Jornalismo Social

Na conferência sobre “Informação Solidária” esteve presente Henrique Pinto. O director da Associação Cais despertou consciências e apelou a um choque ético. É preciso que os problemas sociais deixem de ser notícias de mero lazer e estas passem a servir (para) a sua resolução. Que se noticie também actos de fraternidade - uma participação social, resultado da compreensão da interdependência social. Para tal, disse, é indispensável auto-crítica e liberdade.
Texto Henrique Pinto Fotografia Maria Inês Ramos
Texto Henrique Pinto Fotografia Maria Inês Ramos
Num artigo sobre Heidegger e Foucault, Leslie Paul Thiele escreve que a filosofia política investiga, entre outros objectos, as “formas pelas quais a nossa compreensão das coisas afectam ou deviam afectar a nossa participação na vida colectiva,”
[1] assim como as práticas pelas quais a nossa vida, em sociedade, molda e define a nossa concepção da realidade. Neste ensaio, Leslie sublinha que o nosso modo de agir para com os outros, e a forma como conferimos uma ordem ao mundo, depende, em larga medida, da ideia que fazemos de nós mesmos. Por isso, a resposta à pergunta sobre quem somos hoje, ligada ao desenvolvimento histórico das verdades e instituições que moldaram a nossa identidade e percepção do mundo, não pode deixar de reclamar, necessariamente, uma investigação ontológica e uma análise genealógica (socio-política) das mesmas.
Ao terem eles mesmos ousado fazer este caminho, e ao descobrirem o quão a nossa apreensão das coisas vive profundamente marcada pela nossa finitude e limites históricos, Heidegger e Foucault sugerem um exercício ético, [a que podemos chamar, pelo lado de Heidegger, de phronesis (prudência), e de askesis, pelo de Foucault, - uma crítica constante de nós próprios, também entendida como estética da resistência-], como atitude ou forma de governo da nossa interdependência ou do nosso ser-com-os-outros. Assim, na afirmação do phronetic individual (como lhe chama Joseph Dunne, ao reflectir sobre os gregos da antiguidade), ou diante da impossibilidade de possuirmos uma imagem absoluta de nós mesmos (pois o que somos resulta do nosso agir, de um exercício onde o eu não só não é soberano como se revela uma rede de forças, ligada por relações de interdependência), a nossa compreensão das coisas impõe-se como um questionamento céptico, isto é, sempre duvidoso, crítico e aberto (skepsis) e de relações não dominadoras, mas de cuidados recíprocos. Aliás, este cuidado que nos devemos uns aos outros, hoje também traduzido por responsabilidade social, é o que esta interdependência reivindica, num lugar público, precisamente o da polis, onde o político não tem outra missão que garantir esta relação de cuidado entre seres.
Neste contexto de interdependência socio-política, não há dúvida que a questão do impacto de uma notícia, com vista à solução dos problemas sociais, bem como o da sua divulgação, face aos interesses comerciais dos órgãos de comunicação social, se ligam a uma particular concepção de nós mesmos, sendo a forma que os manifestam, representação do pensar e agir que dela advém, e da intervenção política que a inicia e salvaguarda. Por isso, os resultados obtidos com a divulgação de uma notícia, ou a preferência de uma em detrimento de outra, não dependem apenas da força que um particular assunto possa transportar dentro de si, mas da maneira como se concebem e se pensam, em relação aos outros, tanto os que fazem como os que recebem a comunicação.
O homem destino dos Media
Não é possível fazer aqui uma análise exaustiva e o mais adequada possível sobre o lugar do outro na nossa história, mas é claro o estado de hostilidade subjacente à gestão do nosso ser-com-os-outros.
A conquista e o controlo de tudo o que existe, como projectos da modernidade, perseguidos através do uso instrumental da razão e da afirmação da autonomia humana, não têm gerado outra coisa, que uma recíproca instrumentalização de nós mesmos, tornando o ser humano, no geral, não num prestador de cuidados, mas num tecnólogo. A velocidade, a eficiência, a mobilidade, a perspicácia, a versatilidade, a agilidade e o rigor a que cada um se obriga ou é obrigado, entende superar o tempo, aquele mesmo tempo indispensável, na filosofia Heideggeriana, à realização do ser-no-mundo, antecipando assim, por um lado, o que talvez, quem sabe, fizesse mais sentido viver-se, lá mais à frente, num futuro, ainda que próximo, e erguendo, por outro, sobre o poder conquistado e o seu gozo, o domínio inebriado de uns sobre os outros.
ZZT, uma expressão gráfica, utilizada entre nós, por uma marca, não há muito tempo, para falar da ADSL de banda larga, traduz bastante bem esta ideia megalómana de ser, de estar, de chegar primeiro e de dominar, e não deixa de ser consequente, face a esta correria, que as deficiências motoras e mentais, assim como as múltiplas situações de pobreza, exclusão, e de risco, se encarem com um: “olha, azar o teu”, ou com total apatia.
Sublinho, a propósito dos Media, que o nosso jornalismo, muito pouco preparado sobre grande número de questões, que o carácter de diversão ou o consumo sensacionalista da informação, ligado à curiosidade com vista à murmuração e à aquisição de conhecimentos esvaziados de compaixão e justiça, e que a substituição, noutros casos, da notícia pela pessoa que a divulga, não só reduzem a história humana a um patético reality show, como têm velado ou até feito desaparecer as razões pelas quais os Media nunca se poderiam calar, se existissem alicerçados numa ética resultante da relacionalidade e interdependência do existir.
Mas há também quem, em nome de vários credos e princípios internacionais, defenda e exija a sua resolução, coagindo os flagelos sociais mais insólitos a uma transformação, que permita, aos que os manifestam no corpo, ser e crescer segundo um modelo comum, tornando-os, assim, aptos para a corrida da vida. Nestes processos, pessoas com variadíssimas deficiências motoras são, muitas vezes, adestradas a revelar o que são e valem, em iniciativas pensadas para pessoas sem este tipo de dificuldades. Os amputados africanos, porém, não têm que necessariamente jogar futebol, como as pessoas em cadeiras de rodas não têm que forçosamente jogar basquete ou dar-se a conhecer, como manequins, em desfiles, como o que foi erguido na primeira Feira Social de Lisboa.
Por um choque ético
O choque tecnológico, tão debatido pelo actual governo, como estratégia de superação de problemas, tais como o desemprego e a medíocre produtividade e competitividade dos portugueses, parece tratar-se apenas de um investimento ao nível do hard e softwear, sem que pareça muito interessado ou entenda reflectir o nosso actual sistema operativo. Portugal continua a viver-se de forma pouco crítica, o que significa que as ocupações diárias se reduzem, habitualmente, a tarefas de gestão/manutenção e, nalguns casos, a momentos de encontro e de aprendizagem sobre os mais recentes e sofisticados equipamentos e programas, ficando quase sempre por pensar o episteme sobre o qual se alicerçam as práticas, os costumes e as diferentes formas de utilização dos instrumentos, com os quais interagimos com os outros e o mundo à nossa volta.
O que pretendo dizer com isto é que, até que não se reflicta crítica e constantemente a nossa interdependência, a sociedade continuará preocupada em produzir mais tecnólogos, para quem a fragilidade dos outros não passará de uma bad luck, e sem que a sua abordagem, quando acontece, se traduza em prioridade das prioridades, quer no governo individual como de grupo. Neste sentido, as notícias relativas a problemáticas sociais continuarão a ter um público que mais não dirá que, “coitados”, (havendo sempre alguém, certamente, que também responderá, com generosidade, a situações de emergência, e decisores políticos que se defenderão, dizendo, que a riqueza não estica), assim como os interesses comerciais continuarão a exibir o circo e a comédia que o público adora ler, ver e comentar, ficando o retrato crítico e permanente de nós mesmos fora dos prime times and spaces, quando não eternamente adiado ou ignorado. Face ao que acabo de referir, será certamente dever dos Media comunicar de forma a promover e salvaguardar, acima de todo o interesse, a dignidade de cada ser humano, mas não deixa de ser também seu dever educar para uma concepção crítica da nossa história presente.
O filósofo francês, Michel Foucault, costumava dizer que toda a escrita que não tivesse o carácter de luta não valia a pena. Assim, ao afirmar estas ideias, o que proponho não é o exercício de uma comunicação subordinada a um horizonte ideológico, mas um ethos, uma relação crítica e dialogante com o mundo, que vai além da notícia pela notícia, ao sugerir, de forma clara e nas entrelinhas, a liberdade como percurso ético de realização pessoal e social.
(1) Leslie Paul, Thiele, “The Ethics and Politics of Narrative: Heidegger + Foucault”, in Alan Milchman and Alan Rosenberg (editors), Foucault and Heidegger – Critical Encounters, USA: The University of Minnesota Press, 2003, p. 209.
Etiquetas: Henrique Pinto, Jornalismo