quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

O bichinho da rádio

Precisamente no dia que mundialmente lhe é dedicado, publicamos um texto, escrito há 17 anos, sobre os motivos por detrás da paixão que suscita entre profissionais e ouvintes.
Texto e fotografia Dina Cristo
O fascínio da rádio, quer para quem a executa quer para quem a ouve, deve-se ao predomínio do audível e à presença do invisível, às suscitações que um elemento como a voz desperta. Enquanto meio predominantemente sonoro, é constituído por uma dupla ausência – como lhe chama Fernando Curado Ribeiro – na medida em que “aquele que fala não vê o que escuta; o que escuta não vê o que fala”[1].
Esta característica, per si, desencadeia a faculdade de representar no espírito as pessoas e/ou os objectos ausentes. Cria-se a partir desse instante as mais diversas concepções acerca do que é dito, sugestionado também pela forma como tal é realizado. “Para tanto, até inconscientemente ele [o ouvinte] trata de reconstituir na sua imaginação o espectáculo que mais lhe convém, para melhor compreender o que lhe explicam pelo som”[2].
Se, por um lado, o ouvinte reconstitui o rosto de quem fala, este, emergido num estúdio de rádio, tem virtualmente, por seu lado, todas as faces e os corpos dos ouvintes que se dignar imaginar. É, digamos, um duplo fascínio que passa por esse elemento vital que é o som. “Pela sua forte ressonância psicológica e pela importância dos afectos que põe em jogo (pela ausência, nomeadamente de todo e qualquer elemento visual), a voz, e na rádio em especial, abre o espaço do imaginário onde o ouvinte, por exemplo, reconstrói o corpo daquele que fala a partir do que lhe é sugerido pela sua voz”[3].
A voz constitui-se, assim, como peça fundamental neste puzzle. A propósito dos tempos em que a televisão não existia, Michel Tournier sublinha a sua importância: “Permanecendo sem rosto e sem olhar, as vozes só ganhavam em mistério e a sua magia actuava por vezes com uma eficácia tremenda sobre os homens e as mulheres em estado de escuta. Recorde-se que em muitas religiões os decretos divinos se menifestavam por intermédio de uma voz vinda das alturas de um céu vazio. Assim apareciam os locutores ao grande público, criaturas incorpóreas e dotadas de ubiquidade, ao mesmo tempo todo-poderosas e inacessíveis”.
“A rádio possuía mais um imenso privilégio relativamente à televisão: o de se dirigir aos olhos da alma e não aos do corpo. O homem da televisão tem apenas o rosto que tem. O da rádio tinha todos os rostos que os seus ouvintes lhe quisessem emprestar, fazendo unicamente fé nas suas inflexões vocais”. Como exemplo, Michel Tournier contrapõe a aparência física de Tristan Vox com a ideia que dele construíam os ouvintes: “A imagem que geralmente se fazia dele, a partir da sua voz, era a de um homem na segunda juventude, alto, magro, suave, de cabelos castanhos e rebeldes cujo “cair” romântico atenuava o que o rosto nobremente atormentado, de maçãs um pouco salientes, poderia ter de excessivamente sombrio, apesar da doçura dos grandes olhos melancólicos. Tristan Vox chamava-se na realidade Félix Robinet e andava perto dos sessenta. Era baixo, careca e barrigudo”[4].
Isabel Carlos defende no seu ensaio que “cada voz sugere um corpo, imaginário, metafórico, que nunca coincide com o corpo real do locutor” e acrescenta que são de ordem acusmática os fantasmas sexuais que a voz de um profissional de rádio suscita e que aquando da sua presentificação física se desvanecem.
A rádio gera várias doses de cumplicidade, intimidade e afectividade entre os interlocutores. Uma ligação quase umbilical, como se a rádio, nomeadamente o transístor, fosse uma prótese do ouvido humano. “O homem da rádio está sempre muito mais livre, muito mais à vontade porque não pode ser visto. Está muito menos constrangido e é por isso que o tom, em rádio, é geralmente mais descontraído. Quando estou na rádio sinto-me em casa, na minha intimidade, à minha vontade; na televisão, é como se estivesse numa recepção, num serão em casa de pessoas que não conheço”[5].
A função emotiva e passional da rádio é relembrada por Adriano Duarte Rodrigues. Na sua obra “O campo dos media”, o autor descreve este uso afectivo do meio bem como a natureza envolvente e quase maternal do seu discurso. “Há aliás algo de fascinante e de encantamento na escuta da rádio. O estudante que faz os trabalhos escolares ao som da rádio, a dona de casa que a mantém acesa como fundo sonoro enquanto faz as lides domésticas, o automobilista que vai escutando, com atenção intermitente, a voz do locutor ou a melodia favorita que encomendou por telefone procuram um envolvimento, uma espécie de redoma sonora”[6].
Com a evolução da escuta radiofónica, que de colectiva se tornou familiar e desta se transformou em individual, o próprio discurso utilizado na rádio se modificou, tornando-se mais pessoal. A propósito, já em 1964, Fernando Curado Ribeiro escreve: “Cada ouvinte, encontra-se quase sempre só, perante o seu receptor. Portanto, no momento em que o conferencista fala, dirigindo-se a este público (que ultrapassa em número qualquer assembleia normal), apenas o faz, na realidade, a um único ouvinte. É por esta razão que se diz (e justamente) que há, nas comunicações estabelecidas pela Rádio, um certo carácter confidencial”[7].
A paixão pela rádio é desencadeada pela conjugação destes factores físicos, psicológicos e emotivos. O fascínio de estar a falar para alguém que não se conhece, não se vê, mas que se imagina – pelo lado do emissor – e a magia de ouvir a voz de alguém a partir da qual se lhe reconstrói o corpo material – por parte do ouvinte – põe em comunhão dois seres à partida desligados. “Não se vê aquele que fala na Rádio; dá-se uma espécie de abolição da sua imagem visual; mas ouve-se, e a tonalidade dessa voz é inseparável da tentativa de um conhecimento do homem”, escreve Curado Ribeiro para quem a tonalidade da voz chegam a revelar mais sobre um ser do que propriamente o rosto ou até a fisionomia.
A dimensão sonora que a rádio incorpora, devolve-lhe ronovadas magias e imagens sonoras que a palavra falada ‘apenas’ legenda. Os ruídos, o som, o silêncio, a música fazem parte da audiosfera ou dimensão sonora, da qual a rádio se alimenta e, ao mesmo tempo, nutre o ouvido humano. “O radiouvinte «vê» o jogo relatado na rádio, sente a vibração do estádio, participa das emoções que «o grão da voz» do locutor corporiza. Como dizia Montesquieu, existe de facto uma imagem visual dos objectos, uma imagem sonora que se move, ora lenta ora acelerada, no imaginário com todas as suas dimensões”[8].
A importância do que é dito pode ser diminuída pelo acto de dizer e pela forma como tal é elaborado. A voz é um elemento que participa na significação, ela pode construir um conjunto de significações, uma linguagem articulada com sentido, refere Isabel Carlos[9]. Mas para além deste também desempenha outros papéis. “A sua função consiste não apenas em assegurar o contacto com o ouvinte mas também em mantê-lo – tornando-se, ela própria, mensagem quando o discurso tem pouco interesse (…)”[10].
Segundo Adriano Duarte Rodrigues, a radiodifusão não se limita a representar as vozes dos personagens: “É a totalidade do mundo que é radiodifundida sob o modo metonímico, na medida em que o som radiofónico dá conta dos corpos e produz de facto a acção. Não representa mas cria a realidade, convertendo-se em corpo abstracto que vem integrar o nosso mundo, apelando para a totalidade da nossa experiência sensorial, imagética, intelectual”[11].
A rádio é o meio, por excelência, de incorporação da voz – elemento que é simultaneamente presença e ausência do corpo físico. Ela representa-o, mas, no entanto, a sua materialidade mantém-se invisível. Para Isabel Carlos, a voz enquadra-se entre a palavra (dita) e o corpo. A sua dimensão vocálica assume-se como a essência do ser humano. “Não se pode reduzi-la à sua dimensão corporal porque ultrapassa-a como valor acrescentado, quanto como substituição do próprio corpo. Mas é igualmente verdadeiro que não há voz sem corpo que a emita: o corpo é o seu limite”[12].
Há diferentes tipos de vozes. Através delas o ouvinte desfruta dos mais diversos graus de intimidade. “Há vozes finas e vozes grossas, vozes legíveis e vozes angulosas e cheias de rodriguinhos (…) Há vozes anódinas, discretas, insípidas…”[13]. Adriano Duarte Rodrigues salienta a sua natureza corporal. “Tal como os corpos, as vozes são, ao mesmo tempo, todas idênticas e todas diferentes. Paradoxo em que se enraíza e de que se alimenta o fascínio da audiência da rádio (…) perfeito na medida em que o dispositivo radiofónico toma a voz pela personagem, não na presença mas na ausência dos corpos”.
“Corpo abstracto, a voz da rádio é”, para Adriano Duarte Rodrigues,  “plasticidade pura, modulação sonora etérea incorporal, virtualidade admirável de se substituir ao corpo, máscara falante na ausência do actor. É graças a esta abstracção, a esta virtualidade modulatória, a esta autonomização do corpo, que a voz é ao mesmo tempo materialidade transportável, superfície de inscrição e figura pura inscrita nos registos magnéticos”[14].
A rádio converte o sujeito do discurso em pura voz. “É por isso um dispositivo performativo de uma espantosa sinédoque metonímica particularizante. Autonomizando a voz da personagem que a profere, a rádio consegue não só representar discursivamente mas substituir realmente a parte pelo todo, em virtude da contiguidade entre a voz proferida e a personagem que a profere”[15] denota Adriano Duarte Rodrigues que também refere a questão primordial: “A voz da rádio é assim uma voz originária em que prevalece à significação das palavras o fluxo modalizador do som, a força enunciadora do corpo. Força enunciadora excessiva, na exacta medida da ausência do corpo”[16].
Desta forma a origem da paixão pela rádio – esse afecto extremoso, latente ou demonstrado – está no conjunto composto pelas suas principais características, o som e a voz, que por sua vez alimentam o invisível, o imaginário - factores que remetem para a afectividade e a intimidade, elementos tão peculiares na rádio.

[1] RIBEIRO, Fernando Curado – Rádio Produção – Realização – Estética, Editora Arcádia, Lisboa, 1964, pág. 148.  [2] Idem, pág. 149. [3] LAVOINE, Yves – A rádio, Editora Veja, Lisboa, s/d, pág. 168. [4] Idem, pág. 179. [5] Entrevista de P. Bellamare ao La Croix de 26/1/1977 citado por Yves Lavoine. [6] RODRIGUES, Adriano Duarte – O campo dos Media, Editora Veja, Lisboa,s/d, pág.118. [7] RIBEIRO, Fernando Curado – Rádio Produção – Realização – Estética, Editora Arcádia, Lisboa, 1964, pág. 151. [8] RODRIGUES, Adriano Duarte – O campo dos Media, Editora Veja, Lisboa, s/d, pág. 126/127. [9] CARLOS, Maria – A voz: ocorrências in Revista “Comunicação e Linguagens” - “O corpo, o nome e a escrita”. [10] LAVOINE, Yves – A rádio, Editora Veja, Lisboa, s/d, pág. 167. [11] RODRIGUES, Adriano Duarte – O campo dos Media, Editora Veja, Lisboa, s/d, pág. 126. [12] CARLOS, Maria – A voz: ocorrências in Revista “Comunicação e Linguagens” - “O corpo, o nome e a escrita”, pág. 81. [13] SCHAEFFER, Pierre – Notas sobre a expressão radiofónica, 1944. [14] RODRIGUES, Adriano Duarte – O campo dos Media, Editora Veja, Lisboa, s/d, pág.125. [15] Idem, pág.125/126. [16] Idem, pág.127.

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1 Commentarios:

Anonymous Anónimo disse...

A rádio era a minha irmã. Era a ponte para o mundo. Era o passaporte para a minha liberdade. A rádio ainda é uma fonte de inspiração.

segunda-feira, 18 fevereiro, 2013  

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