domingo, 25 de julho de 2010

A Ciência da Polis IV



Hoje - quando festejamos exactamente três anos de existência - publicamos a quarta parte do habitual ensaio mensal, com sugestões para a elaboração de um Código Deontológico Político.

Texto José Luís Maio fotografia Dina Cristo

Não há necessidade de se recorrer à explicação exaustiva da constituição interna ou oculta do ser humano para se compreender que a actividade política deverá ser lúcida e esclarecida para que possa cumprir os seus reais desígnios, pois afigura-se demasiado óbvio que os níveis superiores (porque eternos) de consciência – 1.vontade espiritual, 2.intuição (ou amor/sabedoria búdico ou crístico) e 3.mente superior ou abstracta - ou 1.atma, 2.buddhi e 3.manas – estimulam-nos, na nossa acção concreta, para o Bem Comum e para a Unidade (a unanimidade livre e consciente, não o unanimismo) entre os homens, enquanto que os níveis inferiores (porque efémeros) de consciência, pelo contrário, induzem-nos à concretização egoísta dos nossos desejos, interesses e caprichos mesquinhos, nem que daí resulte prejuízo para os demais.
Seja-me permitido fazer aqui uma pequena observação a respeito do conceito “intuição”. A maioria dos indivíduos que utilizam no seu discurso esta palavra, nomeadamente os nossos agentes políticos e a “elite” social, económica e financeira, usam e abusam desta palavra sem fazer a menor ideia do seu real significado. Para eles, a intuição confunde-se com palpite, pressentimento, presságio. Ora, a estes conceitos está subjacente o nosso quarto princípio, o duplo emocional-mental inferior (kama-manas na terminologia sânscrita), de natureza egoísta e pessoal. Assim, um pressentimento possui quase sempre a influência egocêntrica ou individualista do nosso eu mortal, também chamada personalidade (de persona, a máscara que os actores gregos usavam nas suas peças), ou quaternário inferior.
A intuição [dos étimos tueri (ver) e in (em, dentro), isto é, acção de ver directamente, ou dentro de], pelo contrário, “permite apreender, por comunicação directa, a verdade ou natureza íntima dos seres, dos fenómenos, das situações ou das coisas, e vivenciar um amor transpessoal, desinteressado, inegoísta e dirigido ao Todo em cada uma das suas partes – e não apenas a algumas partes ou pessoas”. Assim facilmente compreenderemos por que se chamou “Cristo” a Jesus e “Buda” a Siddartha Gautama; é que eles, por esforço individual, adquiriram, no seu percurso evolutivo, a “consciência crística, búdica ou intuitiva”.
Assim, “os partidarismos sectários” deverão estar ausentes dessa tão nobre e digna actividade, pois, os agentes políticos, deixando-se conduzir por um “emocionalismo cego”, arriscam-se a ficar com a sua razão lúcida (a “razão pura” kantiana, intuição) gravemente toldada e afectada.
Para tal, na ausência de uma urgente e lúcida politica educativa e visto que ninguém nem nenhuma instituição suprapartidária – uma analogia da “selecção nacional” da política – detém legitimidade para avaliar e fazer cumprir os objectivos (programas) que os representantes dos eleitores submeteram a sufrágio nas campanhas, parece fazer sentido instituir-se uma espécie de Código Deontológico do Político.
Será fácil descobrir uma fórmula que vincule os seus destinatários, os agentes políticos de facto empenhados em servir o Bem Comum, pois é a Lei do Sacrifício (dos étimos “sacro” e “ofício”, ou “trabalho sagrado”, que nada tem a ver com a criminosa Inquisição, o “Santo Ofício”) que deve reger os sujeitos da actividade política; e a resistência de alguns denunciaria imediatamente o egoísmo, o mercenarismo, o oportunismo, ou o dolo a que ainda estão escravizados: “…Os políticos deveriam encarar o seu trabalho, estritamente, como um esforço altruísta e desinteressado – abdicando (sacrificando), pois, das conveniências, comodismos e vaidades pessoais, em prol do contributo para o Bem Comum” (1).
O surgimento de cidadãos imbuídos de uma consciência altruísta, lúcida e empenhada e animados de uma vontade espiritual inquebrantável na defesa dos legítimos direitos de cada cidadão aglutinaria todas as boas vontades de um modo surpreendentemente simples. Por exemplo, já decorreram mais de dois milénios desde que o “divino” Platão nos legou um conjunto de normas, princípios e valores, que, a serem postos em prática (salvaguardadas as devidas e inexoráveis transformações civilizacionais e “revoluções” psicológicas, económicas, etc., entretanto ocorridas), contribuiria decisivamente para a implantação de uma democracia participativa (em vez de uma obsoleta e meramente representativa). Desde o planeamento social, em todas as suas vertentes, como a natalidade, a educação e a instrução, até à sabiamente hierarquizada institucionalização dos departamentos sanitário, judiciário, político, produtivo e comercial, nada foi deixado à mercê da mediocridade, do oportunismo e mesmo daquele velho acaso ou azar que nunca protege todos os cidadãos.
Desde a “utópica” (?) obra “A República” – ainda hoje, apesar de tudo, pedra angular do que de mais elevado e digno encontramos nas constituições e organizações mundiais (de acordo com investigadora portuguesa de Estudos Clássicos, Maria Helena da Rocha Pereira) – até às “Leis” – apogeu da notabilíssima herança platónica, seu último e inacabado trabalho, enriquecido por uma vida longa, fecunda e repleta das maiores aventuras e desventuras –, os políticos tocados pelo lampejo intuitivo que sempre esteve ao serviço dos grandes vultos da história universal encontrarão pistas e sugestões para as suas mais nobres reflexões, decisões e acções.
Ética política
Para elaboração do Código Deontológico do Político, adiantam-se algumas sugestões, retiradas do tema supra, “A Política”:
1. “É inadmissível e aviltante que alguém possa considerar a possibilidade de exercer um cargo governativo ou de direcção de um movimento político como uma forma de preencher e melhorar o seu curriculum pessoal ou de ampliar a sua fortuna material.”
2. “Quase identicamente inaceitável é que alguém se recuse a prestar a sua colaboração numa actividade governativa (que, de qualquer modo, não é mal remunerada em nenhum país do mundo) pelo facto de ser mais bem pago numa (outra) profissão – e não por se discordar da orientação vigente, por se reconhecer menos capaz para desempenhar aquelas funções, ou por estar empenhado noutra esfera de trabalho que igualmente concorra para o progresso da Comunidade”.
3. “O mesmo postulado de sacrifício por um Bem Maior deve implicar a coragem de propor ou executar as medidas mais convenientes à realização dos valores mais elevados e globalizantes, mesmo correndo o risco de serem mal interpretados por alguns – ou muitos –, numa apreciação imediatista ou superficial”.
“Não é fácil ter essa coragem. Sim, parece bastante difícil ter vistas largas, evitar uma excessiva susceptibilidade às críticas (sem, ao mesmo tempo, incorrer num processo de indiferença), não valorizar demasiado um julgamento imediatista. Especialmente assim é quando, num regime democrático, se está não só dependente de resultados eleitorais como, também, condicionado pela força da opinião crítica dos meios de comunicação social e pressionado pelos diversos grupos que integram o tecido social, com as suas diferentes perspectivas e os seus diferentes interesses. A concepção democrática de exercício do poder político é, em si mesma, generosa, digna e cheia de virtualidades ainda por desenvolver. Antes de tudo, o grande passo em frente que representou, no evoluir da história das ideias políticas, é o reconhecimento do valor, da respeitabilidade e da igualdade fundamental de cada ser humano, do que decorre a noção de um todo participado pelas unidades que o constituem. Contém desde logo, é certo, um problema de raiz: a uma igualdade de direitos (nomeadamente, o direito de votar), não corresponde uma igualdade de níveis de consciência, de esclarecimento, de lucidez, de amadurecimento interior, de sentido e capacidade de responsabilidade. Por isso, como resulta evidente, muitas “opções democráticas” podem ser relativamente cegas e, de um certo ponto de vista, pouco recomendáveis (em todos os casos, porém, correspondendo a uma autodeterminação colectiva). Numa outra perspectiva, todos os chamados sistemas democráticos necessitam de amplíssimas reformas, quer no sentido de explorar as referidas virtualidades, quer no sentido de superar inúmeros vícios que os distorcem (começando no condicionamento que, na prática, existe quanto à possibilidade de certas ideias e propostas serem generalizadamente conhecidas). Esse caminho reformista deve pautar-se, sempre que possível, por um ritmo prudente e seguro. As atrocidades monstruosas, os crimes contra a Humanidade praticados num passado recente – e até hoje – em sistemas totalitários não podem, de modo nenhum, ser esquecidos. Recomendam, por isso, um caminho de especial equilíbrio e bom senso, para que não sobrevenham convulsões excessivas, que possam ser aproveitadas pelos violentos (e até certo ponto perigosos) estertores das ideias ditatoriais, racistas e fundamentalistas”.
4. “Devem os agentes políticos explicar serena e lucidamente as suas opções, substituindo o populismo fácil e demagógico pela necessidade de que todos compreendam a dificuldade das escolhas, quando nelas se tem de sacrificar alguma coisa – e sempre assim acontece”.
“Na verdade, a actividade política representa uma via de unificação – ou seja, de implementação de impactos globalizantes sobre estratificações diversas – que, implicando constantes e renovados nivelamentos, sempre descontentará os interesses imediatos e superficiais de algumas partes do todo sobre que incide. Tais interesses particularizados ou sectoriais devem ser respeitosamente ponderados e, dentro de princípios de justiça relativa, concatenados da forma mais correcta e equilibrada possível; mas onde se tem de distribuir bens ou recursos quantitativamente relativos, não pode deixar de haver abdicações relativas. Mas elas serão melhor compreendidas e mais facilmente aceites se forem explicadas com clareza e acompanhadas da desassombrada ideia de que, para além dos aparentes sacrifícios parcelares, são todas as partes que acabam por beneficiar quando o todo, globalmente, se potenciar”.
5. “A função governativa não se deve considerar esgotada com a tomada de decisões e sequente aplicação de medidas concretas, no uso de um poder de autoridade. Tal deve ser ideal e substancialmente complementado pela apresentação de propostas de verdadeiro progresso – assentes na solidariedade activa e voluntária, numa ampla fraternidade, numa ética feita de inegoísmo pessoal ou grupal – que sejam deixadas à consideração íntima dos cidadãos e à sua livre escolha individual. A filantropia generalizada, inteligente e continuada (não uma pequena e ocasional caridade esmoler) deve ter lugar proeminente”.
6. “Também à imprensa cabe uma enorme responsabilidade no aperfeiçoamento do processo político”.
A imprensa, “antes de tudo, deve questionar-se acerca da legitimidade em reclamar uma conduta eticamente credível, quando não exige de si própria esse mesmo requisito. Deve igualmente questionar-se sobre se, à limitação do poder político, não se deve suceder uma limitação do poder da imprensa. Não se trata de restrições à liberdade de imprensa ou à liberdade de informar, mas sim o direito de todos os cidadãos a serem informados de modo rigoroso, sério, verdadeiramente pluralista e, no que respeita à objectividade dos factos, efectivamente imparcial.
A liberdade de imprensa é uma liberdade importante, mas não deve ser absolutizada, a partir do momento em que possa pôr em causa outros direitos e outras liberdades (do mesmo modo como, num exemplo máximo, a liberdade de acção de cada um deve cessar no ponto em que ponha em causa o direito à vida de outrem). Seguramente que não contribui para o aprofundamento (e necessária renovação) da democracia o facto de os critérios economicistas (de audiências e tiragens) condicionarem ou impedirem a possibilidade de algumas ideias se darem a conhecer (sequer como existentes) e serem suficientemente explicadas – em contraste chocante com as amplíssimas oportunidades que a outras se concedem. Tão-pouco é justo que tal aconteça em nome de critérios jornalísticos. Podem até eles estar bem fundados nas regras estritas da correspondente profissão; todavia, esta é apenas exercida por uma escassíssima minoria de cidadãos. Assim, num mundo crescentemente mediático…, importa conciliar a formulação de leis (e de necessárias compensações) com uma consciência mais universalista dos responsáveis pelos meios de informação, para que exista uma efectiva democraticidade e pluralidade.
Numa outra perspectiva, é indubitável que um jornalismo que coloque digna e elevadamente as questões globais – em vez de alimentar a baixa política e à custa dela prosperar – representa um importantíssimo contributo para sanear e aperfeiçoar a vida política. Esse aperfeiçoamento incide, indissociavelmente, quer nos sujeitos activos da política, quer no público em geral, pelo que maior relevância assume ainda”. Importa ainda considerar “a necessidade de se atenuar a exagerada ênfase dada à actividade política e aos seus protagonistas predominantes. Tal não deve ser substituído por frivolidades mas pela justa e adequada atenção a outras esferas de acção, de conhecimento, de criatividade e de construtividade do ser humano.
Evidentemente que a intervenção política pode significar uma relevante forma de se contribuir para o progresso humano e a participação nessa esfera torna-se mesmo um dever (na medida de cada um) quando estiverem em causa valores fundamentais, como, por exemplo, impedir o avanço das ideias ou das práticas de racismo e xenofobia; porém, não constitui o único meio digno e credor de reconhecimento de se intervir na sociedade ou de se expressarem e proporem ideias e conceitos, ao contrário do que quase se pretende fazer crer. A nova atitude a propor não contribuirá apenas para fomentar uma abertura (e impedir um estreitamento) da aplicação da inteligência humana; tenderá também a diminuir o apelo que a actividade política exerce junto de inescrupulosas ambições e desenfreados oportunismos”.
7. “O grande objectivo a assumir pelos estadistas e políticos de todo o mundo deve ser o da gradual mas progressiva integração e solidária unificação entre os diversos estratos populacionais que constituem cada nação e entre as diversas nações que constituem a Terra”.
“Tal implica, necessariamente, o esbatimento do desnível entre os privilégios de uns e as privações de outros; implica o esbatimento de classes económicas e sociais, de nacionalismos separatistas e antagonismos de toda a espécie. Deve, entretanto, ser feito com o máximo de respeito possível pela liberdade própria de cada indivíduo, de cada região, de cada país e sempre com uma atenciosa consideração pelas especificidades próprias de cada um. Em muitos casos, a melhor forma de contribuir para a unificação e a solidariedade global (evitando o irromper de rivalidades e ódios recalcados mas não superados) pode ser, justamente, o reconhecimento mais formalizado e institucionalizado dessas especificidades, correspondendo a uma ideia de descentralização. De resto, jamais a verdadeira unificação mundial pode ser atingida através da dominação, da tirania, do esmagamento e da opressão económica ou militar. A unidade de que falamos é uma unidade baseada na liberdade e na participação; na soma enriquecedora de diversidades e não na sua eliminação (menos, ainda, por meios impositivos ou artificiais). Não preconizamos um mundo a uma só cor mas, sim, uma harmónica policromia”.

(1) In As Novas Escrituras, vol. IV, “A Política”, do Centro Lusitano de Unificação Cultural, 1996.

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