Ser e não ser
A uns passos de fazer 80 anos, recuperamos uma das mais conhecidas obras de Stuart Hall.
Texto Dina Cristo
A actual crise de identidade é um reflexo do processo de transformação que a afecta. Nas sociedades mais tradicionais e fechadas, que veneravam o passado e valorizavam os símbolos, a identificação era dada ao povo, à tribo, à religião e à região. Aqui o lugar coincidia com o espaço onde decorriam as actividades, a vida social, em presença dos indivíduos. Entretanto, com o colapso da ordem medieval, da relação com Deus mediada pela Igreja, da sociedade hierárquica e do feudalismo, surge uma nova concepção de identidade.
O sujeito do Iluminismo, o indivíduo dotado de razão, possui um núcleo interno, inato, que constitui a sua identidade. O seu “eu real” é essa essência interior, um centro que lhe permite ser soberano, autónomo, auto-suficiente e ter uma identidade fixa, permanente, estável e segura. O indivíduo é, e por isso está, totalmente centrado, unificado, completo. Ele é indivisível, singular, único, distinto, individual. Com a sua substância mental, ele é o sujeito pensante e consciente de René Descartes (“Cogito, ergo sum”), correspondente à mesma identidade permanente de Locke ou às mónadas de Leibniz, existência primária e inicial do indivíduo da qual derivavam as diferentes leis ou formas de sociedade.
Depois do séc. XIX, emerge uma dimensão mais social do indivíduo. Em termos de Teoria Social são significativos os contributos de Karl Marx, ao centrar-se nas relações sociais (como os modos de produção), de Freud ao enfatizar a identidade como um processo que é formado em negociações psíquicas inconscientes na relação com os outros, de Ferdinand de Saussure ao sublinhar que a língua é um sistema social, com premissas convencionadas e regas pré-existentes, de Michel Foucault ao mostrar o poder disciplinar, com as suas técnicas de poder e saber (como a burocratização e a especialização), que controlam e regulam o sujeito(1), bem como o impacto dos movimentos sociais dos anos 60, reflectindo o fim da política de identidade (de classe) e a emergência de uma política de diferença (consoante o género, a raça, a etnia ou a nacionalidade).
Com a industrialização [e o êxodo rural] a sociedade torna-se mais colectiva e complexa. O indivíduo aparece isolado, anónimo, impessoal, exilado e alienado na multidão [Gabriel Tarde], mais definido no seio das grandes estruturas, da grande massa, do Estado-Nação. A Sociologia estuda-o enquanto ser social, participando em relações sociais, mais amplas, localizado em normas colectivas, com reciprocidade entre o “interior” e o “exterior”.
Com estas condições, surge o segundo conceito de identidade: o do sujeito sociológico em que deixa de haver uma essência universal, como no Iluminismo, e o núcleo passa a ser formado na interacção social, entre o eu pessoal, interior, dos sentimentos subjectivos, e o eu público, exterior, dos lugares objectivos ocupados, projectando, por um lado, e internalizando, por outro. Ao ligar o sujeito à estrutura social estabiliza-o, torna-o previsível, embora o processo de identidade, agora definido socialmente, seja mais provisório e variável do que na era pré-moderna.
Ma modernidade, uma das formas mais eficazes de unificação das identidades, de costurar as diferenças numa identidade única, é através da cultura nacional. Ela é o mínimo denominador comum, o ponto de união mas também uma estrutura de exercício de poder. Stuart Hall refere os começos violentos das nações, ao suprimirem pela força as diferenças culturais - línguas, costumes, tradições, etnias, grupos e classes diferenciadas – impondo, hegemonicamente, a uniformização e a colonização, nomeadamente através de uma língua vernácula como meio dominante de comunicação.
A identidade nacional, cultural e política, generalizada é pois o resultado de uma falsa representação, da construção de uma narrativa estratégica, regressiva e imaginada, produzindo sentidos à volta dos mitos fundacionais, da ideia de um povo primordial, original e puro, com ênfase na origem, na intemporalidade, na tradição, na herança, na continuidade, conectando as vidas individuais quotidianas ao destino nacional.
Estas identidades nacionais estão, contudo, em descontinuidade e em ruptura. Depois de homogeneizadas, instituídas e centralizadas, sobrepostas a outras fontes mais particulares, as sociedades modernas, em permanente mudança, rápida, abrangente e profunda, em extensão e em intensidade, com as práticas sociais constantemente reflectidas, examinadas e reformuladas, à luz das informações recebidas, encontram-se cada vez mais descentradas e deslocadas.
Desde o fim do séc.XX que a globalização está a afectar as indústrias culturais nacionais. O processo atravessa fronteiras nacionais, aumentando a integração e acelerando os laços e fluxos entre comunidades cada vez mais interdependentes (ao nível económico e ecológico) tornando - com a compressão do espaço, que se sente encolher, e do tempo, a encurtar-se - o mundo menor e a ideia de sociedade mais (de)limitada.
Com a vida social mais mediada pelo mercado global e pelos “media”, as identidades nacionais tornam-se mais expostas a influências externas, mais abertas ao “bombardeamento” e infiltração cultural. Ao mesmo tempo que se confrontam com diferentes identidades possíveis, desvinculam-se de um tempo e lugar específico, conhecido e familiar, onde as práticas sociais se concretizavam, face-a-face, e onde nascia a raiz da identidade. Este lugar tradicional separa-se do espaço de criação de possibilidades de “identidades partilhadas” entre pessoas muito distantes, em relacionamentos com outros “ausentes”.
Os movimentos sociais dos anos 60 e mais recentemente o caso de Clarence Thomas reflectiram a mudança da política de identidade, baseada na classe, para uma política da diferença, como as feministas, os negros, os liberais ou os ecologistas. Uma pluralidade, multiplicidade, divisão e fragmentação de identidades, que se cruzam, contradizem ou deslocam, nem sempre conciliáveis e ampliadas pelas estruturas simbólicas.
Este pós-moderno global, com uma ênfase no efémero e na diferença a uma escala planetária, abre, enfraquece, torna instável e insegura, apaga, desmorona, desagrega e destrói as identidades nacionais, antes coerentes e inteiras, mas sem as homogeneizar completamente, dado o fascínio pela diferenciação local, a desigual distribuição da globalização e o desequilíbrio de fluxo. A dissolução de fronteiras e barreiras torna o encontro com o “Outro” mais imediato e intenso, a periferia colonizada que continua, mais do que nunca, aberta à influência dos produtos e modos de vida ocidental.
Em resultado da eficácia da mensagem, do fascínio pelo Ocidente, têm ocorrido cada vez mais, continuamente e em larga escala, movimentos de migração para a Europa, com a correspondente formação de “enclaves” minoritários, promovendo a mistura étnica e a multiplicação de culturas. A reacção que provocam, de racismo cultural nos países para os quais emigram, leva-os muitas vezes a recuar às culturas de origem e a reviver o tradicionalismo cultural e a ortodoxia religiosa. Estas minorias ambicionam, como no caso dos separatistas, criar novos Estados-Nação, num momento de dissolução das soberanias nacionais. Uma vontade de retorno à etnia mas agora à volta de comunidades flexíveis e livres de sanção.
Assim, o nacionalismo também permanece para além do retorno à tradição, ao particular, à diferença, e do impulso para a unificação, a universalidade, o comum. Um sinal da variedade de novas identidades surgidas na sequência do aumento da contestação às identidades fechadas, do questionamento da tradição, agora reinterpretada. Trata-se de novas posições de identidade, cujos campos se alargam e se polarizam, oscilando entre a Tradição, a Tradução e a Transição.
A Tradição defende o absolutismo étnico, o retorno às raízes, ao local, à recuperação da pureza, da essência, da unidade e da trans-historiedade anteriores, a restauração do fechamento, da segurança e da coesão. É de carácter exclusivista e tem como exemplos os nacionalismos ocidentais, com os movimentos políticos extremistas, e os fundamentalismos orientais.
A Tradução defende que é difícil voltar à pureza e unidade originais, aceita o plano da história, política, representação e diferença ao qual as identidades estão sujeitas e o desaparecimento pela assimilação ou homogeneização. É a defesa do relativismo étnico, do desapego, do global e universal.
A Transição é a síntese de ambas, entre as quais se suspende. Ao mesmo tempo que retira recursos das tradições culturais é ela própria um produto de cruzamentos culturais cada vez mais comuns. É o hibridismo, de quem emigrou e transporta duas identidades, que negoceia, sem se assimilar por completo mas também sem a ilusão de voltar ao passado. Representa o sincretismo cultural, a fusão entre diferentes culturas, que combina e reúne como, afirmou Salmon Rashdie “(…) uma canção de amor para nossos cruzados eus”(2).
(1) «(…) quanto mais colectiva e organizada a natureza das instituições da modernidade tardia, maior o isolamento, a vigilância e a individualização do sujeito individual», HALL, Stuart – A identidade cultural na pós-modernidade. D&A Ed. pág. p.43. (2) Idem, pág.92.
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