Telefonia de sessenta II
Nesta segunda parte evocamos os conflitos despoletados em território angolano.
Texto Dina Cristo
Com o assalto ao Santa Maria, Luanda fica repleta de jornalistas estrangeiros, que tencionam cobrir a chegada de Henrique Galvão
à capital angolana. Luanda torna-se pois o palco ideal para a revolta negra, farta de miséria económica, social[1] e de um contexto repressivo[2].
No dia 4 de Fevereiro de 1961, centenas de negros tentam libertar presos políticos. Atacam a Casa de Reclusão Militar e as cadeias civis de Luanda. A repressão faz-se sentir e o resultado é 40 assaltantes e sete polícias europeus mortos. Os relatos estrangeiros alertam a opinião pública internacional para a dominação portuguesa em Angola, contra a tendência internacional generalizada para as independências.
Após o funeral dos polícias, a cinco de Fevereiro, provocações fazem explodir as tensões raciais. Começa a violência e o pânico, transformados, poucos dias depois, em reivindicações e medo.
No dia 10 de Fevereiro há novos tumultos, na cadeia de São Paulo, represálias, e mais sete mortos e 17 feridos, como consequência. A PIDE começa a prender em massa. Doravante, cada negro representa um potencial inimigo.
A revolta negra intensifica-se em Março. A partir do dia 10, Manuel Bernardo Pedro, da União das Populações de Angola (UPA), incita 3000 negros a quebrar o principal sistema dos brancos. Casas, plantações, pontes são atacadas com armas nativas. Cinco dias mais tarde, a brutalidade torna-se irreversível. A 15 de Março, grupos de negros fazem um ataque generalizado a povoações e fazendas na Baixa do Cassange. Desta ofensiva terão morrido 1200 brancos e 6000 negros. E mais uma vez as represálias fazem-se sentir, num ciclo infernal. É a generalização do horror e da crueldade.
Contudo, no dia do embarque das tropas para Angola, é vincadamente referido o facto de, entre os graduados, se encontrar um negro - dado que o relator utiliza para justificar a teoria da multirracionalidade de Portugal: “Se há alguém que ainda tenha dúvidas que Portugal é um país multirracial, venha agora aqui ao cais e veja passar, como nós vemos, um pelotão no qual um dos graduados, um furriel à frente da sua secção, é um negro. Um negro de Angola ou de Moçambique, que aqui está no meio dos soldados brancos, respeitado como se respeita qualquer furriel, qualquer graduado do nosso exército”[3].
Reacções (inter)nacionais
Nos Estados Unidos, cresce o clima anti-português. Os americanos desejam a auto-determinação de Angola e dos outros territórios sob dominação portuguesa. Apesar de aliados, votam contra Portugal na Organização das Nações Unidas.
Em Portugal aumenta igualmente o sentimento anti-americano. Assim, no dia 27 de Março, cerca de 20 mil pessoas sobem juntas até à embaixada norte-americana, na Avenida Duque de Loulé. Entre gritos de “Abaixo os Estados Unidos!” e “Angola é portuguesa”, ouve-se e exige-se a retirada americana da base das Lajes. À protecção solicitada pela embaixada, responde o Ministério dos Negócios Estrangeiros afirmando que não via como impedir os cidadãos de se manifestarem. No dia seguinte, a imprensa dá à manifestação um significado nacionalista.
Na transmissão efectuada pela rádio do acontecimento é acentuada a existência de alguns homens de cor de forma a sublinhar que a razão está com os portugueses. A ideia subjacente é a de que Angola é território português e os revoltosos não passam de bandidos, que agridem e ferem a nação portuguesa e se os Estados Unidos estão a favor deles são contra Portugal e o povo português; a manifestação na embaixada é, pois, legítima e natural. Até os polícias não reagem porque estão imbuídos do mesmo sentimento. É assumida a promoção da manifestação pelo governo, embora discretamente. “Alguns dos homens que se desprenderam da multidão, ao encontro das varandas e janelas deste prédio dos Estados Unidos, são homens de cor e isso também é altamente significativo neste momento. Eles estão aqui, afinal, na firme determinação de defenderem Portugal, assim, sem armas, de peito feito, de peito descoberto, ou com armas na mão se for preciso (…). A polícia, aliás, devo dizer-vos, não mostra vontade decidida em dispersar a multidão; a polícia também é portuguesa e isto é uma reacção portuguesa (…)”[4].
Na estrutura do relato, os manifestantes não são ouvidos. O repórter ultrapassa a descrição das acções, embebendo os ouvintes em sentimentos patrióticos, sem ouvir as testemunhas.
No dia 4 de Abril, o 12º aniversário da NATO é aproveitado para nova exibição contra os EUA: “O anti-americanismo tornara-se uma psicose política para o bloco salazarista. Não atacar os Estados Unidos era ser antiportuguês”[5]. As cerimónias, que decorrem na Universidade de Lisboa, têm uma cobertura intensiva da Emissora Nacional.
Crónicas radiofónicas
O Rádio Clube Português transmite, no dia 5 de Abril, uma crónica de José Drumond, enviado especial a Angola. Não existe som algum, para além das palavras do cronista. A história é sobre um português que consegue “salvar-se da fúria selvática dos assaltantes, dos grupos fanáticos”. Um tom novamente patriótico, subjacente à ideia de que apesar das atitudes criminosas dos negros, há portugueses em Angola que honram a sua pátria, lutando e resistindo às agressões, mesmo se em teoria “as probabilidades de ter resistido a um ataque era uma em mil”[6].
A ideia defendida pelo governo de que a revolta havia sido provocada por forças externas é a parte fulcral de uma outra crónica, também de José Drummond, transmitida no dia 2 de Maio, no RCP. Nela, compara-se o confronto angolano a uma tragicomédia, com enredo em três actos: “Primeiro, semear o terrorismo, matando a esmo mulheres e crianças, para, assim, e mais facilmente, dar início ao segundo acto. Neste o objectivo seria acender o ódio racial (…). Enredo do terceiro acto: a intervenção de forças internacionais para restabelecer a ordem, tal como se está a verificar no Congo (…). E pode até admitir-se que pretendem incluir Angola nesse espectáculo de conjunto. Mas os organizadores, os empresários desta hecatombe vão ter dificuldades na sua empresa odiosa, vão fracassar”[7].
O cronista referia-se à vila do Negage, que considera um oásis no Congo português. “O Negage é um exemplo admirável neste mundo caótico, afirmação de fé, de vontade indómita, de um escasso número de portugueses que, graças a Deus, está a dar ao mundo as luzes da lusitanidade, que jamais foi desmentida”.
A crónica termina sublinhando a perspectiva de que os territórios, sob dominação portuguesa, são eminentemente portugueses: “Esteve a falar-vos José Drummond, de Angola, província portuguesa de África”. Uma forma semelhante à de Pitta Groz Dias, quando inicia a reportagem para o Rádio Clube de Malange afirmando que este “fala de Portugal para Portugal”. Esta peça (transmitida também para o Rádio Clube de Angola, Rádio Clube Português e publicada na “Província de Angola”) baseia-se no ponto de vista de que os revoltosos negros são terroristas, bandoleiros e/ou bandidos.
O grosso informativo do trabalho passa pela notícia de que uma patrulha que destruiu, no extremo noroeste do distrito de Malange, “uma das mais importantes concentrações de terroristas”: “Por informações recebidas de indígenas fiéis à pátria portuguesa, sabia-se que alguns milhares de bandoleiros, aliciados pelo comunismo, à prática dos mais aviltantes actos de banditismo, haviam abandonado as suas sanzalas (…). Seguindo os seus métodos usuais de traição e cobardia, os bandidos praticavam nas referidas zonas, as maiores crueldades e as mais revoltantes atrocidades, sobre os pacíficos nativos, que, fiéis à soberania portuguesa, e orgulhosamente leais à pátria, os não quiseram seguir, na senda do crime e da vida fácil da pilhagem”[8].
[1] «99,7% da população africana de Angola, Guiné e Moçambique é considerada “não civilizada” pelas leis coloniais portuguesas e 0,3% é considerada “assimilada”. Para que uma pessoa “não civilizada” obtenha o estatuto de “assimilada” tem de fazer prova de estabilidade económica e gozar de um nível de vida mais elevado do que a maior parte da população de Portugal. Tem de viver à “europeia”, pagar impostos, cumprir o serviço militar e saber ler e escrever correctamente o português. Se os portugueses tivessem de preencher estas condições, mais de 50% da população não teria direito ao estatuto de “civilizado” ou de “assimilado”». Extracto de “The facts about Portugal`s african colonies”, editado em Londres, em 1960 e citado em “História contemporânea de Portugal” – A dominação colonial portuguesa – Amílcar Cabral, direcção de João Medina, Ed. Multilar, pág. 224.
[2] “Nestas colónias os africanos não têm nenhum direito político e não podem fundar organizações sindicais. Nem sequer gozam dos mais elementares direitos humanos. Apesar de uma cruel polícia secreta, de uma administração colonial desumana, da brutalidade dos soldados e das milícias dos colonos, as organizações nacionalistas africanas desenvolvem uma resistência activa face ao colonialismo português”, Idem, pág. 223.
[3] Arquivo histórico da RDP.
[4] Idem.
[5] ANTUNES, José Freire - Kennedy e Salazar – o leão e a raposa, Difusão Cultural, Lisboa, 1991, pág.212.
[6] Idem.
[7] Arquivo histórico da RDP, Rádio Clube Português, 2 de Maio de 1961, José Drummond.
[8] Arquivo histórico da RDP, Rádio Clube de Malange, Pitta Groz Dias.
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