A Ciência da Polis VII

Nesta sétima parte abordamos a importância da educação, como fundamento da consciência, virtuosismo, justiça e vontade de bem (comum).
Texto José Luís Maio fotografia Dina Cristo
“…Se a causa da decadência dos Estados deve ser buscada na incultura, isto é, na falta de sinfonia entre os apetites e a razão na alma do governante – quer seja um só, quer sejam vários-, a conclusão é que deve ser arrebatada ao homem inculto qualquer influência na direcção do Estado. E pode muito bem acontecer que, neste sentido profundo, se tenha de considerar inculto mesmo alguém que a opinião geral considere tipicamente culto: o hábil calculador de rápida percepção mental, o que sabe exprimir-se engenhosamente. Mais ainda: Platão vê nestas qualidades um certo sintoma de que o instintivo predomina em quem as possui…”(1).
São demasiado dramáticas e conducentes às mais indesejáveis consequências, quer para cada ser humano, quer para os povos, estados e nações, todas as iniciativas de abolição das fontes de sabedoria que ao longo das eras foram o suporte e o farol da grandeza das civilizações e dos indivíduos, para que continuemos a ignorar as tragédias que provocaram, a fingir que nunca existiram, ou a “branquear” a corrupção ou perversidade intrínsecas que as caracterizam. Também justificámos (citando Eclesiastes) que nada há de novo sobre a Terra (“debaixo do Sol”) que já não tivesse acontecido no passado, como exemplificaremos com a seguinte transcrição do livro de Werner Jaeger: “… Após a derrota dos Espartanos, Epaminondas” [general de Tebas dos séculos V/IV a. C., até então dominada por Esparta] “arrancou os Messénios da sua secular situação de hilotas” [escravos dos espartanos, párias] “e restituiu-os à liberdade, para deste modo provocar no Peloponeso uma discórdia interna que rematasse a obra de destruição guerreira do inimigo. Estes acontecimentos tinham por força que suscitar no coração dos partidários do espírito dórico na Grécia inteira a dúvida do que teria sido a história grega se os Estados dóricos do Peloponeso, Esparta, Argos e Messénia, em vez de se dividirem em querelas internas, se tivessem fundido numa unidade política… A causa da sua decadência não fora a falta de valentia ou de arte da guerra, como um espartano poderia pensar, mas a sua incultura (amatia) nas matérias humanas mais importantes. Para Platão é esta profunda incultura que, hoje como outrora, destrói os Estados e continuará a destruí-los também no futuro. Quem quiser saber em que consiste esta incultura será remetido ao que ficou exposto nas longas investigações sobre a essência da paidéia. Esta baseia-se na verdadeira harmonia entre os apetites e a razão. Foi por seguirem no caminho dos seus apetites, em vez de enveredarem pelo caminho designado pela razão, que aqueles Estados poderosos dóricos caíram… A crítica filosófica a que, já na República Platão submetera o espírito do Estado espartano e a educação professada em Esparta é confirmada nas Leis pela esmagadora falência daquela família de povos, assim que se encara à luz do presente a sua luta histórica pelo mais alto prémio: a hegemonia sobre os Gregos, à qual parecia destinada. É como se Platão pusesse nestas páginas termo ao combate de toda a sua vida com o problema da ideia dórica do Estado. É um desfecho trágico, e nem podia ser de outro modo. Na sua juventude, ouvira exaltar Esparta como ideal absoluto, nos círculos da oposição ateniense. Na sua maturidade, aprendeu muito daquele modelo, mas, embora o êxito de Esparta, então no apogeu da sua força, parecesse dar razão aos seus admiradores desprovidos de espírito crítico, já na República Platão apontava, profeticamente, a raiz das suas fraquezas. Quando começou a escrever as Leis, já estes defeitos eram visíveis a todos. A Platão só restava agora reconhecer que foi precisamente por não ser o melhor, isto é, por lhe faltar a verdadeira paidéia e o melhor ethos que o “segundo Estado” da República teve de sucumbir. Aqueles “reis” tinham-se deixado arrastar pelo plethos da sua alma, pela ânsia de poder e honrarias, pela pleonexia, em vez de obedecerem ao verdadeiro guia, ao espírito… Exteriormente, o Estado era dirigido, como unidade, por uma pessoa, mas interiormente era dominado pela multidão de anseios e de desejos que governavam a alma deste indivíduo. Já no Górgias era em termos semelhantes a estes que Platão comparava a forma da democracia, onde imperava a arbitrariedade da multidão, à tirania, afim a ela por essência.(2) Para expressar isso nos termos da República, era a desintegração do Estado no interior da alma do governante que assinalava a ruína do seu poder externo. É que para Platão o Estado nunca é o mero poder, mas sempre a estrutura espiritual do homem que o representa...
A segunda das sete leis herméticas, conhecida por “Lei da Correspondência ou da Analogia”, ensina-nos o seguinte: "O que está em cima é como o que está em baixo", “o que está dentro é como o que está fora”, ou “como é no grande assim é no pequeno”. Como esclarecimento, continuamos a ler: “Essa lei é importante porque nos lembra que vivemos em mais que um mundo. Vivemos nas coordenadas do espaço físico, mas também vivemos num mundo sem espaço nem tempo. A perspectiva da Terra normalmente impede-nos de enxergar outros domínios acima e abaixo de nós. A nossa atenção está tão concentrada no microcosmo que não nos apercebemos do imenso macrocosmo à nossa volta. O princípio de correspondência diz-nos que o que é verdadeiro no macrocosmo é também verdadeiro no microcosmo e vice-versa. Portanto, podemos aprender as grandes verdades do cosmo observando como elas se manifestam nas nossas próprias vidas. Por isso estudamos o universo: para aprender mais sobre nós mesmos. Na menor partícula existe toda a informação do Universo”. Ora, esta reflexão – chegada até nós desde a mais vetusta antiguidade – é partilhada por um número cada vez maior de cientistas contemporâneos.
De acordo com esta lei, se fizermos corresponder o permanente estado de guerra entre as várias cidades-estado da Grécia antiga ao estado de conflito ininterrupto entre as forças partidárias do país, facilmente conseguiremos profetizar a que exangue, “triste e vil” destino chegaremos como Estado, Nação e Povo, com as inexoráveis consequências a nível local e individual.
Se não fosse o desprezo e o ostracismo a que a esmagadora maioria dos políticos dos últimos vinte séculos votaram todo este imenso e riquíssimo manancial de informação e experiência dado por todas as formas de governo através das eras, mesmo as mais remotas, a sabedoria acumulada pela população do mundo actual seria suficiente para vermos hoje banida da face do planeta todas as fontes de misérias em que ainda estamos mergulhados.
A educação
Não se conhece o número dos agentes pedagógicos de todos os níveis e graus de ensino, do infantário à universidade, que consideram a educação como o processo de pôr os alunos a papaguear tudo o que alguns, do alto da sua infalibilidade catedrática, decidiram ser importante para a construção de um mundo melhor e para a felicidade e realização das pessoas, mas não devemos estar muito longe da realidade se dissermos que essa visão, monstruosa e iníqua, ou é partilhada pela esmagadora maioria dessa classe profissional, ou dela é cúmplice, para sua vergonha e para miséria de todos(3). De facto, se assim não fosse, exigiria antes o reconhecimento e estaria indelevelmente unida em torno do que já é feito nos raros espaços pedagógicos verdadeiramente, estes sim!, de excelência, onde vemos respeitados a divindade, a idiossincrasia, a singularidade, a dignidade, a individualidade, a vocação e os momentos próprios de maturação de cada aluno. Habituámo-nos a confundir os conceitos e as práticas conhecidos como “educação”, por um lado, e “instrução” ou “ensino”, por outro. É compreensível que assim seja, dada a interacção ou penetração de uma na outra, ou mesmo a sinonímia com que por vezes se reflectem no destinatário.
Segundo as Leis, de Platão, a educação “consiste na formação correcta que mais intensamente atrai a alma da criança, durante a brincadeira, para o amor daquela actividade, da qual, ao tornar-se adulto, terá que deter perfeito domínio”. Mas, logo a seguir, completa o filósofo: “…Mas é imperioso que não deixemos que a nossa definição de educação permaneça vaga, pois actualmente quando censuramos ou elogiamos a formação de um indivíduo, definimos um como educado e um outro como não-educado, a despeito deste último ser extraordinariamente bem educado no comércio… ou como piloto de uma embarcação… A educação a que nos referimos é o treino desde a infância na virtude, o que torna o indivíduo entusiasticamente desejoso de se converter num cidadão perfeito, o qual possui a compreensão tanto de governar como a de ser governado com justiça… Seria vulgar, servil e inteiramente indigno chamar educação a uma formação que visa somente à aquisição de dinheiro, vigor físico ou mesmo de alguma habilidade mental destituída de sabedoria e justiça…”.
No trabalho A Ciência da Polis V analisámos o significado do conceito “educação”. Sinteticamente, talvez possamos dizer que a educação processa-se de dentro para fora, enquanto a instrução ou ensino processa-se de fora para dentro. Isto é, através do processo educativo, o educando aprende a exteriorizar tudo o que guarda no seu interior – após uma fase de reflexão, interiorização e maturação – e havia adquirido em processo de aprendizagem numa fase anterior, de instrução ou ensino, por meio de um agente – progenitor ou tutor, professor, instrutor, etc., “de fora” (vindo do professor, tutor, etc.) “para dentro” (para a sua mente) –, de acordo com a sua particular vocação e, assim, capacitando-o a relacionar-se com o mundo (interno e externo, isto é, consigo mesmo e com os demais) e a servi-lo. A função essencial do “educador” é estimular o “educando” a exteriorizar o que o caracteriza e define como “ser humano” ou “indivíduo” num determinado momento do seu desenvolvimento global, ou numa fase particular e concreta do vasto processo de consciencialização da sua real natureza.
Neste sentido, tanto a instrução como a educação verdadeiras (baseadas em leis perfeitas e rigorosas, nunca arbitrárias ou caóticas) têm como alvo o despertar da “alma humana” ou “individualidade” (a mente superior ou abstracta, filosófica, reflexo da alma espiritual, ou amor/sabedoria, e do espírito individual, ou vontade de bem) do ser humano, de modo que a consciência se aproxime progressivamente da sua “natureza divina”. O ensino, a instrução, dá-nos a informação, o conhecimento, que permite que nos conheçamos a nós mesmos e a tudo o que nos rodeia; a educação permite-nos expressar e transmitir a consciência (o carácter) já conquistada. Ora, para que as qualidades da alma – no início em potência – sejam despertadas e trazidas à actividade – transformadas em acto –, é imperioso que comecemos por “sensibilizar”, ou “activar”, de forma correcta a estrutura que sustenta e serve de habitação a essa mesma alma, que é a “personalidade” (a mente inferior, concreta e prática, e os seus veículos ou instrumentos) – o “corpo” na terminologia ocidental comum, ou o “quaternário inferior” já referido anteriormente. Este método não soará estranho a ninguém, pois a velha máxima latina “mens sana in corpore sano” (mente sã em corpo são) é sobejamente conhecida de todos. A velha sabedoria grega recomendava que todas as crianças tivessem ginástica e música, o mais cedo possível, para serem saudáveis de corpo e alma, respectivamente. Porém, o que é que temos hoje, 2.500 anos depois, nos infantários e escolas pré-primárias e do 1.º ciclo portugueses? Continuaremos a dizer, depois disto, que é por azar ou castigo divino que somos maioritariamente um povo doente e inculto?
Toda a educação, no sentido de “paideia”, ou formação físico-anímico-espiritual da trindade humana “personalidade-alma-espírito, pressupõe um processo dialéctico de “recepção/emissão, “passividade/actividade”, regular e constante (não esporádico e ocasional), de modo a que a criança se familiarize a pouco e pouco com o hábito de contribuir, alegre, activa e lucidamente, para o bem do todo local, nacional e mundial. No entanto, os nossos espaços pedagógicos encontram-se entregues à mais mórbida letargia, à mais profunda passividade, ao mais retrógrado imobilismo físico, moral e intelectual.
Ainda nas Leis, aprendemos que é o próprio recém-nascido que emite os sinais e as indicações necessários à reaquisição do seu bem-estar e tranquilidade: “Toda a criatura recém-nascida – e a criatura humana especialmente – costuma emitir gritos; e mais, a criança vai além dos berros e geralmente põe-se a chorar…, certamente sinais que não são de felicidade. Este período da infância dura não menos que três anos, o que não constitui pouco tempo para se viver mal ou bem…”.
Adicionalmente, no pensamento, acção e obra do eminente pedagogo, pedopsiquiatra e psicanalista infantil do nosso tempo, João dos Santos, está presente a conclusão de que toda a criança, com uma educação normal, tem a capacidade de se auto-reprimir: “A criança que vive em liberdade, mas no enquadramento social humano, sente necessidade de se reprimir. A criança exige do adulto que a ajude a reprimir-se, para encontrar a segurança necessária ao seu desenvolvimento humano, à sua ânsia de atingir, igualar ou ultrapassar os adultos”.
Por outro lado, da falta de uma educação correcta nada de bom poderemos esperar. Voltemos às Leis: Toda a alma submetida ao medo desde a juventude tenderá de modo particular a tornar-se receosa, o que, todos concordarão, abre caminho para a prática da cobardia e não da coragem… A vida indolente desenvolve nas crianças um humor melancólico, tendente à cólera e muito facilmente movido pelas ninharias; por outro lado, o rigor extremo e rude a ponto de reduzi-las a uma escravização cruel torna-as vis, mesquinhas e misantrópicas e assim insociáveis… Supõe que tentássemos assegurar mediante todos os meios disponíveis que as nossas crianças de peito provassem o mínimo possível de aflição, medo ou sofrimento de qualquer espécie. Não seria de se acreditar que graças a esse meio a alma do lactente ganharia mais luz e leveza?... a vida acertada não deve nem visar (exclusivamente) aos prazeres nem se esquivar inteiramente às dores, devendo sim encerrar aquele estado intermediário de leveza, o qual é a condição da própria divindade. E sustento que quem quer que seja de entre nós que fosse divino teria que buscar esse estado de alma, nem se tornando absolutamente inclinado aos prazeres, mesmo porque com isto não estaria livre da dor, nem permitindo que nenhuma outra pessoa, velha ou jovem, homem ou mulher, ficasse nessa condição e muito menos, na medida do possível, o bebé recém-nascido, pois devido à força do hábito é na infância que todo o carácter é mais efectivamente determinado…”.
Face a tais provas e evidências, que remontam a um passado longínquo, teremos ainda o atrevimento de considerar as gerações mais novas as únicas e principais responsáveis pelos vícios que as corroem e destroem? Não será antes a incapacidade ou falta de preparação das gerações anteriores – no caso português as que atingiram a maioridade no e pós-25 de Abril e que voltaram a deixar-se enredar nas malhas (cada vez mais insidiosas) do obscurantismo teológico/político idêntico ao do antes-25 de Abril?
No nosso caso, faltaram lamentavelmente aos ideólogos e operacionais da Revolução dos Cravos as indispensáveis qualidades do lúcido Amor/Sabedoria e da intuitiva e determinada Vontade de Bem, a reger a sua nobre – porém ingénua, inexperiente, apaixonada e impetuosa – consciência. Talvez tenhamos aqui uma prova da existência do predomínio da natureza kama-manásica (ou da mente inferior, inerente à personalidade) sobre a consciência destes homens corajosos: foi provavelmente o medo de serem considerados ditadores se conservassem o poder conquistado por um impulso ou motivação digno que os levou a entregá-lo de “mão beijada” à avidez caótica e imatura dos partidos políticos, fonte desgovernada da cada vez mais caracteristicamente ocidental democracia dos medíocres, usurpadores e gananciosos provindos da mole anónima do tirânico demo, conforme profetizou o “divino” Platão.
(1) Werner Jaeger, in Paideia, A formação do homem grego.(2) Os líderes populares nas democracias são equiparados aos tiranos, Górg., 466 D e 467 A. O demos” [actualmente entendido como ‘multidões incultas manipuladas pelos demagogos’] “é um tirano a quem se têm de adaptar todos os cidadãos e principalmente todos os políticos, tal qual nos Estados despoticamente governados por um tirano… É evidente, porém, que Platão fala aqui de uma democracia que tenha degenerado num governo pela populaça. No Político distingue uma forma boa e outra má de democracia, tal como qualquer outra forma de governo pode ser boa ou má.(3) A incompetência atinge o paroxismo quando vemos muitos dos próprios docentes universitários transformados em meros e fastidiosos “ecos” dos apontamentos relativos às matérias que leccionam, limitando-se a repetir ipsis verbis nas aulas o que está escrito, como se os estudantes não soubessem ler!
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