Jornalismo de Paz
Antes do Dia dos Jornalistas pela Paz, Sábado, seguimos de perto o artigo* do especialista Jake Lynch sobre o "Peace Journalism".
Texto e fotografia Dina Cristo
O actual interesse (teórico) e emergência (prática) de um jornalismo de paz tem a sua origem nos estudos de Galtung e Ruge, nos anos 60, e de MacBride, nos anos 80. Ambos mostraram as fragilidades do jornalismo convencional, dominado pela guerra.
Por seu lado, os dois últimos factores de noticiabilidade criam padrões de omissão – os processos positivos que beneficiam grupos e países de menor poder, riqueza, influência ou expressão – e inclusão, que conduz à preferência pelas fontes oficiais como preponderantes na definição e representação nas notícias.
Desta forma, a reportagem de mainstream tem-se orientado para a violência (o conflito entre duas partes a reivindicar apenas o objectivo de vitória), as elites (o privilégio dado a fontes oficiais, líderes políticos e militares), a propaganda (atenção às falsidades) e à vitória (saindo os repórteres assim que a guerra termina).
Mais tarde, MacBride, num estudo encomendado pela UNESCO, confirmava o desequilíbrio do fluxo de notícias a nível mundial, com os países materialmente ricos, com os EUA, a liderar como a principal fonte de notícias internacionais. O alinhamento de notícias pelas nações ainda se aplica; muito do consumo mediático é nacional na sua origem e orientação, apesar do enfraquecimento dos limites políticos pela expansão e desenvolvimento acelerado das Tecnologias de Informação e Comunicação. Há, no entanto, o risco de tal ser conotado com solidariedade em detrimento da opressão.
O hábito da citação oficial decorre da estratégia comercial da imprensa. Para vender mais jornais, acessíveis a qualquer ponto de vista político, era necessário apresentá-los de forma neutral, objectiva e imparcial. De facto, as fontes oficiais garantem a rotina jornalística, satisfazem as suas necessidades de recolha de informação de fundo e de declarações credíveis, lançando um “self serving declarations”, devidamente escrutinados pelos seus porta-vozes. São ambos sistemas institucionalizados, burocratizados, cristalizados que se asseguram mutuamente.
A sua eficácia produtiva gerou, contudo, um problema de abuso e de dependência. Só quando um acontecimento se torna preocupação oficial num dado país é que os seus jornalistas se interessam. Se, por outro lado, problemas houver que não convenham aos dois maiores partidos da democracia representativa - cujo foca se limita à dissidência e controvérsia, o que enfatiza ainda mais a oposição e dualidade – ele é ignorado ou cai da agenda.
Novo paradigma
Não é raro encontrar pessoas com uma visão de paz no âmbito de uma experiência de sofrimento decorrente da guerra. Contudo não são escutadas, vistas ou reportadas porque ou são afectadas pelos conflitos ou porque são pouco poderosas. Por seu lado, os líderes políticos, a quem os “media” prestam subserviência, privilegiando-os como fontes de informação primordiais, raramente dão um passo em prol da paz.
Contudo, desde a invasão do Iraque, em 2003, que o oficial perdeu significativa credibilidade e o militar entrou em crise de legitimidade. Acentuou-se a divergência entre a opinião política e a opinião pública, com os públicos dos países aliados cépticos (como a Austrália em 2008) enquanto os governos enviavam tropas para auxiliar os EUA. Na verdade, quando a imprensa designa Washington ou Londres quer-se referir à classe política.
O uso da força, monopólio das organizações políticas estatais, como lembrava Max Weber, só era aceite pelos americanos sob certas condições. Uma resposta a um conflito que ultrapassa a lei internacional, nenhuma vez mencionada, tal como a Carta da ONU, em qualquer dos 70 editoriais estudados por Friel e Falk sobre a ocupação do Iraque.
As instituições mediáticas, corporativas, autênticas indústrias culturais, com as suas estruturas, hábitos, usos e costumes atendem não só às suas próprias necessidades como às do sistema capitalista – motivo da sua desconexão, formal, com outros agentes importantes [como as ONG]. Porém, aumenta o nível de debate e contestação sobre a representação noticiosa dos conflitos. Segundo Michael Schudson, um dos muitos autores referidos por Lynch, o jornalista não pode aparecer como menos bem informado do que o seu público.
No presente
O activismo mediático, que desafia o padrão dominante de reprodução nos “media” globais, enfrenta hoje uma pronta e vasta oposição por parte dos jornalistas - caso de David Randall, do “Independent”, e David Loyn, da BBC – e dos círculos académicos – como Hanitzsch. Para este crítico, a paz, enquanto objectivo externo, ameaça os fins internos do jornalismo.
O "Peace Journalism" defende que o conflito enquanto problema pode parecer bastante diferente se for examinado por ângulos distintos pelos que o experienciam, o povo que está no terreno, na vida de todos os dias. Neste modelo o jornalista está preparado, procura e transmite iniciativas em prol da paz, quaisquer que sejam a sua proveniência, e representa as múltiplas e variáveis partes em conflito, perseguindo diversos objectivos e com várias oportunidades de intervenção.
O JP é, pois, uma oportunidade para colocar as respostas não violentas no debate público, para que a sociedade as conheça e valorize. A pesquisa e esclarecimento a nível mais profundo e contextual das iniciativas pacíficas é uma forma de resistência à guerra, ao terrorismo e um desafio às relações de domínio, na ordem económica, política e social mundial. E apesar das distorções e manipulações nos relatos jornalísticos tem havido maior abertura e aceitação desta prática profissional.
Exemplares
A seguir à queda de Suharto na Indonésia, o maior jornal, “Kompas”, adoptou o “jurnalisme damai” como política editorial; o jornal de Jakarta, “Sinar Harapan” relançou o slogan “O jornalismo de paz representa a esperança de que podemos viver juntos” e a Associação Internacional de Jornalistas ajudou a encontrar um espaço seguro, em Ambon, para os repórteres contactarem com o ponto de vista do outro lado e, assim, contribuir para um mútuo entendimento.
Nas Filipinas, país com longa tradição ao nível da imprensa clandestina anti-colonial, o maior jornal “Philippine Daily Inquirer” alcançou o objectivo para o qual fora criado em 1985: contribuir para o fim da guerra. No conflito entre Israel e o Líbano, em 2006, Shinar encontrou uma notável limitação da penetração do discurso militar e uma considerável atenção às fontes orientadas para os civis. No caso do Afeganistão, Hackett e Schroeder identificaram perspectivas de múltiplas partes em conflito bem como critérios de Jornalismo de Paz em cerca de 3/10 dos artigos estudados.
Quando as excepções proliferam no modelo actual é sinal de que um novo paradigma está a surgir. Para tal, contribuem os activistas de “media”, que tomam iniciativas em prol da mudança a três níveis: dos jornalistas, com acções pedagógicas com vista à diminuição do uso da linguagem militar (e de vitimação); da audiência, com acções educativas e críticas com vista à consciencialização em relação à importância da linguagem como condutora, indirecta, da violência ou da reconciliação e harmonia social, de acordo com o discurso, e, por fim, dos meios, com a fundação, por uma agência da ONU, de um Banco de Desenvolvimento de “Media” como uma forma de criar mais meios com base no JP, de modo a formar um sistema de ética mediática à escala global.
Dov Shinar que fez o ponto da situação em relação ao Jornalismo de Paz, em 2007, actualizou as recomendações de MacBride sugerindo o trabalho em rede da imprensa independente, o treino em literacia mediática, para jornalistas e audiência e a garantia de acesso das minorias, sobretudo aos novos “media”. Uma exortação para que se encontre um lugar na actual prática noticiosa para o Jornalismo de Paz.
Um remédio para as influências nefastas dos critérios adoptados pelo jornalismo tradicional, nomeadamente na sociedade ocidental, liberal e individual e a defesa de que se podem e devem alterar as escolhas, sobre que histórias contar e como, tendo em vista a perversidade de invasões a outros países, como as ocupações recentes no Médio Oriente e na Ásia, em pleno séc.XXI ao que se juntam os efeitos de stress causados na audiência por um Jornalismo de Guerra.
* LYNCH, Jake – Peace journalism in ALLAN, Stuart (editor) - The Routledge Companion to News and Journalism. London and New York, 2010, p.541-553.
Etiquetas: Dina Cristo, Jornalismo, Jornalismo de Paz
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