quarta-feira, 24 de abril de 2013

Somos livres?

 


Na véspera da celebração da Revolução do 25 de Abril e a dias da de inauguração, há 45 anos, na Broadway, do musical “Hair”, vamos saber o que é e até que ponto se consegue ser livre.
  
Texto e fotografia Dina Cristo

Alguém é livre quando age de acordo com a própria natureza, vontade, verdade e consciência. Tal pressupõe o auto-conhecimento, fundamental para que se possa actuar de acordo com quem se é. Ser livre é ter o poder e a capacidade de decidir o melhor para si, fazer a escolha mais acertada tendo em conta a sua essência, quem já se sabe que é e não para se vir a ser alguém; é ter capacidade de saber de que se ocupar, ao que dar atenção, a quem se ligar, como indica Omraam Aivanhov.
“(…) a verdadeira liberdade consiste em obrarmos em nosso próprio nome, em sermos nós em nossas obras e pensamentos”, escreveu Teixeira de Pascoaes. Esta capacidade de auto-determinação, do livre arbítrio da acção individual visível, o “agency”, é hoje enfatizada pela ciência pós-moderna em detrimento do determinismo externo, do constrangimento da estrutura colectiva invisível. No caso da pragmática acional, para a qual falar é agir, essa actuação é de âmbito discursivo.
Viver de acordo com a sua questão particular implica escolher o seu caminho, saber selecionar o mais adequado para si e não o mais atraente ou sedutor. Para Platão, a liberdade está em ser-se senhor de si mesmo, o que acontece quando a sua melhor parte, a mais virtuosa, embora menos desenvolvida, domina a pior, a mais viciosa e abundante. Como alguém escreveu, a liberdade atinge-se quando o intelecto compreende o que é o bem, o belo e o bom, o coração o deseja e a vontade vai atrás.
Quando está ao serviço das paixões o ser humano enceta uma falsa libertação que o mantém dependente dos apelos instintivos e expande as suas amarras. Dar vasão aos gostos, apetites e inclinações, como diria Immanuel Kant, apenas o amarrará aos seus interesses limitados, ao condicionado, à região abaixo do diafragma. Já Antero de Quental havia ensinado que “só é verdadeiramente livre aquele que sabe limitar voluntariamente a própria liberdade”.

Desprendimento

A verdadeira libertação está no auto-domínio, em saber integrar apegos, desejos e medos, para depois os direcionar e ultrapassar. Primeiro a aceitação já que, como lembra Carlos Cardoso Aveline, “ficamos presos a tudo aquilo que rejeitamos”. Há que aprender a harmonizar, a reequilibrar, a reunir o pólo da liberdade e da ordem, com moderação, para evitar que o investimento excessivo num conduza ao aprisionamento no outro, oposto e oculto.
«Sereis livres de facto não quando os vossos dias decorrerem sem cuidados e as vossas noites sem desejos e sem fadigas mas antes quando todas estas coisas cercarem a vossa vida e vos elevardes acima delas, nus e libertos”, ensinou Kahlil Gibran(1). Esta superação e subida às alturas acontecem quando se age sem esperar nada em troca, desinteressadamente, através do desapego, sobretudo quando se libertam as (outras) pessoas, se prescinde de objectos e actividades inúteis ou se livram de preocupações mentais ou emoções destrutivas, como a culpa, a raiva ou o medo, nomeadamente através do canto.
A libertação real advém do perdão, uma desculpa pelos erros, próprios e alheios, cometidos no passado, a cuja memória se associam emoções, como a tristeza, que precisam de ser enfrentadas, expressas, processadas e compreendidas. Muitas vezes o que resulta em termos de significado e sentido atribuído à experiência é a consciência de uma ilusão, o que normalmente origina um sofrimento duplo, tendo em conta a decisão de separação, uma grande perda e mudança que implica. “Você não encontrará a liberdade”, disse António L. Santos, “até ser capaz de enfrentar a mudança e a incerteza”.
A verdade é a via da autêntica libertação. Dependente do estado ou foco de consciência, do nível evolutivo, própria do mundo inteligível, incondicionado, da Razão Pura kantiana, ela dissipa as ilusões e desapossa de pessoas, ideias, lugares e ocupações, que ora o medo ora o desejo tentavam, pelo controlo, manipulação e mentira, suster, fixar e agarrar. Libertar é deixar fluir, circular e movimentar, é ser um sistema aberto, dinâmico e renovador. Estagnar, amarrar, prender ou parar, como diz o provérbio popular, é morrer.
Dependendo do estado de consciência, assim o ser humano se vai desembaraçando de ilusões em direcção a focos de luz maiores e melhores, num processo continuo que o leva a deixar para trás as percepções mais deturpadas ou distorcidas pelo egotismo, com gratidão pelo grau de evolução que a experiência anterior lhe permitiu alcançar. Como no Outono, em que as folhas caem da árvore, a efectiva libertação ocorre aquando da maturidade, quando há sabedoria suficiente para orientar e salvar.

Livramento

A verdadeira autonomia e independência são interiores. Corresponde à vibração anímica do amor, reino da abundância e da doação, da altivez, acima do diafragma, ao reino da Graça e da abundância, a Providência divina, repleta de luz e de leveza. Liberta dos p(r)esos materiais, mesmo sem nada, a pessoa é, como interpretou Nina Simone e é sentindo quem é, ao abrir o coração, viver cada emoção e ouvir a intuição que o indivíduo pode, doravante, viver em conformidade com esse conhecimento, fiel à sua própria natureza.
Contudo, o mais vulgar é a ampliação, amputação ou ajustamento das características e peculiaridades para uma rápida e conveniente adaptação à cultura vigente, aos papéis sociais, às expectativas alheias, se necessário recorrendo a comprimidos… para normalizar, ‘adormecer’ ou anestesiar, incluindo os sentimentos. Quer esta implosão psicológica interna quer a rejeição externa, que se crê ser causa de limitação e, por isso, se pretende desembaraçar, mesmo que abruptamente, são falsas libertações.
Ser livre é diferente de se ter a sensação de o ser. Embora o controlo seja cada vez mais remoto, tecnológico e indirecto, ele está omnipresente e tornou-se, no actual sistema, não apenas consentido mas também, devido aos sentimentos de insegurança fabricados e publicitados, desejado pelos próprios indivíduos. Enquanto domina, como denuncia a Teoria Crítica, o sistema difunde a auto-propaganda através do consumo, trabalho, “media”, educação e cultura em vigor como meio de libertação.
Contudo, como explicitou a 10/10/2011 Óscar Quiroga, o que impera é a opressão. Mesmo nos relacionamentos humanos, quando não se atinge a frequência amorosa, (ab)usa-se da ameaça, culpa, chantagem, julgamento, manipulação ou mentira que elimina o espaço, que não se tem e por isso não se dá, e, assim, sufocada, vicia-se a ligação num curto circuito fechado de dependência, medo ou subordinação. As Pessoas Altamente Sensíveis, como esclarece Elaine Aron, deixam-se aprisionar pelas exigências dos outros, por exemplo.
Sem amor e sem verdade, a escassa liberdade - de pensamento, expressão, opinião, circulação ou acção - reflecte-se numa atitude de bloqueio face ao meio ambiente: a ocupação do tempo, o condicionamento do ar como o barramento da água, aprisionada por estruturas equivalentes às que restringem o livre fluxo venusiano. Trata-se de um espelho de toda a estratégia mental que, por insegurança e falta de auto-conhecimento, a leva a investir na manutenção de algo que é, por natureza, constantemente transformado e alter(n)ado.
Contudo, florescem os mais diversos movimentos a favor da liberdade, desde o software ao amor, dois séculos após a independência americana e a Revolução francesa e meio após o movimento de contracultura hippie, nascido em S. Francisco e retratada no musical e filme “Hair”, contra a guerra, o consumismo e as restrições sociais, com o seu “flower power”, “make love, not war”, o desnudamento, os cabelos cumpridos, o valor da amizade, simplicidade e festividade e de vanguarda a favor dos movimentos ecologistas, sociais, pacifistas, comunitários e esotéricos, que entretanto se desenvolveram.

A peça, estreada desde então um pouco por todo o mundo, com as mais diversas traduções e versões, contou nos seus elencos com nomes como Sérgio Godinho (em França), Donna Summer (Alemanha) ou Sónia Braga (no Brasil) e as suas músicas ficaram para a História bem como a sua influência nas artes e nos costumes. A criação retrata uma tribo urbana liderada por Berger, um homem extrovertido e amigo de Claude, um romântico pensativo apaixonado por Sheila, uma mulher com destacado estatuto social. Embora contra a guerra no Vietname, o líder acaba, no filme, ao contrário do musical original, por embarcar, por engano, no lugar do seu amigo recrutado e morre não sem deixar o seu exemplo de combate a favor da paz, que passa a ser seguido.


(1) GIBRAN, Kahlil - O profeta, Pergaminho, 2004, pág.103.

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