(Des)ordem social
Qual a liberdade de acção individual dentro de uma estrutura sócio-política, como a do Estado democrático? Respondemos, em pleno 25 de Abril, recorrendo ao pensamento clássico*.
Texto e fotografia Dina Cristo
A Teoria Social Clássica é um comentário crítico e pós-renascentista ao mundo moderno, às tendências sociais de longa duração do séc.XIX, altura em que se formou, após as novas condições, de expansão económica e liberdade política, decorrentes da Revolução Francesa e da Revolução Industrial.
A mudança social ocorrida com a modernidade deu-lhe, agora autonomizada da Filosofia (política e social) e diferenciada das Ciências Naturais, temas como o capitalismo, o mercado, a industrialização, a urbanização, a divisão do trabalho, a racionalização, a burocracia, a democratização, a individualização, a secularização ou a imigração. Vários destes e de outros assuntos, como a família, o sistema educativo, a linguagem ou a etnicidade, são investigados enquanto instituições sociais.
Entre os principais problemas estudados estão a “estrutura” - força externa que determina a vida dos indivíduos, correspondente aos constrangimentos, económicos, segundo Marx, morais, segundo Durkheim, e políticos, segundo Tocqueville - e a “acção” - esfera de actuação dos actores sociais, onde fazem as suas escolhas, de forma mais livre e autónoma.
Karl Marx, ao criticar o idealismo alemão, enfatiza a importância da infra-estrutura, a base material, económica, prática, a acção, onde teria lugar a luta de classes por forma a atingir a harmonia social e ultrapassar o conflito, proveniente dos direitos de propriedade privada, próprios do modo de produção capitalista, com interesses oponentes entre capitalistas e assalariados, que incluía meios de produção concentrados e relações sociais de produção (de exploração).
Por seu lado, Émile Durkheim enfatiza a super-estrutura, normativa, das ideias e ideais – facto social capaz de exercer constrangimento externo sobre o indivíduo. É o caso da solidariedade social, que implica um sentido de obrigação moral, reflectido na lei, dominante embora apetecida, que regula e molda a acção social.
Quer seja mecânica - como nas sociedades mais tradicionais, unidas pela semelhança, laços de parentesco e vizinhança, com um nível mais intenso e “natural” de relação social, tendo em vista o conformismo gerado pela organização legal repressiva – quer seja orgânica – com nas sociedades mais modernas, unidas pela diferença e pela interdependência gerada pela divisão do trabalho social, a especialização, com uma organização legal restitutiva, reconhecendo o direito à equidade – a solidariedade social possibilita o terceiro problema mais estudado: a ordem, a estabilidade social.
Enquanto que para Durkheim, a diferenciação individual, própria da modernidade, mantém a sociedade unificada, através da divisão do trabalho, que liga e entrelaça os diversos indivíduos, para Max Weber responsabiliza o actor individual, o sujeito cognoscente, pelas suas escolhas, já que o sentido da sua acção é, agora, construído segundo diferentes percepções subjectivas, pontos de vista, valores e interesses, quer ideias quer materiais, pessoais, embora cada vez mais dominados pela burocracia, racionalização e calculismo, criando um mundo, autêntica “gaiola de ferro”, gerador de desencantamento.
Ao contrário da acção utilitarista e estratégica, com objectivos planeados, em que os meios (nomeadamente técnicos) substituem os fins humanos, Max Weber observou como a actuação humana tem consequências involuntárias e dela resultam instituições e uma estrutura, como foi o caso da auto-disciplina e responsabilidade moral protestante que, sem intenção, deu lugar à vocação empresarial e ao capitalismo. O autor, combinou, assim, a consciência subjectiva e o interesse material, reintegrando a estrutura e a acção na vida social, através, não do poder, coercivo, mas, da dominação legítima, com acordo voluntário.
Já anteriormente Alexis de Tocqueville havia notado que a liberdade individual fora ameaçada pelo Estado democrático moderno, totalizador e centralizador, com poder, extremo, total, monopolizador, ubíquo e omnipotente, sobre o território nacional, garantido na lei, regra que limita a vida. Um poder despótico, absolutizante, baseado na massificação e na racionalização, eliminador dos vestígios das soberanias fragmentadas do feudalismo e da aristocracia, autoridade tradicional dispersa, durante o Antigo Regime, pré-revolucionário. O impacto da centralização governamental e da dominação burocrática pode, no entanto, segundo Tocqueville, ser controlado e limitado através da participação política, associativismo e independência do sistema judicial.
Georg Simmel, ao colocar a ênfase no consumo, como expressão da sensibilidade individual, faz a ponte entre a Teoria Social do Velho Continente, focada nas macro-estruturas, como a classe e o estatuto, e a do Novo Continente, que privilegia o Eu secularizado, construído e desenvolvido no âmbito das expectativas e enquadramento social, tal como estudado por Herbert Mead.
Uma sociedade civil, cada vez mais plural e complexa, onde o indivíduo socializado é capaz, mesmo numa economia monetária e na vida urbana atomizadora e impessoal, de criar espaços de relacionamento social e de lazer, com interacção social, (in)visível e (in)formal, reciprocidade e (sub)culturas urbanas, estudadas por Robert Park da Escola de Chicago é, pois, o contributo da Teoria Social americana - surgida no final do séc.XIX, para inovar a agenda da Teoria Social clássica – sem, contudo, as suas investigações, mais empíricas, terem conseguido, ao contrário das europeias, articular a estrutura colectiva, de base política, cultural, legal e religiosa, com a acção pessoal.
Robert Holton defende que a vida social é baseada em causas múltiplas (como afirmava Weber), constitui uma estrutura organizada (a entidade supra-orgânica, de que falava Durkheim) simultaneamente aberta à acção dos agentes sociais, que a reconstroem e restruturam.
Apesar de analisar os méritos e limitações de vários autores, Holton defende que há, ainda por superar, um défice de investigação dos principais problemas sociais, a um nível que vá além da visão europeia e americana, do género masculino e do âmbito racional.
Apesar de analisar os méritos e limitações de vários autores, Holton defende que há, ainda por superar, um défice de investigação dos principais problemas sociais, a um nível que vá além da visão europeia e americana, do género masculino e do âmbito racional.
* HOLTON, Robert – Teoria Social Clássica, Cap. 1, in TURNER, Bryan - Teoria Social, Difel, pág. 23-50.
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