quarta-feira, 18 de junho de 2008

Dor benfazeja


Sinal - inevitável - de resistência, convida a estar atentos e conduz-nos ao presente. Depois de Portugal ter assinalado, este Sábado, o Dia Nacional de Luta Contra a Dor, eis os benefícios quase desconhecidos desta verdadeira ponte para a liberdade.

Texto e desenho* Dina Cristo

A dor é altamente informativa – ela sinaliza com elevada eficácia a acção incorrecta – seja ela mental, psicológica ou física. Consoante o seu tipo, intensidade e local assim a referência que dela pode ser extraída sobre o desvio à realidade mais adequada à natureza de cada um. Ela indica com rigor onde e como há equivoco no caminho seguido. Sempre que dele nos desviamos há um sinal de alerta infalível que o acusa. A primeira nobre verdade budhista ensina, orienta e não engana. Sempre que se diz “não” à vida, rejeita ou bloquea algo lá está ela para o lembrar.
A cada via errada corresponde, portanto, uma determinada pena. Acções viciosas, demeritórias geram sofrimento, lembrava já Patandjali. A dor é um signo, com uma mensagem para ser descodificada e entendida. É um meio informativo altamente individualizado e útil. Desperta sempre que nos enganamos e confundimos a ilusão da mudança (como a paixão) com a verdade da permanência (como o Amor). Cada vez que fazemos algo inconveniente para a alma ou corpo ela sinaliza; indicia o caminho errado, para que o possamos corrigir.
Mas em vez de a escutarmos, muitas vezes preferimos deixá-la de ouvir e sobretudo de sentir. “Sim, às vezes, até dói sentir mas, na verdade, ainda bem que podemos sentir”, elucida Louise L. Hay. Emoções quantas vezes dolorosas. Por isso é, aparente e imediatamente, mais fácil esconder ou disfarçar. É mais rápido tomar um comprimido para uma dor do que iniciar o processo de cura da causa que a está a provocar.
Ao anestesiar-se regularmente o Ser Humano, sem o perceber, desensibiliza-se não só em relação à dor mas também ao prazer. Prescindindo do sofrimento, acaba por dispensar, por consequência, o deleite e deixa muitas vezes de ser tocado pelas coisas mais belas e singelas. De tal forma se gera insensibilidade que algumas pessoas já só conseguem sentir algo em situações extremas de sofrimento infligido a si próprio (masoquismo), a outro (sadismo) ou a ambos (sadomasoquistas). Só quem sente dor a provoca em si e nos outros, seja de forma mais ou menos consciente, e a dor provocará mais dor, insatisfação, dramatismo emocional e infelicidade.
Começa por deixar de sentir uma dor simples, de cabeça, de estômago, de dentes. Confunde a eliminação artificial do sintoma com a erradicação da doença que, sem dela ter sinais, permanece. Persiste até um dia, tantas vezes implodida por “medicamentos”, explodir num caso grave e às vezes mortal. Qual automóvel a que se decidiu destruir a sinalética motora para o conduzir inconscientemente, enfrentando então o desastre e, quem sabe, a morte. Sem consciência do erro, adia a solução, persiste no equívoco até uma crise aguda chegar. Entretanto, a dor que se vai ocultando, acumula-se e acabará por se escapar, expressando-se, antes de uma eventual resolução fatal, através do ressentimento, raiva, culpa, irritação, ciúme, impaciência, desespero, auto-comiseração ou em todas as formas de auto-destruição sejam lentas (como o tabaco) ou rápidas (como o suicídio).
Resistência
Para além do medo de a viver, o que só a faz perdurar, e do erro (e sentimento de culpa adjacente) há outras origens da dor. A insatisfação, a carência, o sentimento de imperfeição cria dor. O conhecimento da verdade gera muitas vezes mágoa. A indecisão com a sua tensão e conflito arrastado produz sofrimento. A ingestão de alimentos da família das solanáceas, como a batata, o tomate, a beringela, também; inflamam o corpo e provocam dores. A acidificação do sangue, a diminuição de serotonina aumenta o nível de sofrimento sobretudo a quem já é mais sensível à dor. A fuga ao presente, como toda a oposição, causa dor. E quanto maior a resistência às mudanças da vida, mais dor se irá sobrepor no corpo (mental, psicológico e físico).
A crítica, o julgamento, cria padecimento. Todos os padrões mentais negativos, os pensamentos com forte carga emocional destrutiva, sobretudo se associados a aspectos egoísticos da personalidade – paixão, apego, desejo, aversão, avidez, cobiça, luxúria, ódio, ira, agressividade, ressentimento - são grandes responsáveis pela dor. A ilusão, que confunde o permanente com a mudança, levando à procura da constância na inconstância, gera uma forte dose de dor. Como afirma Helena Blavatsky, "A principal causa do sofrimento está na nossa busca perpétua do permanente no impermanente, e nós não só buscamos, mas agimos como se já tivéssemos encontrado o imutável em um mundo cuja única característica certa e que podemos proclamar é a constante mudança; e sempre, no momento em que nós pensamos que conseguimos estabelecer a nossa base sobre algo permanente, a situação muda diante de nós, e o resultado é o sofrimento”.
Outra grande causa de dor é a consciência, abaixo ou acima da média. A ignorância, até pelos equívocos que provoca, cria dor, mas também os seres que estão na senda espiritual e desenvolvem uma consciência mais abrangente, num altruísmo que os faz identificarem-se com os outros, a quem amam e pelos quais se interessam, também o provoca: «(…) E tudo dói na minha alma extensa como um Universo(…)», como escrevia Álvaro de Campos que na “(…) última fase vai ser esse coração insone em que tudo dói: o que foi, o que não foi, o que é, o que não é, e também a vasta dor do mundo»
[1]. Maior sensibilidade traz um sofrimento mais doloroso; trata-se, neste caso, de uma espécie de prova para atletas do espírito, em ciclo ascencional.
Poder curativo

A dor está presente logo desde o momento do nascimento, quer para o recém-nascido - o trauma da entrada num universo gelado, sonoro e luminoso que angustia e faz gritar - quer para a própria mãe. Não há parto sem dor. Todo o nascimento implica sofrimento. As modernas técnicas de eliminação da dor, além de alguns danos graves já causados, criam a ilusão de que dar à luz é indolor (tal como o fazem relativamente à morte). A dor é natural, inerente à própria vida e é ao longo dela inevitável. Não há vida sem erro e sendo este a principal causa de dor, não é possível viver sem a experienciar.
As tentativas de a controlar foram tantas e tão contínuas ao longo do tempo que, na falta de relaxamento, elas se vão sedimentando no corpo de dor, cristalizado e manifestado, por exemplo, nos Síndromas Pré-Menstruais, ou em depressões, ambas tipicamente femininas – altura óptima para um processo de aceitação das mágoas. Devido à sua acumulação, tentativa para as dissimular, sem que desapareçam efectivamente, as dores escondem outras anteriores, como numa casca de cebola, razão pela qual num verdadeiro processo de cura, ao desbloquear energia, reaparecem sintomas antigos para que possam ser verdadeiramente sarados.
A dor pode ser temerosa, parecer insuportável, mas não é intransponível. Por muito dolorosa que seja, ela não dura para sempre e terminará (mais cedo), necessariamente, se for aceite. A dor (tal como o medo) é uma grande guardiã do prazer, felicidade e alegria, paraísos que assim são reservados. Como lembra Victor Martins, “prazer e dor são uma parelha que jamais pode ser separada”. Se é verdade que o prazer imediato provoca muitas vezes mais tarde sofrimento pelos seus efeitos (como a dependência, a saudade, a carência) também a dor, se aceite, bem vivida e então erradicada, não passa de um meio que conduzirá à bem-aventurança, paz, libertação, compreensão e cura.
Ao ser enfrentada e assumida, como no caso do luto, e não mascarada e ocultada, ela pura e simplesmente se resolve e elimina, sobretudo se for emocional. A dor é, deveras, memória passada acumulada; muitas vezes, no momento actual não há qualquer problema ou pesar. Forçando a decidir qual a melhor via a seguir, leva antes a ajuizar sobre as melhores opções de vida, a peneirar o trigo do joio, gerando um conflito até um ponto de ruptura que leva à decisão. Obriga, assim, a distinguir qual a verdade da ilusão, o que faz bem (a longo prazo) do que sabe bem (no imediato). Nesse processo de transformação, ela é alquimia que eleva cada vez mais em direcção à essência e mantém a fidelidade ao próprio ser. Ao mesmo tempo que ilumina - já que através dela se percepciona qual o melhor caminho a seguir, contribuindo para o auto-conhecimento - também purifica.
Uma das grandes virtudes da dor é obrigar a sentir o instante, a focar a atenção no aqui e agora, às vezes pela sua intensidade. Tão fortes são certas dores que continuar a ignorá-las torna-se impossível. Na sua aparente crueza, a dor atira ao chão do presente, sem subterfúgios, desculpas ou pretextos. Aceitando-a, no entanto, como meio de comunicação individual e observando-a, (mais) rapidamente é ultrapassada. Uma dor pode salvar se para ela houver olhos e ouvidos. Se não for calada tomando um comprimido químico, análgésico ou anti-inflamatório, que a prolongará, ainda que silenciosamente.
Há aliás substâncias orgânicas no corpo humano, como a prostaglandina, que ajudam a produzir reacções que evitam a dor; o chá de cravinho, tal como o magnésio, chocolate ou canela, por exemplo, também auxiliam no alívio das dores. Mas não há remédio como a aceitação do presente, permitindo que a vida flua, com as suas (in)satisfações. Deixando vir a dor, ela rapidamente se dissipa e em seu lugar haverá espaço para o bem-estar. Se esta limpeza diária for feita não serão acumulados resíduos. E em cada dia serão aceites as suas tristezas e alegrias respectivas.
Mais elucidados e orientados, mulheres e homens estarão prontos para desfrutar da vida na sua versão integral e não apenas numa, a cores garridas, que a distorce e é a sua morte lenta e agonizante. A aceitação devolve a saúde, a harmonia entre os dois pólos, integrados, o que conduz à verdadeira resistência e a um espírito construtivo. Foram, aliás, várias as obras-primas criadas após um intenso período de sofrimento. “Devemos ter a sagacidade", aconselhou Goethe, "de permitir pegar na dor e transformá-la numa obra de arte”.
Pietro Ubaldi sugeria que não se temesse a dor, pois ela é um poderoso instrumento de redenção, se for vivida de forma equilibrada. Há pois que não fugir apressadamente, sem reter as suas virtudes e ensinamentos, mas também sem excessivas demoras, correndo o risco de a prolongar ao ponto do afundamento em depressões crónicas ou profundas. A decisão de a vivenciar ou não, e como, é de cada um. Está nas mãos da humanidade a liberdade de escolher. Afinal, como afirma José Manuel Anacleto, «a vontade é mais forte que a dor».
Luta inglória
Pelo mundo fora há, hoje, uma guerra contra a dor. Esta aparece como hostil, algo a controlar. Instituem-se os Dias Nacionais e Mundiais de – Luta Contra a – Dor, de que Portugal foi pioneiro, em 1999, publicam-se manuais, livros, jornais e revistas sobre o tema. Profissionais do sector da saúde formam-se para eliminar o inimigo. Se bem que em casos extremos tais cuidados sejam necessários – qualquer doente se impacienta perante dores graves, prolongadas e insuportáveis - alguns deles poderiam ser evitados se a atitude geral perante a dor fosse diferente.
Há hoje uma intolerância generalizada face à dor. Também ao nível social, individual e de género, ela é vista como a grande adversária, de quem todos temem, alguns mais do que a própria morte. No caso dos homens tal é patente no preconceito de que um ser humano do sexo masculino não deve chorar. Considerada nociva, lança-se sobre ela todo um arsenal de combate. Todos os esforços parecem ser insuficientes para a conseguir “debelar”.
Também se usam as mais diversas estratégias para a “enganar”, através de fugas – dependência de substâncias, actividades ou pessoas. Álcool, droga, açúcar, café, jogo, trabalho, televisão, sexo, comprimidos são alguns exemplos compensatórios nesta guerra mundial. Mas quanto mais dela se a evita, mais ela sobrevive e se expressa. É, portanto, uma luta inglória, que não terá sucesso enquanto não forem extintas as suas causas. Como aconselhava Helena Petrovna Blavatsky, as lágrimas não devem ser enxugadas enquanto não for retirada a dor que as causou.


* Anos 80 [1] Teresa Rita Lopes in CAMPOS, Álvaro – Poesia, Assírio & Alvim, 2002, pág.29.

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2 Commentarios:

Anonymous Anónimo disse...

Lise Bourdeau vai mais longe e afirma que quem sofreu uma ofensa importante na infância - como rejeição, abandono, humilhação, traição, ou injustiça - por um ou por ambos os progenitores, e a viveu em isolamento, pode vir a contrair, mais tarde, uma doença grave. A autora explicita-o em “O teu corpo diz “ama-te” – a metafísica das doenças e do mal-estar”, editado pela Pergaminho, em 2007, aquando da 4ª reimpressão do livro, na página 93.

segunda-feira, 23 junho, 2008  
Anonymous Anónimo disse...

Olá.

Gostava de dizer que se não formos masoquistas a dor é, de facto, no mínimo desagradável mas depois de ultrapassada ela pode mesmo tornar-se extremamente regeneradora, sobretudo ao nível psicológico.

Parabéns pelo blog.

domingo, 20 julho, 2008  

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