quarta-feira, 22 de julho de 2009

Pódio do domínio


A dias de completarmos dois anos de publicação regular, reflectimos sobre a importância da transição da comunicação (social) instintiva, baseada na competição, para um novo padrão de comunicação e informação intuitiva, orientado para a cooperação.

Texto Elton Rodrigues Malta desenho* Dina Cristo


A competição é o grande motor da nossa sociedade. Ela é um dos instintos mais básicos do Homem. É o despique que surge quando o seu orgulho é ameaçado. Esta realidade retrata o comportamento animal que está em nós. Agimos tal e qual os cães quando são postos em confronto nas lutas clandestinas: picam-nos e viramo-nos contra os nossos semelhantes. Somos autênticos animais a viver na lei da sobrevivência, em que quem não come é comido. A disputa dá-se no sentido de cada um salvar-se. A TV serve-se disso e dirige-se à parte instintiva, alimentando-a, por ser a única em que este domínio fácil é possível. Ela manipula através da exploração do instinto.
É um dia de Primavera, apelativo à expansão. O Sol brilhante contagia com vida todos os seres e entre fauna e flora uma criança brinca alegremente, feliz pela liberdade de poder explorar e preenchida pelas novas aprendizagens. Eleva-se na generosidade tornando-se continuamente mais humana. Ela salta, ri e aprende. Canta, dança e celebra. Impulsionada pela luz, ela move-se no caminho da mudança, da realização e satisfação pessoal. Mas entretanto as nuvens começam a tapar o Sol à medida que ela questiona. Os pais prendem-na em casa, apenas podendo espreitar pela primeira janela que encarcerou o ser humano. Através desta janela consegue ver os seus pais. Imita-os por depositar inteira confiança neles, segue-lhes os exemplos sem hesitação. Tendo eles a noção de serem seguidos por alguém desamparado e desprotegido, têm a responsabilidade de educar, mas negligenciam-na. São eles os pais que dão à luz as trevas. Por quererem a criança obediente prendem-na na ignorância tirando as suas dúvidas com respostas como “Porque eu digo”. Dão-lhe uma aparente comodidade que lhe limita os horizontes. Ela perde a vontade própria e o desejo de questionar o mundo. Na idade dos porquês já ela diz “porque sim”. A vida tornou-se cinzenta, cada vez mais morta, e já só o desinteresse respira. O único estímulo capaz de mover a criança é a necessidade de mostrar não ser inferior.
Absorvida pela ruidosa e assustadora programação, foi-lhe sugada a autonomia. A violência da competição, oferecida de forma repetitiva, e criando um sentimento de culpa, condu-la ao escuro da prisão. Já não quer explorar, quer a garantia que tudo é estático e conhecido, recusando o mistério, optando pela frustração do “conforto” conformado. Como não sente satisfação pessoal entra na competição social devido à necessidade de aprovação que é inerente a qualquer ser desamparado. O sufoco mais intenso é sentido com o medo mais primitivo, o de ficar sozinho, e perante a ameaça constante - “assim o pai não gosta de ti” - a criança passa a ser como os pais querem que seja. Ser bom não chega, tem de ser melhor, porque os pais dizem que “a nota não está má mas a do filho do vizinho é melhor” e também dizem que “a prima é mais magra”. Criados os padrões de bom comportamento, só lhe resta segui-los e competir para se destacar. Rebaixa-se na competição tornando-se continuamente mais instintiva. Começa a nível pessoal e expande-se ao social. A criança é a massa e os pais são os meios de comunicação. Como são meios sem princípios só eles sabem quais os seus fins.
A disputa é uma forma de manipulação. Quem compete quer-se superiorizar para poder manipular o outro. No entanto quem tenta manipular está a ser manipulado por um conflito, está a reagir consoante o que o adversário faça deixando o seu centro de decisão para partir para o suposto que lhe é dito pelo exterior. Basicamente a pessoa sai de si, abandona-se para ser melhor que alguém. O que é estranho é que compete através da imitação e pouco a pouco a autenticidade e a diferença desaparecem, “aproximam os seus comportamentos aos dos outros” como diz Ana Flores. É sabido que quando adversários se confrontam durante muito tempo tornam-se cada vez mais iguais por se focarem demasiado no outro. Mas é ridículo tentar-se provar que se é melhor quando no fundo se imita. É contraditório. Mas a televisão promove o ataque a quem foge à regra, a quem não se mantém na linha da imitação.
A competição está enraizada de tal forma que por vezes nem é perceptível. Ela começa logo numa educação competitiva. Ensinam a criança, de forma subtil, que a forma de superar o desamparo é através da luta com os outros, ou seja, da busca da aprovação (oscilar consoante as opiniões) em vez da protecção das suas emoções, e “quem não segue o rebanho é banido” diz Ana Filipa Flores. O manipulador só se deixa dominar se vir que daí pode vir a exercer domínio. Como não sente que tem valor suficiente, precisa de algo que lhe diga que o tem. Esta disputa tem de ser alimentada porque se deixar de haver necessidade de competir, isto traduz-se numa estabilidade e resulta numa incapacidade de dominar.
Alimentar a cadeia A prisão da insegurança tem uma aparente saída que é a competição. Na verdade é uma extensão (infinita) dessa mesma prisão. Os media não são criadores desta concorrência, são um produto dela, contudo têm nas suas mãos a capacidade de a enfraquecer em vez de a cultivar. Quando criam padrões em que os pares são aprovados por certos comportamentos estão a incentivar a insegurança. Quando os jornalistas entram no conflito da venda, promovem a agitação e pressa e consequentemente as notícias saem copiadas impedindo a inovação. A competição é constante. Como ela só existe na necessidade de aprovação e esta só é possível na insegurança devido a cada pessoa não se conhecer a si própria, a TV impulsiona a ignorância. “A televisão é um meio de moldar mentes” diz Luís Mouzinho. O que quer que ela faça mexe com o auto-conceito das pessoas para que elas entrem novamente no despique. Alimenta este conflito ainda que de forma subtil.
A rivalidade na TV é perceptível tanto ao nível do conteúdo, nos programas escolhidos, como ao nível da forma, na linguagem usada. Ao nível do conteúdo ela existe no Top 10, mostrando que ser bom músico não chega, e vai influenciar o ouvinte a escolher as mais ouvidas para pertencer à maioria. Está presente em programas como “Quem quer ser milionário” tanto na competição pelo dinheiro como pelo saber. Ela é evidente aquando da publicação de escândalos de famosos de modo a diminuir o complexo de inferioridade das pessoas comuns perante essa figura pública. A publicidade faz apelo constante ao consumo daquele produto para que pareça o melhor, já que é o que mais se ouve falar.
Ao nível da forma basta ver a linguagem bélica presente no futebol quando os media se dirigem a este: “A selecção humilhou no jogo contra a Suíça”, “O Benfica está na luta pelo título”, “Ronaldo fuzilou o guarda-redes”. Há mais interesse na derrota do adversário do que na própria vitória. Sentir que deu o seu melhor não é suficiente, é necessário sentir que alguém é inferiorizado, porque o superior consegue manipular. Mas afinal quais destes desportos prendem os telespectadores? Não há uma cultura de contemplação e fusão. Há antes uma de distracção e alienação. “Temos uma televisão que atrofia a reflexão e a parte humana mais elevada”, segundo Luís Mouzinho.
O apelo constante à competição alimenta a agressão e o instinto. Leva a uma sociedade bruta, animal. O instinto é-nos inerente mas temos a liberdade de o alimentar ou não. Podemo-nos prender no instinto ou libertar na introspecção. Temos uma tendência, mas os media podem ser uma preciosa ajuda no combate a esse hábito.
Da pertença à partilha Baseado na divisão feita por Osho, filósofo indiano, acima do nível instintivo considerarei dois níveis: o racional e o introspectivo. No nível racional há uma reflexão que vai diferenciar as reacções das pessoas devido a terem diferentes conhecimentos e interpretações. No entanto o racional ainda compete, ainda que seja com saberes. Onde há competição há sede de poder. Esse poder implica domínio. O domínio mata a liberdade.
No nível intuitivo ou introspectivo, devido a conhecer-se a si mesmo, o sujeito conhece também a realidade e a natureza das coisas, vendo-a com nitidez. Não se deixa cegar pela areia mandada para os olhos através dos media. É livre. E quem é livre não pode ser dominado ou forçado a fazer algo, logo não compete, age por si. E mesmo que seja preso fisicamente continua a ser mais livre do que a nossa sociedade dita democrática, porque continua a ter vontade e pensamento próprios.
A libertação não reside em conhecimentos teóricos e exteriores, consiste em aplicar conhecimentos internamente, como se fosse uma semente que dará frutos para o mundo. Para isso é necessário serem transmitidos conhecimentos aplicáveis em cada pessoa. E a televisão como exemplo que é, deve transmitir histórias com sábios ensinamentos e com ânimo, que dêem força e promovam a diferença e autenticidade, que sejam uma ajuda a lidar com a vida e que ensinem as regras do jogo que ela é, em vez de ajudarem a abandonar o jogo pela incapacidade nascida da ignorância. Deve explicar leis universais, tais como a lei de causa-efeito, lei da atracção, ou até como usar o pensamento de forma a conduzir correctamente a vida. Pode também facultar técnicas de meditação e ir dando esse exemplo, estimulando a sua prática. Incentivar à expressão de cada pessoa através das várias formas de arte, pois estas ajudam a conhecermo-nos a nós próprios. Como diz Samael Aun Weor “Quando não há um auto-conhecimento, a auto-expressão dá-se pela auto-afirmação”. A difusão de conhecimentos da psicologia filosófica é essencial para que haja um conhecimento de si próprio, e posteriormente possa actuar cada um em si mesmo. Cultivar a capacidade de reflexão e a interpretação dos acontecimentos da vida são componentes da filosofia, que também deve ter o seu espaço. O desporto deve continuar sempre presente, mas o desporto de entrega e não o desporto de competição.
Devem ser divulgados os avanços científicos e tecnológicos de modo a impulsionar a sua contínua evolução, estabelecendo a ligação entre os interessados e estudiosos do assunto. A crise ecológica deve ser abordada através de medidas de preservação e recuperação do património, havendo um aprofundamento das perspectivas de ver a questão. Deve haver novos valores-notícia para a escolha e modo de abordagem dos acontecimentos, ajudando a elevar a frequência a que vibra o pensamento das massas. Dar na televisão o exemplo da leitura, contagiando. Todos os temas e problemas sociais devem ter espaço para debates, mas debates que têm como fim a verdade e não a razão. Esclarecer a sexualidade e educar as pessoas neste campo para que este tema não seja um tabu para fazer dinheiro. Em vez de estimular o atrito entre governantes e governados (por todos quererem o poder), incentivar a que cada um dê o seu melhor no seu lugar. Todos participarem na democracia, executando o seu trabalho com ética. Aqui está a verdadeira generosidade, partilha e solidariedade: dar a liberdade ao outro com todo o respeito.
A distracção deixa de ser necessária, simplesmente desliga-se a televisão e vai-se viver a vida fora da prisão das quatro paredes, já que as paredes da repressão já estão quebradas. O auto-conhecimento é fundamental, porque nenhuma revolução verdadeira ocorre do exterior. Para haver mudança é necessário operar no interior. Comunicar é descobrir e unir o que há de comum, e o comum a todos os seres humanos é o que têm de mais profundo. Assim se estimula a confiança e consequentemente surge a autonomia, estando de volta a vontade de explorar e aprender, de transformar e crescer. Tem-se de volta a vontade própria. Os media sozinhos não conseguem fazer toda esta mudança, mas conseguem influenciar na mudança do sentido para onde a nossa sociedade se dirige.
A partilha deve ser de todas as informações havendo livre acesso, e não uma selecção que permita manter o domínio. Partilhar é destituir poder. Partilhar postos, sem uma hierarquia fixa em que é preciso conflito para a mudar. Não criar posição dominante nem de dependência. Dar e receber. Libertar.

* Anos 70

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