Ética comunicacional em Salazar?

A quase quarenta anos depois da morte de Salazar, publicamos um artigo, escrito há 14, sobre a entrevista “Panorâmica da política mundial” dada a Serge Groussard e publicada no jornal “Le Figaro”(1).
Texto Dina Cristo
Texto Dina Cristo
A qualidade ética comunicacional pressupõe a existência de simetria, de reciprocidade e do argumento pragmático-transcendental.
De acordo com o primeiro pressuposto, a simetria, os falantes possuem o mesmo nível de informação bem como a mesma capacidade cognitiva. Estas duas condições, embora se possam admitir enquanto idênticas, sugerem um nível de aceitação mais complexo.
Não obstante se concorde com uma análoga dimensão intelectual por parte do, então, presidente e do jornalista, torna-se mais problemático afirmar que as suas capacidades são as mesmas, quer a nível intelectual quer a nível informativo.
Quanto à informação, não é fácil admitir que ambos possuem o mesmo nível, se a entendermos no sentido mais vulgar, de transmissão de dados.
Salazar tem um conhecimento de background e dos últimos factos relativos à nação portuguesa, inerentes às suas próprias funções. Serge Groussard demonstra, no entanto (até pela natureza da sua profissão) um conhecimento informativo do que se passa em Portugal e nas colónias portuguesas. O jornalista francês questiona a ‘tranquilidade’ das “possessões portuguesas” em África e na União Indiana, a ditadura e a censura, entre outros problemas pertinentes, o que leva Salazar a elogiá-lo: “Pelo que vejo, já está informado” (2).
É provável a legitimidade para supor um nível informativo semelhante, mas duvidoso se substituirmos o mesmo adjectivo por igual. É improvável que o nível de informação, por mais próximo, não seja diferente. Assim, quer relativamente à quantidade quer em relação à qualidade da informação, não são igualmente dominadas pelos dois interlocutores.
Quando Groussard informa o leitor que declarou a Salazar que a leitura do Livro Branco, publicado pelo governo português após a II guerra, lhe permitiu compreender a relação próxima entre Portugal e a Inglaterra durante o conflito (3), bem como o momento em que se refere à recordação da experiência do seu pai, enquanto coronel, na sua passagem por Lisboa (na página seguinte), revela um determinado nível de informação necessariamente diferente de Salazar, uma vez que a percepção da realidade e do contexto são diversamente assimilados por cada indivíduo.
Como afirma Adriano Duarte Rodrigues, o mundo cognitivo é constituído por um vasto conjunto de fenómenos nem sempre percepcionados da mesma forma. Nem tudo é igualmente manifesto aos interlocutores e pode não o ser no mesmo grau.
Este problema que conduz à improbabilidade da comunicação, abordada por autores como Luhmann, foi assim descrito por Sperber & Wilson: “O fato que a comunicação conheça fracassos é normal; aquilo que é misterioso, o que precisa ser explicado, não são os fracassos da comunicação, mas os seus sucessos” (4).
Nesta perspectiva, é essencial distinguir entre o papel da informação (alguém torna conhecido do seu interlocutor algo que até então este não sabia) e da comunicação (troca de conhecimentos já previamente partilhados): “Enquanto a informação visa à constituição de um mundo cognitivo ou de um saber comum, a comunicação pressupõe a existência prévia de um mundo cognitivo ou saber mútuo” (5).
Reciprocidade
De acordo com o segundo elemento de uma comunicação com qualidade ética, qualquer pessoa pode participar no discurso. Esta concepção, desenvolvida por Jurgen Habermas, concede possibilidade a qualquer indivíduo, que deseje participar no discurso, de o fazer, expressando as suas opiniões, desejos e necessidades, problematizando alguma afirmação ou introduzindo uma nova declaração.
Neste que não é um discurso "tout court", o conceito de Habermas é susceptível de uma análise, mas com uma aplicação restrita, à situação particular da entrevista, feita com a presença de duas pessoas (6). Neste caso, só o entrevistador e entrevistado podem, de facto, atingir um desempenho participativo. Quando Salazar afirma a Groussard que “somos uma pequena potência colonial”, o jornalista problematiza de alguma forma lembrando que as “(…) possessões ultramarinas se elevam a 2.160.000 quilómetros quadrados, com 12 500 000 habitantes” (7).
Groussard introduz novas afirmações, nomeadamente quando contrapõe: “A situação é diferente no que respeita às antigas colónias, de imigração, como os actuais Estados Unidos ou a Austrália. Nestes países, foram os colonizadores que se separaram da mãe-pátria; botões que desabrocharam noutros céus” (8).
Nesta entrevista, Serge Groussard vai mais longe e expressa mesmo as suas opiniões: “Julgo que as pequenas nações já não ficam silenciosas nem ignoradas nos debates internacionais” (9). O jornalista francês apresenta traços físicos, psicológicos e intelectuais de Oliveira Salazar, ao mesmo tempo que retrata as suas reacções (10).
Salazar é parte essencial neste acto discursivo particular, até pelo seu papel peculiar de alguém que está numa determinada situação espaço-temporal para que as suas opiniões possam ser ouvidas. Ele utiliza, pelo menos, as regras da razão referidas por Robert Alexy (11).
Oliveira Salazar expressa as suas convicções, nomeadamente as de que não se considera um ditador, não reconhece o direito à greve, não acredita na liberdade mas nas liberdades, tal como não crê na igualdade mas sim na hierarquia.
Se se considerar o conceito de que qualquer pessoa pode participar no discurso, numa acepção mais lata, torna-se irrealizável. De facto, neste caso só as duas pessoas envolvidas na entrevista podem intervir, ficando a participação dos demais limitada a uma leitura posterior.
Pragmática transcendental
O terceiro pressuposto da qualidade ética comunicacional é o argumento de autoridade. Convenção e evidência são elementos que António Oliveira Salazar integra no seu discurso. A tradição, por um lado (12), e a prova de autoridade natural, por outro (13), estão presentes intensivamente ao longo da entrevista.
Segundo a teoria do discurso, de Robert Alexy, a predisposição para o debate está estritamente ligada à tolerância. A prontidão para uma certa discussão, se entendida enquanto questionamento, rejeita uma associação com “potenciais consequências totalitárias”, refere o autor. De acordo com a mesma teoria, as declarações normativas (julgamento valorativo e /ou obrigatório) são justificáveis e susceptíveis de avaliação sobre a sua verdade ou falsidade.
O princípio da não contradição, da sinceridade e o terceiro, segundo o qual cada interlocutor deve usar todas as expressões com o mesmo sentido, constituem as regras básicas da referida teoria.
O primeiro princípio, relativo à lógica, e que tem no discurso racional um objectivo fundamental, é cumprido durante a entrevista, sendo os argumentos expostos de forma coerente. É o que sucede ao considerar Portugal um país pequeno e com pouca influência (14).
Já o princípio que asseguraria a sinceridade (15) é de difícil averiguação tendo somente como base o documento. No entanto, num discurso realizado em 1940 sobre “Fins e necessidade da propaganda política”, Salazar prenuncia a sua crença na opinião pública como um elemento fundamental da política e da administração do país (16).
A regra que estabelece o uso (por diferentes locutores) de expressões com um sentido único não é cumprida, na íntegra. Durante a entrevista ambos os intervenientes explicitam qual o significado que atribuem a uma expressão (17) ou a uma palavra (18). Com visões do mundo distintas, os dois interlocutores utilizam verbos com sentidos diferentes, tentando, no entanto, durante o “acto discursivo” chegar a um determinado consenso (19).
Prática ideal
Os diversos elementos até agora descritos remetem, assim, para uma “situação discursiva ideal” de que fala Habermas: a procura da igualdade, universalidade em discursos sem coação. Habermas – tal como Apel – argumenta que é possível a existência de ética numa comunidade ideal de comunicação.
Contudo, as condições são susceptíveis de questionamento. No campo factual, por exemplo, é impossível que todos os virtuais falantes discutam todos os assuntos, sem qualquer tipo de restrições.
A entrevista do presidente Salazar ao “Le Fígaro” contém várias características que apontam para uma qualidade ética comunicacional, embora relativa. O documento corresponde, na maior parte das vezes, ao exigido para adquirir tal estatuto.
As afirmações normativas (julgamentos valorativos e obrigatórios) estão implícitas ao longo de todo o texto. Apesar de não estar expresso verbalmente, subentende-se o que é considerado bom – como o nacionalismo, o colonialismo e a propaganda – e o que se deve fazer: o imperativo de lutar pelo desenvolvimento das colónias. Tudo é justificável e sujeito a comprovação da sua veracidade ou falsidade. Contudo, não existe participação no discurso, que é praticamente um monólogo transmitido a um destinatário, que não possui o mesmo nível de informação (20).
(1) SALAZAR, António Oliveira - Panorâmica da política mundial in Discursos e notas políticas, Coimbra Editora, vol.V. (2)- Idem, p.28. (3)- Idem, p.34. (4)- RODRIGUES, Adriano Duarte - As dimensões da pragmática da comunicação, Rio de Janeiro, Diadorim, 1995, p.142. De acordo com Sperber & wilson, a intenção comunicativa é uma intenção informativa de segunda ordem, pois além do saber comum, implica o saber mútuo - saber que o locutor dabe que o alocutário sabe... (5)- Idem, p.148 (6)- De acordo com a definição proposta por Orlando Raimundo, a entrevista é um encontro de um jornalista com uma pessoa em particular para recolher as suas opiniões e reflexões, as quais só têm sentido e importância quando ditas por ela. (7)- SALAZAR, António Oliveira - Panorâmica da política mundial in Discursos e notas políticas, Coimbra Editora, vol.V. 2, p.10. (8)- Idem, p.15. (9)- Idem, p.8 (10)- Um extracto, na página 11, elucida sobre essa concretização: "As sobrancelhas espessas do Prof. Salazar franziram-se ao de leve. Dizem que é muito nervoso, como aliás todos os pensadores que amam a solidão. Contudo, até este momento nada denunciara nele uma quebra de serenidade. Dir-se-ia que algo de hermético se oculta através da sua aparente impassibilidade. O seu olhar sombrio parece frio e um pouco enovoado". (11)- ALEXY, Robert - A theory of pratical discourse in The Communicative Ethics Controversy, Cambridge, MIT Press, 1990, p. 166 (2.1. e 2.2.). (12)- "Marinheiros, que sempre fomos, exploradores e grandes caminheiros através do Universo, figuramos entre os primeiros colonizadores do mundo e, apesar de pouco numerosos, a nossa obra neste domínio é incomparável". (13)- "Em Junho realizaram-se as eleições à presidência da República. Em face da candidatura do almirante Américo tomás (...) surgiu uma alvoroçada candidatura de oposição. Ora sucede que quatro quintos dos cidadãos portugueses se pronunciaram livremente pelo almirante Tomás", p.43. (14)- "Sabemos que não é a superfície que dá o poderio" (p.9.) e "Elevar a voz não significa que se tenha influência" (p.8) são apenas casos exemplificativos. (15)- Não dizer o que se pensa que é falso ou aquilo de que se tem razões suficientes para julgar como tal são máximas da qualidade, formuladas por Grice, no âmbito do princípio geral de cooperação entre os interlocutores, que apontam igualmente para a necessidade de se afirmar aquilo em que se acredita. (16)- "Ainda que todos os esforços da educação na família e na escola convirjam hoje para a mesma finalidade geral da cultura do patriotismo, alguma coisa mais se exige e é necessária a cargo de organismo próprio que pela propaganda e actividade específica crie e alimente a consciência pública e forme o escol político capaz de conduzir e realizar os imperativos nacionais", p.201. (17)- No caso da potência colonial (p.109, Salazar sublinha que "Não há possessões portuguesas, mas pedaços de Portugal disseminados pelo mundo. Em Lisboa, em Cabo Verde, em Angola ou em Moçambique, em Goa, na Guiné, em Timor ou em Macau é sempre a Pátria". (18)- Enquanto o entrevistador lembra que colónia, em latim, significava "estabelecimento criado em terra estrangeira", Salazar responde: "E colonus - que deu colono - queria dizer cultivador! De que se tratava? De que se trata ainda? De criar", p.12. (19)- De referir que a significação difere do sentido, cujo significado depende, nomeadamente, do contexto em que é utilizado. Wittgenstein que no "Tratado Lógico-filosófico" defende que só uma 'linguagem ideal' corresponderia à realidade, vem depois, nas "Investigações filosóficas" afirmar que o mais importante na linguagem não é a significação mas a sua utilização. Entender uma palavra passa sobretudo por saber como funciona dentro dos vários jogos de linguagem. (20)- No caso de "Fins e necessidade da propaganda política", em 1940, são os presentes na reunião das Comissões da União Nacional de Lisboa, enquanto no discurso "Sobre a indústria das conservas de peixe", de 1931, se trata de um relatório de uma visita aos centros conserveiros de então.
Bibliografia:
AAVV - Ética e comunicação, Revista de Comunicação e Linguagens, nº15/16, Lisboa, Cosmos, 1992. ALEXY, Robert - A theory of pratical discourse in The Communicative Ethics Controversy, Cambridge, MIT Press, 1990, p.151-192. APEL, Karl-Otto - Is the ethics of the ideal communication community a utopia? On the relationshipo between ethics, utopia and critique of utopia in The Communicative Ethics Controversy, Cambridge, MIT Press, 1990, p.23-59. SALAZAR, António Oliveira - Panorâmica da política mundial in Discursos e notas políticas, Coimbra Editora, vol.V. RODRIGUES, Adriano Duarte - As dimensões da pragmática da comunicação, Rio de Janeiro, Diadorim, 1995. MORA, José Ferrater Mora - Diconário de filosofia, Lisboa, Dom Quixote, 1992, 5ª edição. DUCROT, Oswald - De Saussure à la philosophie du langage in Théorie des actes de langage, Paris, Hermann, p.7-34. GRICE, H. P. - Logic and conversation in Pragmatics, New York, Oxford University Press, 1991, p.305-315.
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