quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Saudades de Portugal




No dia da reeleição de Barack Obama, véspera dos 135 anos do nascimento de Teixeira de Pascoaes, relembramos, através da primeira obra de prosa do escritor português, o potencial da natureza saudosista da alma nacional.



Texto Dina Cristo



A pátria é um ser vivo, espiritual, superior às vidas individuais que o constituem e dependente, no seu progresso e liberdade, do sacrifício dos indivíduos que, para se guiarem no seu trabalho, amor e luta, devem conhecer a alma portuguesa, plena de lembrança e esperança.



É o sacrifício, o serviço do inferior ao superior, que permite a harmonia universal. No ser humano rudimentar ele manifesta-se através da vivência da vida da família, no ser mais elevado, da pátria e no ser sublime da Humanidade e, depois, do próprio Universo. Contudo, esta lei suprema deve ser cultivada sem destruir os interesses individuais, familiares e municipais.



Para Teixeira de Pascoaes, o indivíduo deve, em primeiro lugar, amar-se a si próprio, a sua alegria e beleza, cuidando da sua saúde. «Devemos, antes de tudo, amar a nossa pessoa individual, vendo já nela a sua descendência. O verdadeiro próximo somos nós. O outro próximo é uma ilusão, origem piedosa de muitos males»(1).



A recordação



Para além da paisagem (a terra) e da herança (o sangue), na origem primitiva da alma pátria esteve a fusão de dois ramos distintos: o ariano - do qual procedeu a civilização greco-romana, o Naturalismo, o Paganismo, o Panteismo, a Forma, a Sensualidade, o amor carnal, que mantém a vida - e o semita, do qual adveio a civilização judaica, a Bíblia, o Espiritualismo, o Cristianismo, o amor ideal, que purifica a vida.



Gregos, romanos, celtas, godos, por um lado, e judeus, árabes e fenícios, por outro, misturaram-se, casaram-se a tal ponto que a sua dualidade e contraste se uniu, dando origem à raça lusíada, com qualidades físicas, morais e electivas próprias de um povo, bem como a promessa de uma nova luz original, de que resultou o sentimento saudoso.



A saudade - memória amargurada e dolorosa do passado, de âmbito espiritual, e esperança alegre, gostosa em relação ao futuro, de âmbito material, o parentesco íntimo com as coisas - manifesta-se sobretudo ao nível da linguagem popular, de extrema sensibilidade ao Mistério, das palavras intraduzíveis, que emanam a essência espiritual de tal sentimento, das lendas, da arte como da religião.



Mas a área em que melhor se revela o misticismo e a sensibilidade panteísta da alma portuguesa é na literatura, na expressão vivente dos escritores portugueses, não apenas forma mas também essência, e sobretudo na poesia, no seu lirismo elegíaco, no amor saudoso e platónico, no sentido etérico, puro e imaterial.



A esta superioridade poética corresponde uma inferioridade filosófica, pois a personalidade portuguesa, mais sentimental, espontânea e emotiva, alumia mais do que vê, vive mais do que interpreta. Tal característica conduz à dispersão do ideal colectivo, que assim é ignorado e incompreendido, e, incapaz de construir novas verdades, leva Portugal a transviar-se, a hesitar e a não progredir.



Para avançar, a pátria necessita do sacrifício dos portugueses, guiados no seu amor, trabalho e luta pelo conhecimento da essência da alma pátria, a saudade, e da sua aspiração, a Renascença. «Desejaríamos tornar sentimental a VERDADE PORTUGUESA demonstrada neste livro, para que ela desse nova energia aos portugueses»(2), declara, no final da obra o seu autor.



(De)feitos



Do carácter saudoso, o desenho íntimo, o ser, resultam as qualidades, exteriorização em acção, o fazer, da alma nacional. Em primeiro lugar o sentimento de independência e de liberdade, de que deriva o génio aventureiro (que leva a arriscar a vida individual por um fim de utilidade colectiva), o poder de iniciativa, a faculdade inventiva.



Este espírito de originalidade, sob a dor (da derrota), como no sebastianismo, pode transformar-se na segunda derivação, o espírito messiânico, que é a espiritualização da aventura, a redenção e a sua missão. As três qualidades existem nas artes e nas letras, ao contrário dos defeitos, que vivem nos portugueses, assim que o carácter adoece, se dilui e decai.



«Que tragédia, a terrível ausência da nossa alma! O sonâmbulo automatismo em que vagueia a nossa Pátria sem destino, tão aleijada e apagada de feições que é difícil reconhecê-la! Será ela? Não será? O incolor, o insípido, o inodoro esfumam, em nódoa pálida e fria, seu vulto mortuário, errando ao sabor daqueles que exploram a sua morte…»(3).



Trata-se da vil tristeza que acompanha a falta de persistência, quando o espírito de aventura, impulsivo, não tem continuidade e é, muitas vezes, abortado. O lado negativo do pioneirismo surge, então, reforçado, degenerado e viciado, enquanto espírito de imitação, de vaidade susceptivel e de intolerância.



«É outro defeito muito vulgar num Povo que foi grande e decaiu. Inferior e pobre, considera-se ainda possuidor dos bens arruinados. Continua a viver, em sonho, o poderio perdido. Mas, como toda a vida fantástica pressente o próprio nada que a forma, torna-se, por isso mesmo, de uma susceptibilidade infinita, sangrando dolorosamente, ao contacto de qualquer coisa de real que, junto dela, se ponha em contraste revelador da sua ilusória aparência»(4).



A esperança



A alma pátria é a soma electiva dos indivíduos que trabalham aspirando a um fim comum. No caso do génio português, o sonho secular e profundo, a mais íntima e eterna aspiração do ser humano, não é individual mas colectiva, dinâmica e popular, instintivamente sentida pelos poetas e pelo povo, ao qual deve competir «(…) convertê-la em concreta realidade social ou nova Civilização»(5).



Trata-se da Renascença, a futura civilização de harmonia - entre Paganismo e Cristianismo, Lembrança e Esperança, Tradição e Revolução, Herança e Personalidade, Espírito e Matéria. Uma aspiração presente no idealismo religioso, popular e anti-intelectual, de transmutar a natureza inicial, material, imperfeita e demoníaca em espiritual, perfeita e divina – a obediência do condicional ao absoluto, a vida e a paz do céu.



A este idealismo saudosista se junta o culto da saudade (o saudosismo) e o próprio sebastianismo, quando a grandeza de Portugal morreu materialmente para renascer espiritualmente. Assim, além do mundo realista, com a presença do objecto, e do romântico, com a sua indeterminação, há um outro mundo, expressão de uma saudade, com ausência do objecto sobre o qual incide.



Eis a verdade portuguesa para a Renascença pátria, uma organização de ideias espalhadas através de “A Águia”, escrita com sensibilidade poética, segundo o próprio Teixeira de Pascoaes - um visionário e ouvinte, de coração aberto, segundo Miguel Esteves Cardoso – para o qual os portugueses estão destinados, por um lado, ao sacrifício, à lembrança e à determinação, por outro à redenção, à esperança e à libertação.



Foi objectivo do autor elevar os portugueses ao estado de alma heroica, de sacrifício pelo país. «Há momentos em que o sentimento de obediência à Lei suprema desfalece, pondo em perigo a independência de uma Raça, a qual se firma, a todo o instante, no esforço comum dos indivíduos que a compõem (…) É preciso, portanto, fortalecer e animar a alma dos portugueses, para que a Pátria, que deles depende, ganhe novas energias e virtudes»(6).




A pátria é constituída por uma raça que se organizou e se tornou independente politicamente. Por isso, querer destrui-la, afirma, Pascoaes, é um absurdo. «O Cancioneiro e a obra camoniana constituem os dois fundamentos indestrutíveis da nossa Raça. Logo que a Mocidade os compreenda, subordinando-lhes o seu espírito, e obrando a profunda reforma política, religiosa, económica e literária de que a Pátria necessita para se erguer, definida e viva, da nódoa estrangeirada em que a deliram e apagaram, então, sim, voltaremos, de novo, a ser Alguém…»(7).

(1) PASCOAES, Teixeira de – Arte de ser português, Assírio & Alvim, 3ª ed. 1998, pág.35. (2) Idem, pág.124. (3) Idem, pág.100 (4) Idem, pág.101 (5) Idem, pág.113. (6) Idem, pág. 29. (7) Idem, pág.71.

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