria é viva (não havendo, pois, matéria inerte na natureza) e que nada existe que não seja dotado de vida – hierarquiza os diversos tipos de energia – como acontece por exemplo no plano físico na escala bem conhecida do teclado cósmico das vibrações de Camille Flammarion e que se manifestam como tacto, som (audição), luz (visão), radiações infravermelha e ultravioleta, raios X, raios gama… E o mesmo sucede nos demais níveis: no plano das emoções e sentimentos, no plano do pensamento (ou mental), no plano espiritual….
Por exemplo, o que distingue (elevando-a hierarquicamente) a entidade Homem da entidade Animal é a auto-consciência e a individualidade do primeiro, que ainda não actuam no segundo.
Mesmo entre os seres humanos existe uma “conquista” de estados de consciência e cada um de nós encontra-se polarizado no plano, ou nível, que o nosso percurso de vida consciente foi capaz de “desbravar” e atingir. E essa diferenciação (temporária e desprovida de preconceitos de superioridade e de sentimentos de aversão e intolerância), em acto, nunca em potência (pois o “divino” é real em todos os indivíduos), manifesta-se na idiossincrasia de cada um: não há dois seres humanos iguais e a única e essencial igualdade que os irmana é a capacidade – a potencialidade – de manifestar o Pensamento Divino, a Inteligência Cósmica, a Mente do Universo. E é a nossa liberdade de agir ou livre-arbítrio a causa que, de acordo com a verdadeira Justiça, gera as consequências correspondentes, boas ou más; conforme ensina uma velha máxima, “semeia um pensamento e colherás uma acção, semeia uma acção e colherás um hábito, semeia um hábito e colherás um carácter, semeia um carácter e colherás um destino”.
Saber para amar
Pese embora as conquistas e avanços das ciências que estudam o Homem, cujos investigadores imparciais têm feito um trabalho tão notável que, se fosse devidamente aproveitado, ajudaria a reduzir consideravelmente o caos de dor e sofrimento em que a Humanidade se encontra mergulhada, devido à falta de hierarquização dos princípios humanos, o certo é que a imensa maioria dos responsáveis políticos dos países do mundo (salvo raras e honrosas excepções) tem vivido de costas voltadas para a comunidade científica empenhada na construção de um mundo melhor para todos.
A palavra “ciência” provém do latim “scire”, que significa “sabedoria”. A Ciência Perene tem, assim, como objectivo proporcionar real sabedoria aos seus “embaixadores”, ou representantes, bem como aos seus destinatários, os estudantes. Com que fim? Será para tornar os homens mais selvagens, despóticos, desconfiados, egoístas, prisioneiros de “condomínios fechados”, insaciáveis, embrutecidos? Será para atirar mais achas para a fogueira do “inferno” em que já vivemos? Mas não sabemos todos que a ignorância gera o ódio: “… a boca que calunia dá morte à alma; a sabedoria é um espírito benevolente” (Livro da Sabedoria, do Antigo Testamento, 1.11.6)? Então será que os nossos sistemas educativos são de facto instrumentos nas mãos de ignorantes: Porque pelo fruto se conhece a árvore (Evangelho segundo Mateus, 12.33)?
A ignorância humana revela-se no caos – na desordem – em que se transformou o ser humano. Os seus direitos vitais, prioritários em relação aos de cidadão, são desrespeitados logo à nascença precisamente porque as políticas sociais de apoio às crianças não fomentam o surgimento correcto, isto é, hierarquizado, dos princípios formadores da sua individualidade integral. Por exemplo: as necessidades físicas, afectivas e intelectuais da criança não são supridas convenientemente. Tanto lhe impõem um afastamento paternal – a sua estrutura nuclear – exageradamente prematuro, privando-a assim da pedra angular que harmoniza a sua componente afectiva, como a pressionam mentalmente (através de sistemas educativos perniciosos), sem que a vertente inferior (afectivo/emocional) esteja minimamente consolidada.
Veremos, paulatinamente, que é possível – através de uma correcta compreensão e aplicação da ciência da “polis”, obtida pelo conhecimento da natureza humana – transmutar o “carvão” conspurcado pela ignorância, pelo caos, pela demência, pelo ódio, pela inacção e pelo egoísmo, no “diamante” purificado pela sabedoria, pelo discernimento, pelo bom senso, pelo amor, pela determinação e pela partilha que caracterizam todos os seres humanos, sem excepção.
Este é um trabalho “para todos e para ninguém”, como disse, na obra “Assim falava Zaratustra”, Friedrich Nietzsche; para todos os que pressentem e anseiam por um mundo melhor, em cuja construção podem participar os cidadãos, individual e colectivamente, com o que possuem de melhor e mais digno; mas para ninguém que viva iludido na presunção da sua estulta superioridade e, macaqueando a mais perniciosa das teologias, se julgue o exclusivo representante do Divino, condenando o seu rebanho acéfalo às humilhantes vias da ignorância (contra a sabedoria), da passividade (contra a acção lúcida e responsável), da reacção (contra a criatividade).
Trilogia
Todos já ouvimos falar da trindade divina das grandes religiões. Na tradição ocidental, temos “o Pai, o Filho e o Espírito Santo”, apesar da maioria de nós não compreender o que é que isso significa exactamente.
Para já, bastará dizer que essa trindade simboliza a natureza real e permanente do ser humano. Assim, o “Pai” representa o Espírito (a “Vontade espiritual” referida na tabela), enquanto o “Filho” simboliza a Alma, (a “Intuição, ou o “Amor/Sabedoria crístico ou búdico”, e o “Espírito Santo”, a “Mente superior ou abstracta, a Inteligência criadora”, ou, num certo sentido, a Personalidade, a nossa natureza condicionalmente (i)mortal. Assim, o Espírito e a Alma constituem o nosso “Eu Divino e Superior”, enquanto a Personalidade integra o nosso “Eu Inferior”.
Para conciliarmos ou fazermos corresponder esta trindade à natureza septenária discriminada no quadro, devemos raciocinar em termos matemáticos: a = Espírito; b = Alma; c = Personalidade.
Na sua interacção, esta trindade é representada por meio das seguintes relações, sendo o primeiro termo mais activo que o segundo e este preponderante em relação ao terceiro:
1 – a.b.c; 2 – a.c.b; 3 – b.a.c; 4 – b.c.a; 5 – c.a.b; 6 – c.b.a; 7 – a=b=c.
Neste último, os três termos estão equilibrados; o “eu inferior” reflecte perfeitamente o “Eu Superior”. Dito de outro modo, a “personalidade” manifesta perfeitamente o “espírito” que lhe deu vida; o ser atingiu a perfeição, sendo este o verdadeiro objectivo de todos os seres humanos, como ensinou o sábio judeu Jesus quando disse: “sede perfeitos, como o nosso ‘Pai’ é perfeito”.
O que alegadamente faz parte da teologia pertence, afinal, à mais avançada e profunda psicologia. Esta psicologia é de todos os tempos, tanto do passado, como do futuro. Os que a conhecem, ensinam e vivem em plenitude são os verdadeiros “religiosos”, ou “pontífices” (construtores de pontes para a unificação planetária livre e consciente).

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