A Ciência da Polis X

Na décima parte, a última deste ensaio político, defende-se o poder legítimo, aquele que é capaz de assegurar a alimentação e a habitação digna a todos e, além destes direitos adquiridos, elevar a qualquer cidadão, a sua condição humana: mais cultura aos pobres e filantropia aos ricos.
Texto José Luís Maio fotografia Dina Cristo
Texto José Luís Maio fotografia Dina Cristo
Vamos continuar a debruçar-nos sobre os campos principais de actividade que exigem dos responsáveis da polis uma acurada atenção e intervenção com vista à satisfação dos direitos de todos os cidadãos. Convém, no entanto, ter presente que estes são não só 1. indivíduos que, se devidamente estimulados, podem desenvolver determinadas capacidades que lhes permitam concretizar certos objectivos, individuais e colectivos (nacionais ou internacionais), o que os enobrece, dignifica e realiza, pessoal e socialmente, mas, sobretudo, 2. seres espirituais em potência, idealmente mais conscientes do propósito de transformar essa potência em acto, isto é, em manifestar de modo visível essa natureza divina. Quer isto dizer que o Homem, sendo (em essência, em germe, em semente) um ser divino, tem a oportunidade de, através da sua vinda à existência e por meio de um esforço constante de aprimoramento da sua consciência, fazer desabrochar paulatinamente essa semente, ou essa potencialidade, que chamamos de “divina”. Ora isso pressupõe, inquestionavelmente, que no passado mais ou menos recente muitas etapas foram arduamente percorridas (com “sangue, suor e lágrimas”) e várias metas alcançadas.
Em extensões cada vez mais vastas do planeta conseguiu-se um elevado desenvolvimento humano a todos os níveis. Neste caso, é a conquista do que habitualmente se designa por direitos humanos, desde os físicos até aos sociais, como o direito à vida e à saúde e o direito ao saber e ao bom-nome. E se a tudo isto chamamos progresso, evolução, cultura e civilização, ao seu contrário teremos de chamar retrocesso, atrofia, incultura e barbárie e, perdoe-se-me o neologismo, selvilização.
O simples facto de alguém nos negar a possibilidade de percorrer as etapas necessárias aos legítimos fins a que a nossa natureza mais nobre aspira, seja porque nos barra o caminho que temos diante de nós, seja porque nos obriga a repetir as etapas já anteriormente calcorreadas, é por si só inconcebível à luz do senso comum mais elementar, como seria igualmente absurdo que qualquer estudante, após ter prestado boas provas académicas no fim do ensino secundário, fosse obrigado a repetir todos os anos da escolaridade obrigatória, ou vedar-lhe a entrada no ensino superior sem qualquer justificação ou por mero capricho.
Será que, nesta esteira, ou seja, para que possamos ascender a uma vida digna, culta, nobre e espiritualmente realizada, por meio de uma actividade cada vez mais intensa da alma – representada pelos “bens divinos” de Platão, “a sabedoria, a moderação, a justiça e a coragem” –, o direito à vida elementar, através de uma alimentação e uma habitação básicas – representada pelos “bens humanos” platónicos, “a saúde, a beleza, o vigor e a riqueza” –, está assegurado a todos os portugueses? É óbvio que não! Quais dos poderes institucionais zelam pelo cumprimento da nossa Constituição nesta matéria? Nenhum, evidentemente, pois quem exerce (ou devia exercer) tal função fiscalizadora pertence à (ou dela é refém) mesma “família” político/partidária governante!
Passemos agora a algumas considerações básicas:
1. Assim, nem a alimentação, nem a habitação, nem o acesso às fontes básicas de sobrevivência de alguém poderão jamais depender da obtenção de um mero emprego ou profissão, sob pena de, como tem acontecido, o “homem continuar a ser o lobo do homem”, devorando-lhe as entranhas físicas, morais e espirituais. Todo o Estado digno desse nome tem de garantir a qualquer cidadão, só pelo simples facto de ter nascido, o direito a uma alimentação e a uma habitação condignas.
Recentemente, mais precisamente em Maio de 2008, deparámo-nos novamente com a prova, perniciosa e atávica, de falta de informação e de conhecimentos que ainda influenciam a esmagadora maioria da mentalidade nacional. Ei-la, extraída de uma entrevista do jornal Público ao coordenador do estudo “Um Olhar Sobre a Pobreza”, Alfredo Bruto da Costa (o sublinhado é nosso):
Pergunta: «Há uma afirmação dura: “A sociedade portuguesa não está preparada para apoiar as medidas necessárias” no combate à pobreza...».
Resposta: «Isso porque num inquérito europeu de 2002 dois terços dos portugueses atribui a pobreza a factores que não são solúveis: fatalismo, má sorte, preguiça dos pobres. Se eu disser que vou tomar uma medida que terá alguma desvantagem para os que têm mais rendimentos, a sociedade portuguesa não vai perceber isto. Um dos programas de luta contra a pobreza tem que ser o de esclarecer a opinião pública sobre as verdadeiras causas da pobreza».
Custa a acreditar que um povo, que se quer culto, desenvolvido, bem-educado e despido de preconceitos tão obsoletos, mantenha esta reserva mental sobre um problema tão grave como é o da pobreza. Mas como factos são factos, e “contra factos não há argumentos”, tentemos, ao lado de Bruto da Costa, determinado e lúcido combatente pelo Bem Comum, compreender (para depois esclarecer) “as verdadeiras causas” deste tipo de conservadorismo, no mínimo vergonhoso e decadente. Não nos parecerá difícil consegui-lo se o fizermos à luz de um excerto publicado em "A Ciência da Polis III":
“A Igreja Católica é a maior fraude da História. Há 1700 anos que oprime as consciências. Dos cérebros, tantas vezes perversos e tantas vezes cruéis, dos que fizeram a sua ortodoxia, saiu a teologia absurda, pueril e monstruosa, partilhada nos aspectos essenciais pelas Igrejas protestantes saídas do seu seio. Os melhores e mais puros cristãos, juntamente com os sábios pagãos – mais a sua magnífica filosofia, ciência, arte e cultura – foram perseguidos e eliminados. Pensar, estudar e investigar foram amaldiçoados por Papas e seus ideólogos. O estigma do pecado e da condenação ao inferno, a eliminação da liberdade de pensamento, a hecatombe de vítimas provocadas pelos apaniguados da Igreja Romana desvirtuaram o genuíno sentimento religioso e condenaram milhões a acreditar nas mais estúpidas concepções”.
Estes factos, que são verdades irrefutáveis, ainda ecoam no subconsciente (onde reside o nosso instinto de sobrevivência) da maioria dos portugueses, afectando a sua lucidez mental e a sua nobreza de sentimentos. Como se isto não bastasse, e na outra vertente, a política de educação continua a exigir-lhes a mesma e obsoleta dependência e menoridade face ao autoritarismo dos poderes. Não será, portanto, de admirar que na sociedade portuguesa do século XXI – que, enquanto país membro de uma das maiores potências mundiais – a União Europeia – em inúmeros domínios, como o económico, político, científico e social, já deveria estar livre do ferrete do obscurantismo, do fanatismo, da superstição, do egoísmo e do preconceito – ainda se usem conceitos tão abstractos e com tantas implicações em todos os níveis da realidade humana como “fatalismo”, “má sorte”, “preguiça dos pobres”!
Talvez a maior parte dos dois terços de portugueses que responderam ao inquérito de 2002 dessem, hoje, uma resposta diferente, pois teriam uma consciência mais lúcida, mais próxima do quotidiano, porque expostos não só aos seus próprios fatalismos e más sortes, mas principalmente à sua própria preguiça, agora na situação de novos pobres. É que, quando o mal bate não apenas à porta dos outros, mas também à nossa, parte da sobranceria que nos tolhe a razão desaparece. Já devíamos ter aprendido o suficiente com a sabedoria popular para saber que “há males que vêm por bem” e para, quando confrontados com os problemas económicos, deixarmos de nos iludir com o sedutor, mas nunca eficaz, “passar a batata quente das nossas mãos para as dos outros”!
Finalmente, os pobres: terão eles, de facto, uma tendência natural para a preguiça? É, no mínimo, estranho que assim seja, pois é duvidoso que lucrem algo com ela. E os ricos…? Quem beneficiará com a posse da riqueza, os ricos ou os pobres? Então, será que tal bênção divina estimulará os ricos a trabalhar para acabar com tais privilégios? Pelos vistos, houve, nesse célebre inquérito, quem se tivesse esquecido do nosso Almeida Garrett nas “Viagens na Minha Terra”, publicado em 1846!: “…Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse corporal; comprai, vendei, agiotai. No fim de tudo isto, o que lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas-políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico. Que lho digam no Parlamento inglês, onde, depois de tantas comissões de inquérito, já deve de andar orçado o número de almas que é preciso vender ao Diabo, o número de corpos que se tem de entregar antes do tempo ao cemitério para fazer um tecelão rico e fidalgo como Sir Roberto Peel, um mineiro, um banqueiro, um granjeeiro – seja o que for: cada homem rico, abastado, custa centos de infelizes, de miseráveis”.
Ao não garantir este direito basilar – comida e habitação – nenhum dos órgãos do poder político, até ao presente, é legítimo (cumpridor da Lei), pois defrauda de forma grosseira e vergonhosa as expectativas (isto é, a Lei suprema, o Espírito em cada ser) que cada cidadão activo ou potencial, isto é, adulto ou criança, nele deposita, pois, sem vermos assegurados os direitos fundamentais, os “bens humanos”, jamais poderemos obter os “bens divinos”. É como acreditar que conseguimos criar belas e inspiradoras obras de todo o género, ou pensar abstractamente em valores universais e princípios humanos ou em novas formas de organização social quando a fome nos faz contorcer de dor.
Quanto ao significado real de pobreza, parece não restar dúvidas de que esta se encontra hoje reduzida à dimensão mais visível e material: a monetária. Mas será mesmo assim? Quantos pobres nunca permitiram que ninguém lhes retirasse a dignidade? E de quantos ricos podemos dizer o mesmo? Bastará recordar o simbolismo bíblico de Job, que exemplifica na perfeição um tipo psicológico que faz parte do Reino Humano.
E, quanto à alegada e inerente compensação em dinheiro pelo esforço efectuado em qualquer actividade ou profissão, é suficiente pensarmos nas crianças (criadoras por excelência, segundo Platão e João dos Santos, distanciados no tempo mais de dois milénios), tão bem referenciadas num projecto belo, inovador e pleno de potencialidades – o Projecto Vénus: «Os seres humanos precisam de um ‘estímulo’ recompensador para fazer coisas significativas? Esta é uma perspectiva triste e incrivelmente negativa do que seja o ser humano em geral. Supor que uma pessoa precise de ser “motivada estruturalmente” ou “forçada” a fazer algo é simplesmente absurdo. Lembremo-nos de quando éramos crianças e não tínhamos a menor ideia do que fosse dinheiro. Nós brincávamos, éramos curiosos e fazíamos muitas coisas... Porquê? Porque queríamos. No entanto, conforme o tempo passa no nosso sistema, a curiosidade e auto-motivação naturais são extirpadas das pessoas, pois elas são forçadas a ajustar-se a um sistema de trabalho especializado, fragmentado, quase pré-definido para poderem sobreviver. Por sua vez, isso costuma criar uma revolta interior natural nas pessoas devido à obrigação, e foi assim que separámos os momentos de “lazer” e de “trabalho”; e a preguiça, que aqueles que defendem o sistema monetário (por alegar que ele cria estímulo) não reconhecem. Numa sociedade verdadeira, as pessoas seguem as suas inclinações naturais e trabalham para contribuir para a sociedade – não porque são “pagas” para isso, mas porque têm a consciência de que colaborar com a sociedade ajuda tanto a si próprias quanto a todas as outras pessoas. Esse é o estado elevado de consciência que esperamos transmitir. A recompensa pela sua contribuição para a sociedade é o bem-estar daquela sociedade... o que, por consequência, é também o seu bem-estar…».
2. Contrariamente ao que perpassa pelas esferas dos vários poderes ilegítimos – e ouso acrescentar que não temos hoje nenhum poder que não o seja, pois todos têm degradado a condição humana, em vez de a elevar, seja a dos pobres (tornando-a menos pobre e ignorante e mais culta e exigente), seja a dos ricos (tornando-a menos rica e mais filantropa) –, existem de facto direitos adquiridos. Trata-se dos direitos civilizacionais, daqueles que permitem que jamais se regrida da civilização para a selvajaria e pelos quais tantos dos nossos antepassados sacrificaram a própria vida e o que de melhor e mais nobre possuíam.
Somente aqueles que pretendem e lutam para que um dia os poderes se tornem legítimos são capazes de compreender, transmitir e garantir que a consolidação da observância desses direitos se deve estender aos que deles ainda estão arredados, e nunca – como alguns ditadores encobertos e disfarçados de democratas pretendem – que sejam os “deserdados” o termo de comparação para que os considerados “privilegiados” percam os frutos do progresso, pois o resultado inexorável deste tipo de mentalidade será o despojamento final da dignidade de todos, como nos recorda a triste trilogia do passado “clero, nobreza e povo”. A eliminação dos direitos adquiridos significará a absoluta paralisia de toda a acção, vida, movimento, produção e investigação inerentes a todos os indivíduos, mesmo primitivos, bem como a total hecatombe e desmoronamento da Humanidade. Façamos a analogia deste conceito de “direitos adquiridos” – para avaliar da sua pertinência e sustentabilidade – com um exemplo físico, material: a construção de uma ponte. Como todos sabemos, só é possível unir as duas margens de um rio, que significa unir horizontalmente cada extensão do tabuleiro, após a consolidação vertical dos pilares sobre o leito do mesmo. A partir dos pilares, vai-se avançando na direcção desejada até se cobrir toda a extensão desse abismo inicial. Em casos particulares, a ponte possui um único pilar – que fica situado a meio do leito do rio –, de onde saem simetricamente, isto é, avançando em simultâneo para as duas margens, uma espécie de “braços ou carrinhos” até se consumar a ligação à terra firme. A colocação simétrica e simultânea dos dois “braços” evita a queda do pilar, que seria inevitável com a projecção de um único para uma margem (com a intenção de só depois se ligar à margem oposta). Nesta analogia, podemos metaforicamente vislumbrar facilmente a ascensão e o reencontro final da Humanidade – inicialmente separada pelo abismo das desigualdades, dos egoísmos e da indiferença individual e de grupos isolados –, cujos pilares suportam e permitem o progresso sempre renovado e cada vez mais abrangente e inclusivo. Assim, as conquistas anteriores – ou direitos adquiridos de hoje – de alguns pioneiros no passado tornar-se-ão no futuro património de todos.
3. Nenhum trabalho, ofício, instituição deverá ser um fim em si mesmo, mas antes um instrumento ao serviço do Bem Comum e a sua extinção não pode significar a desgraça para os seus profissionais, mas, pelo contrário, a ascensão a um patamar superior de cultura, consciência e civilização. Basta pensarmos numa sociedade sem prisões nem hospitais para compreendermos isto.
Aliás, a ser assim, aqueles que tivessem escolhido a profissão de guarda prisional estariam definitivamente dependentes da existência e do aumento de condenações a prisão efectiva dos seus compatriotas. Nenhum juiz ou advogado deveria querer ver perpetuadas as situações de litígio para garantir a sua sobrevivência e dignidade, nem nenhum médico deveria desejar para o seu país um mau sistema educativo só para ter doentes que lhe garantissem uma posição social de destaque e uma situação financeira invejável. Antes de mais, todos estes profissionais são membros de um reino da natureza dotados de Vida, Qualidade e Aparência – ou Espírito, Alma e Personalidade – especificamente humanas, com tudo o que isso representa na sábia economia da Natureza (“obter-se o melhor resultado com o mínimo esforço”) para a incomensurável Mente Cósmica.
Ensina-nos Aiax, um Mestre da Humanidade: “Quando um animal começa a vibrar no pólo da mente, torna-se num homem. Quando um homem principia a vibrar no pólo da alma, torna-se num discípulo. Quando o discípulo se capacita a elevar-se ao pólo da alma, torna-se num iniciado. Quando um iniciado principia a vibrar no pólo do espírito, transfigura-se. Quando um alto iniciado transfigurado se capacita a elevar-se ao pólo do espírito, é iniciado perante o Cosmos e torna-se num Mestre…”. (1).
Estas palavras poderão parecer destituídas de objectividade ou de sentido prático para a pseudo-intelectualidade vigente. Nem surpreende que assim pensem os seus protagonistas, inclusive alguns “filósofos”, ou melhor, “sofistas” – os mercenários do ensino na Grécia antiga –, pois, na verdade, são eles os cegos proclamadores das “verdades” convenientes para a manutenção do ignóbil status quo social que pretendem preservar e ampliar à escala global.
A este propósito, vale um ensinamento proveniente da fonte antes referida: “Um homem que é só um homem não pode sentir a eternidade. Por isso, os filósofos que não se superaram a si mesmos jamais puderam encontrar respostas para as questões metafísicas. A eternidade somente pode ser consciencializada por um Deus. Assim, se procurais encontrá-la, sabei que o buscador adequado é o Deus interno. Do mesmo modo, se procurais a Beleza e a Verdade eternas, sabei que existe em vós a centelha divina capaz de ecoá-las. A única forma de as vivenciar depende, porém, do grau em que sois conscientemente essa centelha. Se vos identificais com o mutável, movediço e incerto mundo da morte, se vos identificais com o não-Ser, desesperai de encontrar o Ser. O caminho do Ser é um caminho de sintonia entre essências iguais. O semelhante é o único capaz de encontrar o semelhante. Por isso, se quereis encontrar o Amor, o Saber e o Poder, deixai que o pólo espiritual em vós vibre e se expresse. Deixai o vosso Deus Eu Sou encontrá-los” (2).
Etiquetas: A Ciência da Polis X, Ensaio, José Luís Maio
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