Farol de Alexandria
+imagem.jpg)
Quando o poder de investigar deu lugar ao dogma formal através da força da destruição e assassínio, restou uma mulher que disse “não” aos homens que preferiram deixar de pensar e passar a apontar a espada a quem ousasse discordar da sua crença. Hypatia, filósofa que dirigiu a Escola Neoplatónica de Alexandria e deu a sua vida pela verdade, é, dezasseis séculos depois, recordada pela direcção de um homem espanhol.
Estimulada pelos imperadores da Igreja, vai crescendo a intolerância em relação ao saber filosófico e ao conhecimento antigo. Investigar, reflectir e pensar são doravante cada vez mais consideradas heresias. Sobetudo quando lideradas por mulheres respeitadas por homens de todas as religiões aos quais educava na fraternidade.
Enquanto isso, os “douto(re)s” do Cristianismo exibem milagres que impressionam e lhes vão multiplicando os crentes. A confiança no que é ostentado, por um lado, e na letra, repetida até à exaustão, por outro, tornam a fé (cega), publicamente proclamada, e a perseguição social a quem não se lhe ajoelha realidades.
Mulher virtuosa, para quem a “briga é para escravos ou gentalha”, enfrentará a ocupação da Biblioteca, a sua destruição e, mesmo perante a anulação de qualquer actividade racional, vai procurando incansavelmente respostas para as suas dúvidas. Experimenta, conferencia, deduz. Não sossega só de pensar que a Terra podia ser redonda, movimentando-se em forma de elipse à volta do Sol.
A Biblioteca, antes “local de cura da alma”, reservatório de todo o conhecimento humano, transforma-se, após a sua usurpação cristã, num local sombrio, animalesco e sem vida. A cidade vai-se tornando cada vez mais orgulhosamente só com o seu único Deus verdadeiro. Dela são excluídos e mortos judeus e pagãos.
Dali para a frente, o medo alastra. Deixa de haver condições para a dúvida inteligente e para o convívio são e sereno. Está aberto o caminho para o obscuratismo, o fanatismo e a obediência cega à letra morta, repetida mas incompreendida. A verdade deixará de ser procurada, passará a ser proclamada e seguida. Nada mais haverá, dali em diante, que possa ser questionável.
Um a um, os que preservavam os tesouros da Antiguidade, os registavam, estudavam e confrontavam, são dissipados. Até ao último “farol” da Escola Neoplatónica, a própria Hypatia que, embora com uma nobreza de carácter a toda a prova e de uma elevada dignidade e honra, será acusada pelos imperadores da Igreja de bruxa, prostituta e herége. À força da crueldade, perseguição e assassínio se instituirão as verdades oficiais, os dogmas que ninguém mais será permitido duvidar.
Carl Sagan em “Cosmos” descreve esse momento em que Hypátia é assassinada às mãos de um grupo de monges, acirrados por Cirilo, o arcebispo da cidade: «Arrastaram-na para fora do carro, arrancaram-lhe as roupas e, com conchas de abalone, separaram-lhe a carne dos ossos. Os seus restos foram queimados, os seus trabalhos destruídos, o seu nome esquecido. Cirilo foi santificado»(1).
Pérola eclética
Já 24 anos antes, como refere José Manuel Anacleto (JMA) em "Glória e ruína de Alexandria"(2), o tio de Cirilo - Teófilo, bispo cristão - havia instigado os seus acólitos que em 391, aproveitando a determinação de Teodósio, o Imperador Romano, para fechar todos os templos não cristãos, procederam à segunda e maior destruição da Biblioteca de Alexandria, depois do incêndio em 48 a.C., aquando da tomada da cidade pelas tropas romanas.
Estima-se que a Biblioteca chegara a reunir cerca de 700 mil obras, preciosidades do conhecimento antigo, como os cerca de 20 mil livros atribuídos a Hermes. Deste acervo restam alguns manuscritos e folhas soltas, recorda JMA que cita uma pergunta do cientista Carl Sagan: «Imaginem que mistérios sobre o nosso passado se poderiam resolver com um cartão de leitor da Biblioteca de Alexandria» (3).
A Biblioteca surgiu em 302 a.C. e tinha associado um Museu, protótipo de uma Universidade (dispunha de salas de reunião, laboratórios, jardins e observatório, com as despesas de funcionamento suportadas pelo Governo), e anexado o Templo “Serapeum”, dedicado a Serápis.
Alexandria, no norte do Egipto (perto das pirâmides de Gizé) hoje segunda cidade do país, depois da capital, o Cairo, foi fundada em 332 a.C. por Alexandre Magno com o objectivo de, aproveitando a sua localização - ponto de transição entre o Oriente e o Ocidente - ali constituir um centro cosmopolita, local de encontro entre diferentes culturas e civilizações.
A Escola Neoplatónica que ali floresceu, fundada por Amónio Saccas e depois continuada por Plotino, caracterizava-se por sintetizar, além do pensamento platónico, as principais correntes da filosofia da antiguidade grega, diversas concepções religiosas e místicas, incluindo as Orientais, e conciliar o monoteísmo com o politeísmo.
Hypatia, filha de Theon, dirigiu-a. Também filósofa, matemática e astrónoma, nasceu em 370 em Alexandria, estudou em Atenas e, solteira, dedicou toda a sua vida à instrução. Representou a preservação da Sabedoria da Antiguidade, o universalismo, o livre pensamento, a investigação científica, a inteligência. Mulher de prestígio, desafiou com a sua coragem e integridade a ignorância e o dogmatismo.
A protecção junto do governador romano foi insuficiente para compensar o mau-estar que o poder da sua sabedoria provocava em poderosos que se sentiam eclipsados. Com o seu assassinato, a sua decifração das fontes, nas quais a Igreja se baseava para construir a sua doutrina, como refere Helena Blavatsky, citada por JMA, foi também eliminada. Até novo Renascimento.
(1) Citado por José Manuel Anacleto (JMA), autor do livro “Alexandria e o Conhecimento Sagrado”, editado pelo Centro Lusitano de Unificação Cultural, num artigo anterior - “Glória e ruína de Alexandria", publicado no Outono 2003, pág. XXXII, na revista "Biosofia", vencedora do Prémio Informação Solidária 2009.
(2) Idem, pág. XXIII.(3) Idem, Ibidem.
(2) Idem, pág. XXIII.(3) Idem, Ibidem.
Etiquetas: Cinema, Dina Cristo, Farol de Alexandria
0 Commentarios:
Enviar um comentário
<< Página Inicial