quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Batalha do Buçaco


A alguns dias dos 200 anos da última ofensiva no âmbito das invasões napoleónicas, revivemos o como e o porquê dos ataques franceses e das defesas anglo-portuguesas, vencedoras.

Texto Susana Nunes fotografia Dina Cristo

Em 1807, Napoleão é o grande senhor do continente europeu, após ter saído vencedor dos confrontos com as grandes potências continentais. A supremacia francesa parece solidamente instalada na Europa Ocidental, mas a construção é muito menos sólida do que aparenta: como todos os gigantes, Napoleão também tem o seu calcanhar de Aquiles.
Embora o imperador tenha conseguido impor a sua lei ao continente europeu, não venceu o seu adversário mais inabalável, a Inglaterra, que continua a dominar os mares sem quem lhe faça concorrência. Em 1806, Napoleão tinha optado por uma guerra económica, “ao exumar uma lei que proclamava: ‘A importação de mercadorias manufacturadas provenientes de fábricas ou de comércios ingleses é proibida, tanto por mar como por terra, em todo o alcance da República francesa’. De acordo com a visão do imperador, o campo de aplicação deste texto cobria a totalidade da Europa, incluindo os países não ocupados com os quais tivessem sido estabelecidos tratados (e em particular a Espanha)”1.
No entanto, para ser eficaz, era necessário que este dispositivo fosse globalmente aplicado, o que nunca chegará a acontecer, apesar de todos os meios que lhe serão consagrados. Portugal, que vivia exclusivamente do comércio britânico, não tinha em conta esta interdição, tal como a Espanha, que aplicava o bloqueio de forma muito ligeira. Portugal não podia, nem tinha qualquer vontade em aplicá-lo, pois colocaria em perigo a sua actividade económica. Para além disso, o país contava com o apoio generalizado da sua população, fundamentalmente em desacordo com as exigências francesas.
Dá-se então uma operação armada, pela conquista de Portugal. O que Napoleão não previa é que este movimento, “a seus olhos um simples passeio militar”2, teria resultados completamente opostos ao esperado. O general Junot, que parte em direcção à capital portuguesa, atinge o seu objectivo sem dificuldade e destrona a casa de Bragança. No entanto, este acto terá como consequência directa a intervenção de um corpo expedicionário inglês que eliminará os franceses de Lisboa e que, solidamente instalado neste país de difícil acesso, resistirá a duas voltas ofensivas cada vez mais potentes, sob Soult em 1809 e Masséna em 1810. Ambas terminar-se-ão lamentavelmente para o exército francês, a primeira no Porto e a segunda em Torres Vedras. “As forças portuguesas estavam pouco preparadas para agir em batalha, mas, animadas por um verdadeiro patriotismo, dedicavam-se sem descanso a tudo o que pudesse servir à sua instrução”3.
Um erro

Napoleão não abandonava a intenção de submeter Portugal e em Agosto de 1810 decide enviar mais de 60 mil homens comandados pelo marechal Masséna, apoiado pelo marechal Ney e o general Junot. Uma terceira campanha que durará até Março de 1811, sem alcançar o principal objectivo, a tomada de Lisboa.
Perante os movimentos das tropas francesas, Wellington, general inglês enviado para defender Portugal, decidiu-se finalmente a aceitar uma batalha na serra de Alcoba, actual Buçaco. Mas à sua maneira. Num terreno por si escolhido, particularmente favorável, reforçado por algumas obras defensivas, e onde estimava ter todas as hipóteses do seu lado para barrar a estrada aos franceses. Afirma-o num comunicado escrito na altura: "Ocupámos uma excelente posição, é bastante difícil atacar-se de frente e, se o inimigo esperar mais um ou dois dias, apenas poderá atacar por um único ponto vulnerável. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para o conter neste local. Se não o conseguir, tentarei novamente em Coimbra”4.
Esta zona, a pouca distância de Coimbra, é formada pelas gargantas do Mondego e montanhas pouco penetráveis. “Difícil de se fazer o reconhecimento, ela é eminentemente propícia à defensiva. Estas ‘montanhas malditas’, como lhes chamou um oficial britânico, são perpendiculares ao longo do Mondego, pouco elevadas (entre 200 e 400 metros) e, no entanto, de um acesso difícil pois são bastante íngremes e cobertas de urze. Fora da estrada de Coimbra, apenas raros atalhos abrem caminho, dos quais um, importante, que atravessa por detrás de toda a linha aliada. A norte, encontra-se o convento do Buçaco, rodeado de árvores que o escondem da vista dos franceses. De facto, apenas existem dois pontos a defender pelos anglo-portugueses: à esquerda inglesa a estrada do Buçaco que atravessa o convento, e à direita o caminho que parte de Santo António de Cântaro”5. Estes caminhos difíceis, cujos arredores eram impraticáveis, foram cortados e barricados e estavam defendidos por artilharia.
É neste terreno que o general inglês decidiu concentrar as suas forças para receber os franceses, esgotados de uma dezena de dias de um caminho bastante árduo: “a cavalaria e as divisões Hill e Leith atravessam o Mondego através da Ponte Murcelha e chegam pela estrada do Espinhal ao planalto do Buçaco no dia 26. Juntam-se a Wellington, que dispõe os 50 mil soldados (dos quais 27 mil ingleses) e as 40 peças de artilharia no planalto, a esquerda a cavalo sobre a estrada de Mortágua a Coimbra, a direita sobre a de Santo António de Cântaro. A cavalaria é disposta no campo entre Mortágua e o Mondego. Assim organizado, o inimigo [o exército anglo-português] é capaz de neutralizar a acção da cavalaria e da artilharia francesas. O cume da montanha ocupado tem uma largura inferior a 3 quilómetros”6. As tropas portuguesas podiam, assim, observar todos os movimentos dos franceses, que precisavam de mais de uma hora de um trajecto exposto ao fogo para chegar aos postos avançados.
Para os franceses, a decisão foi difícil. Alguns preferiam a ofensiva imediata. Outros defendiam uma mudança de posição. A esta proposta, que o futuro acabará por provar a melhor, Masséna responde que é impossível. O marechal Ney menciona a possibilidade de se atacar o Porto em vez de Lisboa e chega mesmo a propor o regresso a Almeida, para se esperar por reforços. “Seria efectivamente necessário atacar-se imediatamente, ou mudar-se de posição, como propunha o duque que Elchingen? O adversário, mesmo se não tinha ainda tomado as suas posições de combate definitivas, era largamente superior em número. Atacar sem esperar, seria lançar as divisões à medida que estas chegassem ao campo de batalha, em ordem dispersa, e, certamente, fazê-las combater isoladas. Mudar-se esta posição inatacável de frente para se apanhar o adversário pelas costas, ou levá-lo a separar-se, obrigaria a efectuar-se um deslocamento em presença do inimigo, manobra sempre delicada e perigosa. Masséna rejeita estas soluções, a primeira pois conduziria a uma derrota certa e sangrenta, a segunda porque tem a certeza de que é impossível, tal como Wellington.”7
A batalha
É assim iniciado o ataque armado. O assalto começa de manhã cedo, às apalpadelas num espesso nevoeiro. “Precedida pela brigada Foy e vários pelotões do 31º Ligeiro, a divisão Merle começa a subir a encosta em coluna apertada, abrindo caminho com dificuldade através da urze, sob fogo intenso. Os elementos avançados inimigos começam a recuar. Mas as colunas francesas perdem aos poucos a orientação e afastam-se do seu objectivo. A brigada Foy sai finalmente da bruma pelo caminho que conduz a Santo António e ataca a brigada portuguesa de Chaplemond. Dizimados pelas rajadas do 21º Foot, os franceses tentam reorganizar-se, mas o 74º regimento britânico e uma bateria aliada abrem igualmente o fogo e, após causarem enormes perdas aos franceses, obrigam-nos a parar”8.
Entretanto, a divisão francesa Merle chega por sua vez ao cume e organiza-se à esquerda de Chaplemond. Não existem unidades aliadas nesta parte da encosta, mas a reacção do general inglês Picton é rápida: reúne os fugitivos das unidades avançadas aliadas e, reforçado por regimentos de Leith, contra-ataca pela esquerda. As perdas são grandes do lado francês. Merle é atingido, tal como muitos dos seus oficiais, e é obrigado a retirar as suas tropas pelo flanco direito da montanha, perseguido pelos aliados, que algumas rajadas da artilharia de Masséna obrigam à retirada.
Apesar do fracasso deste primeiro assalto, Reynier persevera na sua tentativa e lança ao ataque os dois regimentos do general Foy conduzidos por Heudelet. Bastante desencorajados pela derrota da coluna de Merle, escalam a encosta num combate desigual contra a brigada Chaplemond. Leith, acudido por tropas frescas, ataca as tropas francesas. O general Foy é ferido e os seus homens, esgotados e dizimados, retiram-se rapidamente. É assim que termina a luta neste sector. A linha aliada não é alcançada.
À direita, o marechal Ney avança para Buçaco. Ordena ao general Loison um ataque em massa por brigadas. Os 12 batalhões de Loison avançam através da mata até à aldeia de Sula. Sobem uma encosta bastante íngreme até ao cume onde, escondidas, se encontram as 1800 baionetas dos 43º e 52º regimentos de infantaria. Convencidos de que apenas terão de enfrentar artilharia, os homens de Loison continuam a avançar. De repente, Crawford faz com que os soldados aliados saiam do seu esconderijo e enviem uma rajada a apenas 10 passos. As primeiras filas da formação francesa são totalmente destruídas. Mais de mil homens, oficiais e soldados, caem, e o resto recua na maior das confusões sem ter causado grandes perdas ao inimigo.
Todos os batalhões de Loison são dizimados, excepto um. Os aliados apenas têm de enfrentar este último, que se separou do corpo principal e aparece face aos regimentos de Coleman. Bastante inferiores em número relativamente ao seu adversário e desconcertados pela debandada dos seus camaradas, os soldados desta formação são facilmente despistados pelo 18º regimento português e retiram-se para Sula. À chegada, reúnem-se ao resto da divisão que se contenta em lutar contra a linha avançada de Crowford, pois Loison não se pode arriscar a lançar um novo ataque.
Ao mesmo tempo, o general Marchand avança em direcção ao convento por uma encosta mais suave que conduz à divisão de Spencer e faz um desvio pela esquerda para apoiar Loison. Rapidamente, se depara com uma grande linha da infantaria ligeira na mata ao sul de Sula e inicia um violento combate. Completamente desorganizados, os franceses conseguem no entanto lançar-se sobre esta formação e sair da mata, mas são recebidos por uma rajada de mosquetes da brigada Pack e, pouco a pouco, recuam até ao sopé das colinas com grandes perdas. Os regimentos de Maucune tentam por sua vez alcançar por um caminho que parte de Sula, mas o fogo das três baterias e o ferimento do seu líder fá-los hesitar. Ney abandona o ataque. Esta retirada marca o fim da batalha do Buçaco. Os anglo-portugueses perderam cerca de dois mil homens, os franceses 4 486, dos quais 275 oficiais.
A derrota francesa
O próprio Napoleão afirmava: “Uma máxima de guerra bem provada é não se fazer aquilo que o inimigo quer, pela simples razão de que ele o deseja: assim, devemos evitar o campo de batalha que ele reconheceu e estudou; é preciso ter-se ainda mais cuidado em evitar aquele que ele fortificou e onde ele se enclausurou. Uma consequência deste princípio é de nunca atacar a frente de uma posição que podemos obter em a rodeando”9. E os factos deram-lhe razão. A responsabilidade desta derrota foi em parte atribuída ao ataque frontal imediato, pois os franceses não souberam encontrar a passagem existente, que permitiria uma mudança de posição e atacar-se os anglo-portugueses em melhores condições, ou forçá-los à derrota sem combate.
Felizmente, para os franceses, como já tinha acontecido no Vimeiro, Wellington não se movimentou após esta vitória e não procurou tornar mais pesada a derrota de Masséna através de uma contra-ofensiva imediata. Contentou-se, como anteriormente, em permanecer numa prudente expectativa.
Após esta derrota, os franceses dirigem-se a Lisboa mas são obrigados a parar nas linhas de defesa de Torres Vedras, construídas no maior dos segredos para proteger a capital, pela iniciativa de Wellesley, na altura comandante-chefe do exército português. Os franceses acamparão perante estas linhas durante seis meses, onde viverão condições difíceis em consequência da “estratégia da terra queimada” de Wellington. Este tinha ordenado à população que escondesse ou queimasse todo o meio de subsistência, antes de partirem em busca de protecção, ou no interior das linhas ou em locais fora do alcance dos franceses. “Neste país deserto, os soldados de Masséna procuravam alimentar-se de qualquer forma, utilizando por vezes métodos pouco louváveis. A retirada, dirigida eficazmente pelo marechal Ney, traduziu-se igualmente por actos de violência ainda hoje na memória dos Portugueses”10.
O apagão
Portugal, um país com dimensões reduzidas e um governo fraco, representou, mais do que qualquer outro Estado da Europa, um obstáculo à vontade imperial, “que se sentia ainda mais invencível pela simplicidade aparente da neutralização [de Portugal]. Esta foi a grande e triste ilusão de Napoleão. A sua ignorância da geografia e da história de Portugal leva-o a projectos irrealistas, cujo falhanço era previsível"11.
Os meios mobilizados por Napoleão foram consideráveis, mas a designação do marechal Ney e do general Junot, sob comando do marechal Masséna, foram um erro: no ano precedente, Ney tinha recusado servir sob as ordens de um outro marechal, desestabilizando os planos da campanha do Tejo. Quanto a Junot, que tinha sido governador-geral de Portugal, considerava-se humilhado. Para além disso, as tropas francesas não estavam completamente preparadas: meios de transporte inexistentes ou insignificantes, desconhecimento dos itinerários, falta de informações, inexactidões na execução do plano de invasão… “Não sabíamos quase nada sobre as fortificações em Torres Vedras, que protegiam Lisboa, quando Masséna estava apenas a 6 posições da capital! Digo mais: se o príncipe de Essling [Masséna] falha militarmente em Buçaco, falha sobretudo perante a política sistemática da terra queimada imposta pelos ingleses às populações portuguesas sob pena de morte. O Imperador não tinha previsto dar aos seus exércitos meios de subsistência para um deserto”12.
As consequências destas três campanhas foram consideráveis para Portugal: “foi necessário voltar a meter-se os campos em cultura para se alimentar a população, reconstruir aldeias inteiras, reencontrar a sua autonomia, o que não era simples com a ingerência dos ingleses nos assuntos do Estado, na ausência dos monarcas pouco apressados em regressar à metrópole”13.
Imparável, Wellington, o futuro vencedor de Napoleão em Waterloo, apoiará a rebelião espanhola. E, no momento certo, saberá aproveitar-se de circunstâncias favoráveis para, após algumas tentativas infrutuosas, lançar uma grande ofensiva que criará uma segunda frente no sudoeste da França em 1814 e que apenas parará com a queda do Império.
É na Península Ibérica que desaparece o mito de invencibilidade das tropas napoleónicas. Após Baylen, Talavera, Vimeiro, Porto, Buçaco e Torres Vedras, nada será como antes: “a partir desta época, o próprio Imperador vai ver a sua estrela empalidecer, a mesma estrela que um dia mostrou ao cardinal Fesh em pleno dia e que afirmava ser o único a ver”14.

1 MOLIERES, Michel – Les expédtitions françaises en Portugal de 1807 à 1811, Editions Publibook, 2007. 2 Ibidem. 3 La Compagne de Portugal en 1810 et 1811. Éditeur A. Eymery, 1814. MOLIERES, Michel - Les expédtitions françaises en Portugal de 1807 à 1811, Editions Publibook, 2007. 4 Idem. 5 Idem. 6 Idem. 7 Idem. 8 Idem. 9 Idem 10 CAILLAUX DE ALMEIDA, Tereza – La mémoire dês campagnes napoléoniennes au Portugal (1807-1811). Au croisement dês sources orales, écrites et iconographiques, Actes du colloque interdisciplinaire: Nouvelles perspectives de la recherche française sur l aculture portugaise (5-6 février 2007). 11 Napoléon et le Portugal, Conferência pronunciada por Nicole Gotterri a 6 de Abril de 2002 no Institut Napoléon (Paris, La Sorbonne). 12 Idem. 13 Idem. 14 MOLIERES, Michel - Les expédtitions françaises en Portugal de 1807 à 1811, Editions Publibook, 2007
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1 Commentarios:

Anonymous Alice Santos disse...

A representação da batalha através das miniaturas de João Pedro Peixoto é uma grande ajuda na visualização dos acontecimentos. Recomendo-a vivamente. Parabéns a ambos os autores.

Alice Santos

domingo, 07 novembro, 2010  

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