quarta-feira, 12 de junho de 2013

Arrefecimento mediático?

Seis anos depois de realizarmos a Conferência sobre Informação Solidária(ante)vemos alguns sinais do (sobre)aquecimento mediático.

Texto Dina Cristo pintura Lídia Pinto

A exclusão do sujeito e o tomar a parte, assim, incompleta pelo todo transformou-se numa informação distanciada, objectiva e exclusiva de que resultou a crise de imprensa, em que de tanto afastamento os leitores a abandonaram tal como a atitude dos eleitores em relação aos políticos.
Agora, para recuperar da crise, o próprio jornalismo público defende o restabelecimento da ligação, do vínculo entre (e)leitores e agenda dos media e a agenda política, com envolvimento e participação.
Tal religação é também hoje defendida no âmbito do novo paradigma da ciência, holístico (quer o reaparecimento do sujeito enquanto tal quer no próprio objecto), na ética do cuidado (com a importância pública e profissional da atenção ao outro) – também aplicada aos jornalistas – e da informação social, com tripé mais equilibrado entre os líderes, acções, fontes e perspectivas não só política e económica mas também social.
Immanuel Kant chamava a atenção para o facto de o nível racional corresponder ao cumprimento da lei moral, sendo o amor aos outros a principal moralidade, que inclui não só o cumprimento da lei (mera legalidade) mas sobretudo o espírito da lei, por mor dela, ou seja, de forma desinteressada e impessoal.
Ora a informação irracional - que responde à satisfação das inclinações pessoais e dos interesses particulares, do mundo dos sentidos e dos fenómenos – e saturada, em alta definição e resolução de hoje, sem espaço para a reflexão, corresponde, em certa medida, à noção de colonização mediática, defendida por Adorno.
O sistema mediático, que apesar de ter como origem a lifeworld, autonomizou-se dela de tal forma que desenvolveu, dentro da complexidade das sociedades modernas, a especialidade e os códigos legais – que além de reduzir a necessidade de troca, entendimento partilhado e consenso, através da comunicação – delegando neles de tal forma o seu poder que passou a penetrar e até a determinar a própria vida de todos os dias. Os vários sistemas criados pelo ser humano, entre os quais o mediático, passaram não só a influenciar o quotidiano como a dominá-lo.
Numa acepção mcluhaniana, os meios verticais, unilaterais, fechados, agressivos e uniformes, já de si quentes, estão em sobreaquecimento, intensificando o seu carácter activo, distante, controlador, quantitativo e objectivo. Contudo, como nada está em expansão permanente, além de que o ponto de não retorno da sua ampliação conduzirá ao seu contrário, à contracção, é previsível (tal como ao nível climático) o arrefecimento.
Tal processo implica, ao nível mediático, uma maior aproximação à horizontalidade, bi e multeralidade, canais mais abertos, de baixa definição e espaço para a interpretação e participação do sujeito receptor, inclusão do feed-back, da subjectividade e da qualidade – dando valor não apenas ao rigor, aos números, aos factos e object(iv)os, mas também à compaixão, ao significado, às intenções, aos princípios e valores.
A deslocação para meios mais frios, passivos, receptivos, lentos e amplos, com efeitos ao nível da moderação e equilíbrio mediático, implica, ao nível informativo, também um jornalismo mais compreensivo, compassivo, democrático, integrando a diversidade, com implicações ao nível da unificação e da verdade dos relatos, representações e interpretações.
O arrefecimento mediático, mais soft e slow, verifica-se ao nível do maior envolvimento, quer do sujeito emissor, mais comprometido, quer do receptor, mais implicado na agency social. Tal significa menos informação e mais útil – capaz de se traduzir numa (mudança de) atitude efectiva.
Os media e a informação que produzem, neste âmbito, torna-se mais humilde, tolerante, diferente e sintética, com poder não ao nível do controlo informativo mas do desenvolvimento da comunicação. Enquanto se mantiverem ao nível de meios técnicos, extensões criadas pela humanidade, esta conserva-se enquanto fim, assegurando a sua dignidade e evitando que, em circunstância alguma, os humanos se tornem um meio sendo a técnica pervertida num fim em si mesma – a Humanidade como extensão tecnológica.
Esta moderação dos media traduz-se numa descolonização do sistema mediático: meios menos hierárquicos, ruidosos, analíticos, de alta definição também conceptual e resolução cultural, o que significa, segundo a escola crítica, menos dominadores e manipuladores. Diminuir a definição implica menos controlo na limitação do todo na parte (codificada) e uma alta informação, preservando a dialéctica, o conflito enriquecedor entre as partes, deixadas em aberto pelos criadores para que o receptor as possa recriar.
A valorização nomeadamente da rádio comunitária - indício de um maior equilíbrio entre a via pública, massiva, mais colectiva, e a via privada, de elite, mais individual, sinal não apenas de uma fase grupal, mais moderada, portanto, mas igualmente de uma efectiva religação, participação e envolvimento, tal como é pretendido pelos defensores do jornalismo público – é um reflexo da descolonização mediática.
Quando as preocupações dos cidadãos são relatadas, debatidas e procuradas soluções, como no caso do jornalismo social – onde o cuidado colocado nas várias relações e tarefas durante o processo de produção informativa, como as fontes e a linguagem usada – o público mostra interesse, interage, toma parte e envolve-se, num espaço auditivo apropriado, nem demasiado próximo nem excessivamente distante.
A acção concreta dos agentes mediáticos no âmbito social está a contribuir para a transformação do sistema, em algo mais harmonioso, contemplando não apenas a acção rápida, automática e interessada de qualquer dos seus agentes, mas atendendo igualmente à recepção, com mais baixa frequência e melhor processamento da informação, mais profundamente entendida e desinteressada – assente no princípio do bem comum, da comunicação e da comunidade – numa consciência e identidade já não líquida mas gasosa correspondente ao estágio pós-convencional de Kohlberg, indicativo de um círculo de cuidado e atenção de carácter universal.
É notória a tentativa actual para colocar o social no seio de grande parte do discurso e preocupações públicas, desde a teoria e pesquisa social até à comunicação social, passando pela semiótica social, função social, estrutura social, construção social da realidade, instituição social, relação social, agente social, estado social, segurança social, solidariedade social, justiça social ou, entre outras ainda, desenvolvimento social. Ao nível dos media, Ignatio Ramonet aponta a dimensão do quinto poder e Alicia Cytrynblum da informação social.
O decreto InterMirifica começa a produzir os seus efeitos, para além dos media sociais, nas redes sociais ou no jornalismo participativo - onde sob o argumento da interacçção e intervenção do receptor, se atinge a sua colaboração voluntária e graciosa na produção e reprodução de acontecimentos, transformando-o, na prática, em distribuidor gratuito de notícias, sendo explorado, muitas vezes sem tal consciência, dada o carácter sedutor, imediato e de aparente facilidade – numa real interdependência, integrando e ultrapassando a dicotomia entre a dependência, solidária e colectiva, e a independência, livre e individual.
Há, pois, sinais de arrefecimento mediático concretizando a designação “Meios de Comunicação Social” e de fortalecimento do meio sonoro, constantemente presente no audiovisual – omnipresente, subtil e invisivelmente, o que é fonte de poder e veículo de retribalização, à escala global, promovida pela actual digitalização que, por sinal, deixa mais espaço de transmissão disponível, capacitando-a para receber novos e diversos emissores.
Assiste-se, assim, à tentativa de religar e cuidar das partes excluídas, até aqui censuradas, por uma razão parcial, degenerada, distorcida e corrompida pelos mass media e a indústria cultural, como Adorno denunciou, rebaixada à impureza, à instrumentalidade e ao utilitarismo. A expressão da subjectividade, assim recuperada, será, pois, um reflexo da regeneração da razão, como Kant defendeu, o que significa o restabelecimento da centralidade do sujeito que, no âmbito do novo paradigma científico, se aprofunda mais pela colocação da Natureza no centro da própria pessoa, já de si nuclear nas formas pós-modernas de conhecimento.
Este reaparecimento do sujeito, da razão desembrutecida, da descolonização do sistema mediático na lifeworld - após a sua saturação, ao penetrar na própria vida social, indiferenciando a vida produtiva do espaço-tempo de lazer - implica a renovação da identidade e da consciência, com consequências ao nível da agency grupal, temperada, após o desequilíbrio entre o excesso e a falta de solidariedade, ambas inibidoras da acção social, da passagem da benevolência à beneficência, próxima e concreta.
Após a separação, o distanciamento, a exclusão, a razão enfraquecida, a colonização, o aquecimento, o domínio do sistema, em várias áreas sociais, da política ao jornalismo, há indícios (d)e vontade de (re)união das partes extirpadas, como a natureza mental, interior e subjectiva, de (re)aproximação, de (re)integração no todo original, de valorização da lifeworld, da purificação da razão, com um interesse cada vez mais impessoal e transpessoal, manifestada em novas disciplinas especializadas na área social, como a Semiótica social, a Jurisdição social ou também solidária, como a Economia ou o Turismo.
Num meio quente como a rádio, estimulante de um único sentido, a audição, tipicamente tribal, das sociedades arcaicas – prévias à complexidade e especialidade moderna – há sinais de arrefecimento depois da colonização informativa, como ocorreu no Rádio Clube de Moçambique, entre 1953 e 1973, com o aumento progressivo de horas de emissão de “A Voz de Moçambique” bem como a expansão, intensificada no período de Marcello Caetano, dos Emissores Regionais - uma forma mais agradável, subtil e próxima de a fazer infiltrar nos povos autóctones.
O (sobre)aquecimento mediático, a aceleração, a expansão, a saturação e a limitação máxima de espaço e tempo à participação terá, atingido o seu nível máximo, um efeito contrário, ou seja, de desaceleração, de (s)low information, mais ‘silenciosa’ e espaçosa, por forma a permitir o envolvimento democratizado, agora à escala digital e planetária e, portanto, uma maior aproximação, (re)ligação, comunicação e unidade social livre e com base na diversidade, o que, após os períodos de forte ênfase quer no comunitarismo, na ordem e na estabilidade social, quer no individualismo, na liberdade e na mudança social, acelerará o processo de retribalização universal e de fusão grupal.

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