A Ciência da Polis VI

Texto José Luís Maio fotografia Dina Cristo
No primeiro artigo deste trabalho foi dito que os governantes deveriam conhecer “de ciência certa”, isto é, com base na sua própria vivência, os quatro valores fundamentais – o Bem (Comum ou Geral), a Beleza, a Justiça e a Verdade –, para estarem nas melhores condições possíveis para dirigir os Estados. E porquê? Precisamente porque, se tais valores manifestam uma Realidade mais elevada, seja qual for a designação que lhe dêmos – “Deus”, “o Divino”, “o Absoluto”, “o Ser Infinito”, “a Vida Eterna”, “a Energia Una”, etc. –, esta Realidade inclui todas as formas e qualidades de ser e de consciência existentes no Universo, designadamente (para o caso que nos interessa) a Humanidade, colectivamente, e o ser humano, individualmente.
Ora, sendo o Reino Humano (o 4.º reino da Natureza) parte integrante do Divino, como os demais reinos, é evidente que os seus elementos constituintes, os seres humanos, possuem os mesmos atributos e qualidades do Ser Absoluto, “Aquele Acerca do Qual Nada Se Pode Dizer”, do mesmo modo como, de acordo com a Lei das Analogias ou das Correspondências, cada gota de água do oceano possui a mesma natureza e os mesmos elementos constituintes desse oceano (hidrogénio e oxigénio).
Quando está na posse das suas faculdades normais mais elementares, todo o indivíduo tende a relacionar-se de forma harmoniosa e pacífica com os seus concidadãos. O conflito, que dilacera a alma e nos faz sofrer com mais ou menos intensidade em todas as dimensões do nosso ser, é, portanto, uma excepção indesejável e um duro golpe no nosso equilíbrio físico, psicológico e espiritual. E, portanto, a atitude mais normal a tomar é procurarmos ver-nos livres desse estado de infelicidade o mais rapidamente possível, através dos recursos ao nosso dispor, para que possamos regressar ao “lar” (condição, atmosfera, “oikos”, raiz grega da palavra “ecologia”) da paz e, por meio da nossa capacidade inteligente, envolvida por esse estado de harmonia, criar realidades crescentemente globais e generalizadas de bem-estar pessoal, fraternidade grupal e bem-aventurança planetária.
Se todo o ser humano, enquanto exteriorização individualizada do Divino, possui dentro de si o Bem, a Beleza, a Verdade e a Justiça (ou melhor, ele próprio é uma expressão, mais fiel ou mais desvirtuada, desses valores universais e eternos), então um dos objectivos essenciais da nossa existência é a aquisição gradual de uma consciência cada vez mais elevada, até nos tornarmos uma “gota” consciente do “oceano” da Vida Divina omnisciente. Só assim poderemos legitimamente, um dia, afirmar – como fez o sábio judeu Jesus, mais exactamente Joshua Ben Pandira, há cerca de 2.000 anos – “eu sou” (uma ínfima centelha companheira numa fraternidade de Luz do Fogo Infinito de) “o Caminho, a Verdade e a Vida”.
De outro modo, andaremos eternamente à volta da nora, com a cerviz sob o jugo da opressão, da ignorância, da mediocridade e da estupidez, esbanjando e atrofiando as nossas melhores capacidades físicas, mentais e espirituais, sem outro fim que não seja o de perpetuar o sofrimento, o egoísmo, a miséria, a doença, a desconfiança, o ódio e a guerra. A insânia total dos “tempos modernos” teima em querer tirar-nos a genuína e pura alegria de viver. A sua única obsessão desvairada é pôr-nos a produzir, a vender e a comprar “bens” (ou males?) visíveis que nos vão apodrecendo o íntimo – os bens eternos e invisíveis da alma –, cujas salas, votadas ao mais completo abandono, pois nada colocamos lá que a faça revitalizar e despertar, acumulam poeira em vez de algo verdadeiramente digno. E aqui cada um de nós terá que fazer a sua opção de vida mais importante, pois, como nos adverte Morya, um grande sábio: “Sim, vós hesitais. Não estais bem certos de quererdes abdicar e servir, de quererdes servir já ou de quererdes ter coragem. Enquanto isso, o bem comum fica à espera; enquanto isso, a humanidade espera; enquanto isso, nós esperamos; enquanto isso, vós esperais. Sois a vergonha de vós próprios!...”(1).
A ignorância institucionalizada, que infelizmente se instalou em definitivo no psiquismo dos poderosos (agentes da mediocridade, da angústia, do medo e do sofrimento), só deixará de minar e fragmentar a sociedade se esta tiver a vontade determinada de se lhe opor através da sua inteligência lúcida e íntegra. Como já foi dito e repetido, o(s) poder(es) de hoje, curiosa e estranhamente – ou talvez não –, pretendem subrepticiamente banir dos programas escolares a sabedoria multimilenar inspiradora das civilizações de todas as eras e lugares. Será por acaso? A leitura (e a consequente reflexão que suscita) dos filósofos da Antiguidade fornece-nos inúmera informação sobre tudo o que está dito acima. Consta, aliás, de um dos livros do Antigo Testamento judaico-cristão, o Eclesiastes, o seguinte: “Todas as torrentes hibernais correm para o mar, contudo, o próprio mar não está cheio. Ao lugar de onde correm as torrentes hibernais, para lá elas voltam a fim de sair correndo. Todas as coisas são fatigantes; ninguém pode falar disso. O olho não se farta de ver, nem o ouvido se enche de ouvir. Aquilo que veio a ser é o que virá a ser; e o que se tem feito é o que se fará; de modo que não há nada de novo debaixo do sol. Existe algo de que se possa dizer: “Vê isto; isto é novo”? Já tem existido por tempo indefinido; o que veio à existência é de tempo anterior a nós…”.
Ora, sendo o Reino Humano (o 4.º reino da Natureza) parte integrante do Divino, como os demais reinos, é evidente que os seus elementos constituintes, os seres humanos, possuem os mesmos atributos e qualidades do Ser Absoluto, “Aquele Acerca do Qual Nada Se Pode Dizer”, do mesmo modo como, de acordo com a Lei das Analogias ou das Correspondências, cada gota de água do oceano possui a mesma natureza e os mesmos elementos constituintes desse oceano (hidrogénio e oxigénio).
Quando está na posse das suas faculdades normais mais elementares, todo o indivíduo tende a relacionar-se de forma harmoniosa e pacífica com os seus concidadãos. O conflito, que dilacera a alma e nos faz sofrer com mais ou menos intensidade em todas as dimensões do nosso ser, é, portanto, uma excepção indesejável e um duro golpe no nosso equilíbrio físico, psicológico e espiritual. E, portanto, a atitude mais normal a tomar é procurarmos ver-nos livres desse estado de infelicidade o mais rapidamente possível, através dos recursos ao nosso dispor, para que possamos regressar ao “lar” (condição, atmosfera, “oikos”, raiz grega da palavra “ecologia”) da paz e, por meio da nossa capacidade inteligente, envolvida por esse estado de harmonia, criar realidades crescentemente globais e generalizadas de bem-estar pessoal, fraternidade grupal e bem-aventurança planetária.
Se todo o ser humano, enquanto exteriorização individualizada do Divino, possui dentro de si o Bem, a Beleza, a Verdade e a Justiça (ou melhor, ele próprio é uma expressão, mais fiel ou mais desvirtuada, desses valores universais e eternos), então um dos objectivos essenciais da nossa existência é a aquisição gradual de uma consciência cada vez mais elevada, até nos tornarmos uma “gota” consciente do “oceano” da Vida Divina omnisciente. Só assim poderemos legitimamente, um dia, afirmar – como fez o sábio judeu Jesus, mais exactamente Joshua Ben Pandira, há cerca de 2.000 anos – “eu sou” (uma ínfima centelha companheira numa fraternidade de Luz do Fogo Infinito de) “o Caminho, a Verdade e a Vida”.
De outro modo, andaremos eternamente à volta da nora, com a cerviz sob o jugo da opressão, da ignorância, da mediocridade e da estupidez, esbanjando e atrofiando as nossas melhores capacidades físicas, mentais e espirituais, sem outro fim que não seja o de perpetuar o sofrimento, o egoísmo, a miséria, a doença, a desconfiança, o ódio e a guerra. A insânia total dos “tempos modernos” teima em querer tirar-nos a genuína e pura alegria de viver. A sua única obsessão desvairada é pôr-nos a produzir, a vender e a comprar “bens” (ou males?) visíveis que nos vão apodrecendo o íntimo – os bens eternos e invisíveis da alma –, cujas salas, votadas ao mais completo abandono, pois nada colocamos lá que a faça revitalizar e despertar, acumulam poeira em vez de algo verdadeiramente digno. E aqui cada um de nós terá que fazer a sua opção de vida mais importante, pois, como nos adverte Morya, um grande sábio: “Sim, vós hesitais. Não estais bem certos de quererdes abdicar e servir, de quererdes servir já ou de quererdes ter coragem. Enquanto isso, o bem comum fica à espera; enquanto isso, a humanidade espera; enquanto isso, nós esperamos; enquanto isso, vós esperais. Sois a vergonha de vós próprios!...”(1).
A ignorância institucionalizada, que infelizmente se instalou em definitivo no psiquismo dos poderosos (agentes da mediocridade, da angústia, do medo e do sofrimento), só deixará de minar e fragmentar a sociedade se esta tiver a vontade determinada de se lhe opor através da sua inteligência lúcida e íntegra. Como já foi dito e repetido, o(s) poder(es) de hoje, curiosa e estranhamente – ou talvez não –, pretendem subrepticiamente banir dos programas escolares a sabedoria multimilenar inspiradora das civilizações de todas as eras e lugares. Será por acaso? A leitura (e a consequente reflexão que suscita) dos filósofos da Antiguidade fornece-nos inúmera informação sobre tudo o que está dito acima. Consta, aliás, de um dos livros do Antigo Testamento judaico-cristão, o Eclesiastes, o seguinte: “Todas as torrentes hibernais correm para o mar, contudo, o próprio mar não está cheio. Ao lugar de onde correm as torrentes hibernais, para lá elas voltam a fim de sair correndo. Todas as coisas são fatigantes; ninguém pode falar disso. O olho não se farta de ver, nem o ouvido se enche de ouvir. Aquilo que veio a ser é o que virá a ser; e o que se tem feito é o que se fará; de modo que não há nada de novo debaixo do sol. Existe algo de que se possa dizer: “Vê isto; isto é novo”? Já tem existido por tempo indefinido; o que veio à existência é de tempo anterior a nós…”.
Podemos justificar o acima exposto através de um pequeno exemplo que foi extraído do livro “Paidéia, A Formação do Homem Grego”, de Werner Jaeger, escrito em 1936. Nele, o escritor alemão comenta a obra "Leis", de Platão: “…A perspectiva de gozar um prazer ou sofrer uma dor move a nossa vida instintiva na forma de sentimentos de coragem e de medo; a reflexão valorativa indica-nos qual dessas sensações é melhor ou pior. Quando esta reflexão constitui um acordo comum da polis, damos-lhe o nome de lei. A alma só se deve deixar levar pelo fio macio e dourado com que o logos (a razão pura kantiana) a puxa e não pelos duros e férreos fios dos instintos. Quanto mais suave e menos violenta for a acção com que a reflexão guia a nossa alma, mais ela necessita de cooperação interior. Ora, … o fio do logos não é senão o que governa o Estado, sob o título de lei. Deus ou quem O conhece dá o logos à polis (sabedoria à comunidade) que o instaura como lei, a qual em seguida regula as relações da polis com ela própria e com os outros Estados. A obediência da alma ao logos é o que denominamos domínio de si…
Em "A República", a ideia do bem era concebida como o paradigma que o governante filósofo traz na sua própria alma. Nas Leis, o autor sente-se impelido a concretizar mais. Esta obra pressupõe uma Humanidade que quer saber exactamente o como e o quê, uma Humanidade que precisa de leis para todos e cada um dos detalhes da sua conduta. Nesta altura levanta-se o problema de saber como é que aquele logos divino encontrará o caminho para descer até ao Homem e converter-se em instituição política. Platão parece pensar, indubitavelmente, em qualquer forma de assentimento da colectividade, mas para ele é decisivo que se faça legislador da polis um indivíduo que conheça o divino. Nisto não faz mais do que seguir o exemplo dos grandes legisladores do passado. Os Gregos costumavam apelidá-los de homens divinos, título que cedo foi conferido ao próprio Platão. No tempo deste, mais de uma cidade grega pediu a algum filósofo para elaborar leis para o Estado. O protótipo destes legisladores, intermediários entre os deuses e os homens, é Minos, que falava com Deus. A sabedoria dos legisladores gregos está muito próxima da revelação… Fica, naturalmente, de pé a afirmação de que o órgão através do qual recebe o conhecimento do divino não é outro senão a sua razão. A sua visão não brota do êxtase e os conceitos religiosos de inspiração e entusiasmo, que Platão usa em outras obras para descrever o estado de espírito do filósofo, são por ele modificados no sentido de uma visão espiritual que constitui a meta final da trajectória dialéctica. Contudo, do ponto de vista daqueles que, sem serem filósofos, têm o dever de aceitar como lei o conhecimento do governante filósofo, este tipo de argumentação mal se distingue da revelação divina…”.
Noções e conceitos como “domínio de si”, “logos” (o nous grego, o atman hindu, a vontade espiritual no Ocidente, a intuição num certo sentido), “alma”, “instintos”, revelam-nos claramente a sabedoria superior (“divina”) e o domínio da mais elevada ciência psicológica de Platão – ainda hoje quase desconhecida e tão mal compreendida – quando, na fase final da sua vida, escreveu as "Leis".
Também graças a ele, poderemos já hoje perscrutar facilmente o futuro através da avaliação dos regimes actuais. Na época em que Platão viveu, já a famosa democracia ateniense agonizava, pois havia enveredado por caminhos que os nossos actuais legisladores e governantes teimam em conservar.
De facto, vemos o extracto seguinte, retirado da obra de Werner Jaeger: “… Referimo-nos ao paralelo que Platão estabelece entre o mau legislador e o médico de escravos, que corre de um enfermo para outro e, sem se dar ao trabalho de alegar razões nem de investigar a fundo cada caso, dá rápido e ditatorialmente as suas ordens, que retira, por hábito, da tradição alheia e da própria experiência. Comparado com ele, o médico que se dedica a tratar de cidadãos livres parece um filósofo. Fala aos enfermos como a discípulos que importa levar conscientemente ao conhecimento de um fenómeno. O médico de escravos não compreenderia nunca esta complicada maneira de instruir o doente e diria ao colega, se ele o escutasse: tu não tratas os doentes; tu educa-los, antes, como se em vez de curá-los te propusesses fazer deles médicos. Pois bem: é ao nível do médico de escravos que todos os legisladores actuais se encontram, diz Platão. Não são autênticos médicos, porque não são educadores. E é para isso que tendem todos os esforços de Platão nas Leis: conseguir um legislador no mais elevado dos sentidos, isto é, um verdadeiro educador dos cidadãos. A diferença entre esta maneira de conceber a sua missão e a do legislador corrente revela-se no desprezo dos preceitos legais de tipo usual, que outra coisa não fazem senão prever determinadas penas para determinados casos. Assim, é demasiado tarde que o legislador intervém, pois a sua missão mais importante não consiste precisamente em castigar as transgressões, mas em evitar que elas sejam praticadas. Ao dizer isto, Platão segue o exemplo da ciência médica, cuja tendência cada vez mais nítida daquele tempo era encarar como verdadeiro objecto da sua acção, não o homem enfermo, mas o homem são…”
E ainda: “… Mas se é certo que Platão concorda claramente em aceitar o preceito espartano que a todos os cidadãos impõe como dever supremo a defesa da pátria, nem por isso as Leis deixam de perseguir um objectivo maior e mais fundamental: o de encontrar a norma última da virtude e da perfeição humana… Às quatro virtudes da alma que Platão aqui apresenta como bens divinos devem submeter-se os bens humanos: saúde, força, beleza e riqueza. Onde os bens divinos são cultivados, também os bens humanos são servidos; onde, porém, só aos segundos se atende, perdem-se uns e outros ao mesmo tempo. Como já Teógnis dizia da justiça, os bens superiores têm sempre implícitos os bens ou virtudes inferiores. E a verdadeira unidade que os engloba todos, os divinos e os humanos, é a phronesis (3), a arete (4) do espírito… O ideal de coragem espartano não conhece outra educação a não ser a que se destina a desenvolver no homem a firmeza diante do medo e da dor, ignorando a que visa a resistência às tentações do prazer. Eis uma falta de coerência, que se traduz na fraqueza do homem perante os apetites… O ateniense impugna a pederastia dos Dórios como uma degeneração antinatural da vida sexual sã e censura o desregramento sexual das mulheres de Esparta… Agora é frequente chamar paideia (5) à formação em qualquer tipo de actividade e é assim que falamos da formação ou falta de formação na profissão de tendeiro ou de navegante ou em quaisquer outras manifestações do género. Mas se encararmos a paideia do nosso ponto de vista, isto é, do ponto de vista do educador que aspira a instilar no Estado um determinado ethos, um espírito colectivo que o enforme todo, deveremos, ao contrário, entender por cultura a educação para a arete, que se inicia na infância e estimula no homem o desejo de vir a tornar-se um cidadão perfeito, apto a mandar e a obedecer de acordo com os ditames do que é justo. Nenhum outro tipo de formação, que se refira apenas a especialidades, pode em rigor ostentar o nome de cultura, de paideia. Todas elas são manifestações banais, que visam o lucro ou qualquer aptidão ou conhecimento concreto e carecem de princípio directivo espiritual e finalidade recta, ou então são simples meios ou instrumentos…”.
Assim, e em referência à própria época de Platão, já degradada, lemos: “… A autêntica paideia, que sempre fora a formação do Homem na arete total, surgia desintegrada numa série de aptidões especiais, sem um objectivo que as unificasse. À verdadeira paideia, que opõe à simples formação profissional, chama ele o cultivo da perfeição humana…”.
Pode haver um texto mais actual que este, com cerca de dois mil e quinhentos anos?
É precisamente para que haja um consenso unânime em torno da constatação efectiva de estados superiores de vida e de consciência, que urge a chegada ao poder de dirigentes que conheçam (por os terem vivido) o Bem, a Beleza, a Justiça e a Verdade. Já é tristemente longa e profunda a experiência humana no que respeita àquilo que os gregos designavam por pleonexia, a ganância pela riqueza material dos senhores (melhor será dizer escravos) do poder.
(1) Sementes e Pérolas, Centro Lusitano de Unificação Cultural, Lisboa, 2.ª edição, 1996, pág. 54. (2) capítulo 1, 7-10. (3) A razão pura, o nous, a intuição. (4) Virtude. (5) cultura, formação, educação.
Em "A República", a ideia do bem era concebida como o paradigma que o governante filósofo traz na sua própria alma. Nas Leis, o autor sente-se impelido a concretizar mais. Esta obra pressupõe uma Humanidade que quer saber exactamente o como e o quê, uma Humanidade que precisa de leis para todos e cada um dos detalhes da sua conduta. Nesta altura levanta-se o problema de saber como é que aquele logos divino encontrará o caminho para descer até ao Homem e converter-se em instituição política. Platão parece pensar, indubitavelmente, em qualquer forma de assentimento da colectividade, mas para ele é decisivo que se faça legislador da polis um indivíduo que conheça o divino. Nisto não faz mais do que seguir o exemplo dos grandes legisladores do passado. Os Gregos costumavam apelidá-los de homens divinos, título que cedo foi conferido ao próprio Platão. No tempo deste, mais de uma cidade grega pediu a algum filósofo para elaborar leis para o Estado. O protótipo destes legisladores, intermediários entre os deuses e os homens, é Minos, que falava com Deus. A sabedoria dos legisladores gregos está muito próxima da revelação… Fica, naturalmente, de pé a afirmação de que o órgão através do qual recebe o conhecimento do divino não é outro senão a sua razão. A sua visão não brota do êxtase e os conceitos religiosos de inspiração e entusiasmo, que Platão usa em outras obras para descrever o estado de espírito do filósofo, são por ele modificados no sentido de uma visão espiritual que constitui a meta final da trajectória dialéctica. Contudo, do ponto de vista daqueles que, sem serem filósofos, têm o dever de aceitar como lei o conhecimento do governante filósofo, este tipo de argumentação mal se distingue da revelação divina…”.
Noções e conceitos como “domínio de si”, “logos” (o nous grego, o atman hindu, a vontade espiritual no Ocidente, a intuição num certo sentido), “alma”, “instintos”, revelam-nos claramente a sabedoria superior (“divina”) e o domínio da mais elevada ciência psicológica de Platão – ainda hoje quase desconhecida e tão mal compreendida – quando, na fase final da sua vida, escreveu as "Leis".
Também graças a ele, poderemos já hoje perscrutar facilmente o futuro através da avaliação dos regimes actuais. Na época em que Platão viveu, já a famosa democracia ateniense agonizava, pois havia enveredado por caminhos que os nossos actuais legisladores e governantes teimam em conservar.
De facto, vemos o extracto seguinte, retirado da obra de Werner Jaeger: “… Referimo-nos ao paralelo que Platão estabelece entre o mau legislador e o médico de escravos, que corre de um enfermo para outro e, sem se dar ao trabalho de alegar razões nem de investigar a fundo cada caso, dá rápido e ditatorialmente as suas ordens, que retira, por hábito, da tradição alheia e da própria experiência. Comparado com ele, o médico que se dedica a tratar de cidadãos livres parece um filósofo. Fala aos enfermos como a discípulos que importa levar conscientemente ao conhecimento de um fenómeno. O médico de escravos não compreenderia nunca esta complicada maneira de instruir o doente e diria ao colega, se ele o escutasse: tu não tratas os doentes; tu educa-los, antes, como se em vez de curá-los te propusesses fazer deles médicos. Pois bem: é ao nível do médico de escravos que todos os legisladores actuais se encontram, diz Platão. Não são autênticos médicos, porque não são educadores. E é para isso que tendem todos os esforços de Platão nas Leis: conseguir um legislador no mais elevado dos sentidos, isto é, um verdadeiro educador dos cidadãos. A diferença entre esta maneira de conceber a sua missão e a do legislador corrente revela-se no desprezo dos preceitos legais de tipo usual, que outra coisa não fazem senão prever determinadas penas para determinados casos. Assim, é demasiado tarde que o legislador intervém, pois a sua missão mais importante não consiste precisamente em castigar as transgressões, mas em evitar que elas sejam praticadas. Ao dizer isto, Platão segue o exemplo da ciência médica, cuja tendência cada vez mais nítida daquele tempo era encarar como verdadeiro objecto da sua acção, não o homem enfermo, mas o homem são…”
E ainda: “… Mas se é certo que Platão concorda claramente em aceitar o preceito espartano que a todos os cidadãos impõe como dever supremo a defesa da pátria, nem por isso as Leis deixam de perseguir um objectivo maior e mais fundamental: o de encontrar a norma última da virtude e da perfeição humana… Às quatro virtudes da alma que Platão aqui apresenta como bens divinos devem submeter-se os bens humanos: saúde, força, beleza e riqueza. Onde os bens divinos são cultivados, também os bens humanos são servidos; onde, porém, só aos segundos se atende, perdem-se uns e outros ao mesmo tempo. Como já Teógnis dizia da justiça, os bens superiores têm sempre implícitos os bens ou virtudes inferiores. E a verdadeira unidade que os engloba todos, os divinos e os humanos, é a phronesis (3), a arete (4) do espírito… O ideal de coragem espartano não conhece outra educação a não ser a que se destina a desenvolver no homem a firmeza diante do medo e da dor, ignorando a que visa a resistência às tentações do prazer. Eis uma falta de coerência, que se traduz na fraqueza do homem perante os apetites… O ateniense impugna a pederastia dos Dórios como uma degeneração antinatural da vida sexual sã e censura o desregramento sexual das mulheres de Esparta… Agora é frequente chamar paideia (5) à formação em qualquer tipo de actividade e é assim que falamos da formação ou falta de formação na profissão de tendeiro ou de navegante ou em quaisquer outras manifestações do género. Mas se encararmos a paideia do nosso ponto de vista, isto é, do ponto de vista do educador que aspira a instilar no Estado um determinado ethos, um espírito colectivo que o enforme todo, deveremos, ao contrário, entender por cultura a educação para a arete, que se inicia na infância e estimula no homem o desejo de vir a tornar-se um cidadão perfeito, apto a mandar e a obedecer de acordo com os ditames do que é justo. Nenhum outro tipo de formação, que se refira apenas a especialidades, pode em rigor ostentar o nome de cultura, de paideia. Todas elas são manifestações banais, que visam o lucro ou qualquer aptidão ou conhecimento concreto e carecem de princípio directivo espiritual e finalidade recta, ou então são simples meios ou instrumentos…”.
Assim, e em referência à própria época de Platão, já degradada, lemos: “… A autêntica paideia, que sempre fora a formação do Homem na arete total, surgia desintegrada numa série de aptidões especiais, sem um objectivo que as unificasse. À verdadeira paideia, que opõe à simples formação profissional, chama ele o cultivo da perfeição humana…”.
Pode haver um texto mais actual que este, com cerca de dois mil e quinhentos anos?
É precisamente para que haja um consenso unânime em torno da constatação efectiva de estados superiores de vida e de consciência, que urge a chegada ao poder de dirigentes que conheçam (por os terem vivido) o Bem, a Beleza, a Justiça e a Verdade. Já é tristemente longa e profunda a experiência humana no que respeita àquilo que os gregos designavam por pleonexia, a ganância pela riqueza material dos senhores (melhor será dizer escravos) do poder.
(1) Sementes e Pérolas, Centro Lusitano de Unificação Cultural, Lisboa, 2.ª edição, 1996, pág. 54. (2) capítulo 1, 7-10. (3) A razão pura, o nous, a intuição. (4) Virtude. (5) cultura, formação, educação.
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