quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Vida serrana



Para enfrentar os tempos difíceis que se avizinham, olhamos para trás e reaprendemos com a população na montanha que sobreviveu à miséria.



Texto e fotografia Dina Cristo



«A vida simples das gentes serranas encerra uma lição de harmonia, sóbria dignidade e utilização comedida dos recursos (…) os utensílios eram remendados, reaproveitados ou reutilizados em novos contextos; nada se desperdiçava ou tirava fora; não havia tanto lixo nem se acumulavam objectos supérfluos»(1), retrata Paulo Ramalho.



A cultura serrana era despojada. «O Serrano era parco na sua alimentação, simples na sua atitude e honesto na sua conduta» refere António de Jesus Fernando, numa crónica da Serra publicada na Comarca de Arganil em Janeiro de 1997, citado pelo autor no seu livro “Tempos difíceis. Tradição e mudança na Serra do Açor”, editado em 1999, pela Câmara e Museu Municipal de Arganil.



«Tudo se cruzava, tudo estava intimamente ligado na vida quotidiana”(2) e numa relação estreita com a Natureza. As luzes acesas nunca podiam ser pares e cada utensílio era um bem raro. Os objectos eram improvisados e tinham múltiplas utilizações; eram simples e rústicos, mas belos e harmoniosos.



A aldeia tinha beleza e unidade, era «(…) uma parte que se integra harmoniosamente no todo”(3). As casas, pobres e escuras em lugarejos abandonados, eram de linhas simples e sóbrias mas possuíam um oratório familiar. Os quartos eram cubículos, gelados e sem janelas e os filhos mais velhos dormiam nos palheiros. Em quadras festivas, as paredes eram forradas com jornais.



A vida era difícil, por vezes miserável, mas de grande honestidade: «Uma vida dura, de trabalho e isolamento, com descanso no “dia consagrado”»(4). Os mineiros (nas Minas da Panasqueira) tinham um ofício perigoso e mal pago. por seu lado, os artesãos, muitas vezes, faziam os consertos em casa dos clientes, onde passavam dias. Havia relações de troca e os serviços prestados eram pagos em géneros.



Cultura de subsistência



O milho era o principal sustento. Seco ao sol e moído nos moinhos, com ele se faziam os coscoréis e a broa, inacessível aos mais pobres, que era cozida em fornos comunitários, com água morna, sal, farinha – sempre a mais velha - de milho, de trigo e de centeio.



O porco era essencial e o rebanho proporcionava, além do estrume, queijo, leite, carne e lã. Os chouriços e os queijos conservavam-se com azeite, que se benzia: «Deus te acrescente agora e sempre pelas almas do Purgatório”. O acesso aos alimentos dependia da idade e do sexo, segundo um código hierarquizado. Havia pouco espaço e repasto - as duas refeições quentes eram o almoço e a ceia.



«Por polémica iniciativa do Estado Novo, os pinhais substituíram, quantas vezes à força, os montes baldios cobertos de mato onde as cabras pastavam livremente»(5), controlando a sua altura e minimizando os riscos de incêndio. Hoje, em lugar dos matos existem pinheiros, eucaliptos, ribeiras secas, erosão e… fogos, que vieram nos anos 70 e 80, com o crescimento dos matos.



A Serra foi o espelho onde se reflectiam, ampliadas, as agruras do mundo. A miséria e a fome levaram à emigração para África, Brasil, Europa e Lisboa. Mas antes da aventura para lá da curva da estrada, há, segundo o autor, que recordar as raízes sãs e (re)colher os últimos ensinamentos: «Olhemos bem para trás antes de transpormos as portas do futuro»(6), recomenda.



O futuro está no passado



«Profunda contradição, esta – cada porta abre para um mundo agonizante, exibe feridas fundas vindas do passado, é um testemunho de tempos difíceis. Mas, a mesma porta, empurrada na direcção oposta, abre para o futuro (...). Conseguiremos nós, peneirar o passado no crivo do presente até lhe retirar o joio espúrio da pobreza e da miséria?»(7), interroga o autor.



Paulo Ramalho está convicto de que os dias que estão para vir mergulham as suas raízes nos dias já idos; afinal, cada geração come o pão amassado pela anterior. «Talvez o futuro deva ser assim: algo de muito novo, feito com a pedra sólida do passado»(8), já que:

«A nossa vida é um longo corredor

Atrás de nós cada chave fecha uma porta.

Se não as deitarmos fora, à nossa frente

Outras portas do corredor elas podem abrir»(9)


«A nossa civilização chegou à sua última encruzilhada: agora, ou consumimos o que resta do planeta ou reciclamos quase todos os nossos hábitos e atitudes»(10), defende Paulo Ramalho.

(1) RAMALHO, Paulo – Tempos difíceis. Tradição e mudança na Serra do Açor. Câmara Municipal de Arganil/Museu Municipal, 1999, pág. 84. (2) Idem, pág. 38. (3) Idem, pág. 15 (4) Idem, pág. 56. (5) Idem, pág. 67. (6) Idem, pág. 88. (7) Idem, pág. 15. (8) Idem, pág. 88. (9) Idem, pág. 90. (10) Idem, pág. 82.

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