terça-feira, 25 de janeiro de 2011

A Ciência da Polis VIII


Nesta oitava parte desenvolvemos a importância da verdadeira educação, em detrimento do mero adestramento.

Texto José Luís Maio fotografia Dina Cristo


“…A educação não pode continuar a ser entendida em termos de uma correria desenfreada para alcançar um emprego, como se (usando propositadamente uma rudeza de expressão) os seres humanos fossem animais de carga que se devam atrelar a uma carroça, ainda que dourada, tão logo seja possível. Deve, sim, começar a ser encarada como um processo de emersão de valores sólidos e de capacidades intelectuais e afectivas que permitam a cada indivíduo tornar-se mestre (ou seja, conquistar a capacidade de lidar correctamente) face às diferentes circunstâncias que a vida lhe irá apresentando… A máxima pluralidade de informação possível – sobre os mais diversos âmbitos da actividade e do conhecimento humanos e não, apenas, sobre o âmbito restrito de uma profissão, quase sempre aleatória ou superficialmente escolhida – deve ser propiciada a todos; pelo contrário, o mínimo de imposição deve ser praticado. Não tendes o direito de impor uma educação de escravos. Tendes, sim, o dever de assegurar uma educação de liberdade – de liberdade interior, de liberdade de autoconstrução, de liberdade de autodescoberta… A Nova Educação constituirá, em grande medida, o processo pelo qual se concede a cada indivíduo a oportunidade de descobrir por si mesmo – e, assim, enraizar profundamente – os princípios éticos que haverão de nortear a sua conduta social. Agindo de acordo com a sua própria convicção, com o seu livre auto-condicionamento, todo o indivíduo tenderá a encontrar a alegria ao contribuir para o bem comum…”(1).
Já foi dito algo acerca das naturezas essenciais dos animais e dos homens. O que é partilhado pelos elementos de ambos os reinos da natureza é “a mesma natureza física fundamental, bem como muitos instintos (que formam o seu subconsciente)”. Porém, o ser humano é “auto-consciente, o que decorre de ter o Princípio Mental activado (embora muito pouco, nas primeiras etapas) e, assim, um corpo mental definidamente constituído e formalmente organizado, o que lhe permite ter uma ligação individualizada entre o Espírito (que é pura unidade) e as formas materiais (diferenciadas e separadas) e, assim ter uma Alma individual, enquanto que a evolução animal se processa através das chamadas Almas-Grupo (ou melhor, das Almas colectivas, visto que se trata de uma consciência colectiva e não de uma consciência grupal, no seu sentido superior, própria da evolução super-humana”(2).
Para um melhor esclarecimento acerca do conceito “Alma-Grupo”, acrescenta-se, da mesma obra: “A Alma-Grupo de cada espécie animal preside aos seus mecanismos e determina a actuação do instinto. Como que pairando sobre cada unidade de vida, a Alma Grupal (ou Alma Colectiva) providencia os impulsos migratórios, os mecanismos de defesa, a aprendizagem da adaptação ao meio natural, a colaboração organicista (por exemplo, nas colmeias das abelhas), etc… Imagine-se os dedos de uma mão que, em simultâneo, estivessem enfiados numa placa de cartão perfurado (que impede de ver a mão como um todo). Aparentemente, no lado mais externo, eles não teriam nenhuma especial relação entre si; apesar de pertencentes a uma mesma espécie, aparentariam diferenças e seriam absolutamente independentes. Na realidade, porém, a sua verdadeira raiz e impulsos para a manifestação subjazeriam, ocultamente, do outro lado do cartão. De qualquer modo, nesse mundo aparente e dissociado da raiz que os une, cada informação é processada e transmitida para o outro lado – uma picada, por exemplo, ou qualquer outra sensação táctil. E a todo o momento o conjunto beneficia-se das informações colectadas e reencaminhadas para cada unidade. Assim acontece com a Alma Colectiva animal. A Alma Grupal pode ser comparada a uma enorme tina de água incolor (no Mundo Anímico), de que se retiram pequenas porções individuais que vêm procurar experiência no mundo externo (os animais englobados na Alma-Grupo); quando cada porção regressa ao manancial colectivo, vai-lhe introduzindo cor e substância, para ele contribuindo com a sua própria tonalidade e com os seus próprios ingredientes, conseguidos através da experiência particularizada. Da progressão dessas simbioses e combinações vão sempre surgindo (vindo à encarnação) seres detentores do produto das novas ou últimas experiências adquiridas”.
A entidade humana – por possuir “auto-consciência” e “individualidade” (única e intransmissível em relação aos demais seres humanos), isto é, por pertencer de facto ao primeiro reino da natureza em que a “unidade mental” que o completa adquire foros de “cidadania” real e plena (e só assim é que pode ser responsabilizado pelos seus próprios actos, sentimentos e pensamentos, o que não sucede nos animais) – distingue-se do ente animal e não pode ser sujeita ao adestramento que os humanos realizam neste. No animal, através da domesticação, são fortemente estimulados o veículo “kámico” (ou emocional) – por natureza inconsciente das consequências da sua acção no mundo que o envolve – e a rudimentar inteligência, subjacente a todas as manifestações de vida sub-humanas.
O total condicionamento [externo (e não auto-condicionamento, que é interno e uma expressão da vontade superior, espiritual, do ser humano – atman)] a que submetemos os animais só é “bem sucedido” porque, nestes, a inteligência (capacidade de resposta) é exclusivamente passiva e reactiva, e não activa e criadora, atributos da alma espiritual existente no indivíduo. Este, ao despertar (na personalidade) a sua consciência para patamares mais elevados – os níveis espirituais (“buddhi-manásicos”, próprios do eu superior, ou da mente superior e intuição) –, por meio da educação, da instrução e por um esforço de aprimoramento ético/moral, ficará capacitado a levar a cabo um conjunto de actividades e realizações geradoras não só de bem-estar e saúde pessoais, mas principalmente nos mundos físico, psíquico, mental e espiritual dos seres que delas beneficiem. As actividades e realizações de especial e elevada qualidade, inquestionável nobreza e vastíssimo alcance serão “imortalizadas”, ou seja, apesar de serem geradas na (e pela) personalidade (condicionalmente mortal) dos indivíduos, cobrirão o abismo que separa os níveis mentais inferiores (inerentes ao quaternário inferior) dos superiores e passarão a integrar a sua tríade espiritual (imortal), constituindo aquilo que na terminologia religiosa é conhecido por “tesouros que acumulamos no céu” (3).
Mais uma vez verificamos aqui como uma teoria científica (neste caso psicológica) é transformada em norma religiosa. De facto, “Não dissocieis a Sabedoria do Amor nem a Religião da Filosofia. A Religião deverá ser a Filosofia do Amor; a Filosofia deverá ser a Religião da Sabedoria. Unicamente assim podereis aceder à Sabedoria Divina. Se não amardes o Universo, jamais o havereis de compreender, jamais vos havereis de tornar sábios de verdade – da mesma forma como, se não amardes o vosso semelhante, nunca o podereis entender e ajudar, por mais teorias psicológicas que conheçais. Só pelo Amor a Razão de Ser que está dentro de vós pode compreender a Razão de Ser de todas as coisas… No entanto, se não dirigirdes sabiamente o amor, ele acabará por degenerar num sentimento caótico, inútil e cego, nada mais gerando senão ansiedade e bloqueios. Por isso, não estagneis num amor fraco e superficial que, tantas vezes, serve de desculpa e de pretexto para quem se recusa a fazer o esforço de aprender mais…” (4).
Para a egrégia e profunda sabedoria hindu, “velha” de muitas centenas de milhar de anos e berço de posteriores civilizações ocidentais, desde a persa à grega, uma das cinco causas da miséria humana é a ignorância – avidya em sânscrito [a (não, ausência de) + vidya (sabedoria)] –, não uma ignorância qualquer, mas a ignorância fundamental, isto é, a ignorância acerca da verdadeira natureza de todos os seres humanos.
A resposta da esmagadora maioria das nossas crianças e jovens às imposições brutais do caos social e da ignorância fundamental e congénita desta civilização – seja o desrespeito e desprezo aos pais nos lares, seja a rejeição e insurreição contra o sistema escolar – demonstra inquestionavelmente que a política de educação vigente é obsoleta e incapaz de motivar e entusiasmar, quer educadores, quer educandos, o que acaba por os tornar rebeldes, agressivos, anti-sociáveis, marginais e dependentes de todo o género de vícios.
Enquanto, por um lado, os pais não têm outra solução que não a de abandonar os seus filhos prematuramente – antes dos três anos – em instituições/depósitos apenas excepcionalmente competentes, para poder “ganhar a vida” – ou antes, na maioria dos casos, para “sobreviver” fisicamente e sem acesso aos bens realmente espirituais, os “bens divinos” de Platão –, por outro, o “habitat” escolar conserva os mesmos equipamentos cinzentos, desinteressantes e medievais, comparativamente à inebriante e tentadora tecnologia lúdica exterior das grandes catedrais de consumo, mantém os estudantes simbólica e literalmente imobilizados nos coletes de força que são os programas curriculares impostos de “cima”. É caso para perguntarmos: onde, quando e como é que as crianças podem aprender a utilizar sua própria criatividade, a desenvolver a sua individualidade, única no universo, em vez de jazer um autómato programado pela tirania alheia (por muita simpatia, revestida de “caridade esmoler”, que aparente)?
Como dizia o eminente investigador João dos Santos, a criança, no seu sentido etimológico, é alguém que não só é criado (bem-criado ou malcriado, bem-educado ou mal-educado), mas principalmente alguém “capaz de criar”.

A ciência da educação
A suprema importância da educação na vida de qualquer país tem de estar na proporcionalidade directa da envergadura ética e profissional daqueles que devem levá-la a cabo, sejam os ideólogos (legisladores e governantes), sejam os executores (pais e professores).
Contrariamente à usualmente conhecida por Sabedoria das Idades, Eterna Sabedoria, ou Ciência Espiritual, que aguarda paciente e misericordiosamente o momento em que, assim o queiramos, galvanizará todo o formidável potencial que caracteriza o Ser Humano no seu mais excelso esplendor e na sua mais magnífica estatura, no seio sabiamente hierarquizado do Todo Universal – precisamente no centro da Cruz Cósmica da plenitude da Vida, entre os reinos sub-humanos (adormecidos para a Unidade Divina) e supra-humanos (despertos e activos nessa Unidade) –, impera ainda no mundo e nas nossas vidas o pretenso, vulgar, limitado e constrangedor saber humano (a “sabença” no dizer de António Sérgio), cujos frágeis e cada vez mais obsoletos pilares teimam em perpetuar a fraqueza (física), o medo (emocional) e a inépcia (mental) na comunidade das crianças, adolescentes, jovens, pais, educadores, professores e cidadãos em geral.
É óbvio que a repressão da energia de todo o potencial que caracteriza os seres humanos – desde o nível físico até ao nível espiritual – só poderá dar maus resultados, pois é impossível reprimir seja quem for indefinida e impunemente, até ao momento da sua morte, como nos demonstra uma vulgar panela cheia de água hermeticamente fechada, ao lume.
Aprendamos novamente com Platão: “…São leis justas porquanto produzem o bem-estar daqueles que as utilizam proporcionando todas as coisas que são boas. Ora, os bens são de duas espécies, a saber, humanos e divinos; os bens humanos dependem dos divinos e aquele que recebe o maior bem adquire igualmente o menor, caso contrário é privado de ambos”.
“Entre os bens menores a saúde vem em primeiro lugar, a beleza em segundo, o vigor em terceiro, necessário à corrida e todos os demais exercícios corporais; segue-se o quarto bem, a riqueza, não a riqueza cega, mas a de visão aguda, que tem a sabedoria por companheira”.
“A sabedoria, a propósito, ocupa o primeiro lugar entre os bens que são divinos, vindo a racional moderação da alma [disposição moderadora da alma associada à inteligência; numa palavra, a temperança” (sobriedade)] “em segundo lugar; da união destas duas com a coragem nasce a justiça, ou seja, o terceiro bem divino, seguido pelo quarto, que é a coragem”.
De posse do conhecimento do que é nefasto e benéfico para as crianças, importa agora atentar para o facto de que se, conforme nos ensina Platão, “devido à força do hábito é na infância que todo o carácter é mais efectivamente determinado”, é mister estabelecer-se uma sinopse de prioridades a instituir, de modo a que os “bens” gerais – “humanos e divinos” – floresçam naturalmente em todas as crianças, passando de “potenciais” (possíveis e invisíveis) a “actuais” (efectivos e visíveis).
Também na ciência da educação é a lei hermética e universal da analogia ou da correspondência tão bem aplicada, como, aliás, não podia deixar de ser, pois, a não ser assim, isto é, se não incluísse toda a realidade, tal lei jamais poderia ser tida por “universal”.
Basta um pouco de atenção (ou, mais exactamente, de interiorização ou aprofundamento do pensamento – coisa a que, infelizmente, não estamos muito habituados, dado o ritmo frenético de vida quotidiana que decidimos adoptar, e não só…) e, de acordo com essa lei, transpormos os fenómenos básicos e elementares de manifestações da vida – neste caso, o da gravidez da futura mãe, quando o nascituro carregado de vitalidade se agita e movimenta no ventre, e o início da existência fisicamente autónoma dos recém-nascidos, quando chora poderosamente – para a instituição generalizada de um conjunto de normas educativas correctas, neste caso referentes à ginástica e dança para o corpo e à música (que inclui o canto) para a alma.
Para tal, recorramos novamente a Platão e às suas Leis: “ –…A nutrição correcta tem de ser decididamente capaz de tornar tanto corpos quanto almas em todos os aspectos os mais belos e melhores possíveis… E suponho que, tomando o mais elementar dos aspectos, os corpos mais belos devem, já da mais tenra infância, desenvolver-se com a maior normalidade possível… Acontece observarmos que, no que diz respeito a qualquer ser vivo, o primeiro impulso representa de muito o crescimento mais intenso e mais longo, a ponto de muitas pessoas afirmarem convictamente que, quanto à altura, os indivíduos crescem mais nos primeiros cinco anos de vida do que nos vinte seguintes. Mas nós sabemos que, quando o crescimento ocorre rapidamente desacompanhado de muito exercício adequado, produz no corpo males incontáveis. E que corpos que recebem o máximo de alimento requerem o máximo de exercício…
– O que queres dizer? Será que pretendemos prescrever o máximo de exercício para os recém-nascidos e as criancinhas?
– Não. Na verdade, bem antes disso. Nós prescrevê-lo-emos para aqueles que são nutridos nos corpos das suas mães… Uma tal prática é mais fácil de ser compreendida no meu Estado, porque lá há pessoas que praticam os jogos até ao excesso. Ali encontramos não apenas meninos mas por vezes mesmo homens velhos criando pequenas aves… Mas essas pessoas estão longe de crer que o adestramento que lhes proporcionam excitando a sua pugnacidade produz exercício suficiente; além disso, cada uma delas apanha a sua ave e com ela no punho, se for menor, ou no braço, se for maior, caminha muitos estádios a fim de melhorar a condição não dos seus próprios corpos, mas sim a desses animais. Assim se mostra claramente a qualquer observador que todos os corpos são beneficiados, como se por um tónico, quando são deslocados mediante qualquer tipo de movimento, seja quando são movidos por acção própria – como num balanço ou num barco a remo –, seja quando são transportados no dorso de um cavalo ou por quaisquer outros corpos de movimento célere; e também mostra que é esta a razão por que os corpos podem assimilar eficientemente os seus suprimentos alimentares e bebida e proporcionar-nos saúde, beleza e vigor… Tanto para o corpo quanto para as almas dos bebés um processo de nutrição infantil e movimentação, que seja o mais ininterrupto possível…, é sempre salutar e especialmente no caso dos bebés mais novos, que deveriam, se possível, ser balançados como se estivessem num navio; com os recém-nascidos dever-se-ia reproduzir esta condição com a máxima proximidade da condição original. Uma evidência suplementar a favor disto pode ser constatada no facto desse procedimento ser adoptado e a sua utilidade ser reconhecida tanto por quem alimenta os bebés, quanto por quem administra medicamentos. Assim, quando as mães têm filhos que padecem de insónia e desejam acalmá-los para que adormeçam, o tratamento que lhes dão não é imobilizá-los mas sim movê-los, pois embalam-nos nos seus braços constantemente; e em lugar de silêncio fazem uso de uma espécie de cantarolar e assim literalmente fascinam os seus bebés…, por meio do emprego do movimento combinado da dança e da canção como medicamento…”. Tal doença é uma forma de “medo e os medos devem-se a uma condição precária da alma. Assim, sempre que se aplica um sacudir externo a males desse tipo, este movimento externo aplicado domina o movimento (a perturbação) interno de medo e, ao dominá-lo produz uma visível tranquilidade na alma…”.

(1) In As Novas Escrituras, Vol. IV, A Educação, do Centro Lusitano de Unificação Cultural (CLUC), 1996. (2) In Luzes do Oculto, do CLUC, 1998. (3) Evangelho de Mateus, XIII. (4) In As Novas Escrituras, Vol. IV, A Filosofia do Amor, do CLUC, 1996.

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