Vida comum
No dia em que Dieter Duhm, fundador de Tamera, completa 70 anos de idade, analisamos duas necessidades humanas essenciais: a liberdade individual e a protecção social.
Texto e fotografia Dina Cristo
Uns procuram a expressão, o desenvolvimento, o aperfeiçoamento individual, outros a aceitação, a integração, o apoio e a ordem social. Será esta uma escolha inevitável ou duas forças possíveis de conciliar? Segundo José Flórido a individuação como a colectivização são duas leis possíveis de se compatibilizar e equilibrar. Tal é possível na última etapa de desenvolvimento humano. Até lá existem três fases prévias: a primeira é a de egoísmo e separatividade, correspondente à individuação em sentido negativo, quando o indivíduo quer conquistar sem esforço e sem aceitação das imposições sociais.
A segunda etapa, a da colectivização em sentido negativo, é quando a sociedade tenta absorver o indivíduo não deixando expressar livremente a sua criatividade, pelo que ele adopta os códigos, hábitos, usos e costumes sociais da maioria. Só depois, na terceira fase é possível a individuação positiva, quando o indivíduo, respeitando os outros, pretende expressar a sua individualidade e ser ele próprio. É na quarta fase, da colectivização positiva, que se atinge o altruísmo e a relação de amor com todos os seres, quando, ao desenvolver ao máximo as suas faculdades criadoras, o Ser Humano as utiliza em benefício da colectividade.
Evolução
Nas sociedades tradicionais e tribais as pessoas estavam unidas pela semelhança e conformavam-se devido à lei repressiva – a obrigação normativa e moral era sentido como natural tal como a solidariedade mecânica, com fortes laços sociais. Nas sociedades modernas os seus membros passaram a estar unidos pela diferença, regidos por uma lei restitutiva, que garante o direito à equidade, e pela solidariedade orgânica, assegurada ora pelo trabalho especializado ora pela cidadania democrática.
Com a industrialização, a massificação, o êxodo rural e os nacionalismos, as pessoas, em novo ambiente social, cultural e laboral, além de deslocalizadas, “exiladas”, atomizadas, no anonimato e desprezo das grande cidades, tornaram-se mais vulneráveis à cultura, dominação e manipulação mediática, controlo e vigilância social bem como a alienação pessoal.
Baseada na homogeneidade, no isolamento involuntário, as sociedades de massa transformaram-se em campos geradores de dependência (manifestados, por exemplo, em excessiva extroversão, para chamar a atenção, ou introversão, por receio de desaprovação) e propícios à exploração, à necessidade de cobiçar e extorquir no colectivo bens e pessoas, no máximo de quantidade e superficialidade, em benefício próprio, para satisfação dos seus interesses pessoais. Neste nível de desenvolvimento material, ainda infantil, faz-se sentir o narcisismo, a sociopatologia e a domesticação social - que condiciona, limita e aprisiona o indivíduo - a obediência, por um lado, por medo, e a necessidade de “protecção” e apoio, por outro.
Não é, contudo, através do condicionamento, opressão, obstrução e castração do desenvolvimento individual, da exploração da vida social em prol dos interesses particulares e da satisfação instrumental que se pode fundamentar o desenvolvimento social saudável. Este implica o desabrochar mais livre das potencialidades e peculiaridades de cada ser humano, das diferentes formas de expressão (cultural) das necessidades e sonhos, esses sim, idênticos. O (re)conhecimento (e preservação) das particularidades de cada ser humano, da diversidade humana, é essencial pois são recursos que, mais tarde, serão postos em prática a favor da própria vida colectiva.
A fase de individualização, que pode implicar um afastamento da vida social intensa e fútil, é quantas vezes negativamente conotado como anti-social. Confunde-se a integração no sistema social (mediático, político, económico, etc.) com a integração social propriamente dita, na vida de todos os dias, do qual praticamente ninguém, na verdade, está excluído. Rubem Alves mostra, na crónica “solidão amiga”, os aspectos positivos do isolamento voluntário: tempo-espaço para a criação de obras de arte e a comunhão - consigo, com os outros, com a natureza – em que o “estar junto” é bem diferente do “estar próximo”.
Quando o individuo se afasta para ver melhor, para se conhecer e poder expressar e realizar a partir da sua identidade central, integral e profunda desencadeia o processo de individuação, um campo íntimo, de liberdade, autonomia e segurança. O séc. XIX e o romantismo foi fértil precisamente em dar espaço à Subjectividade, ao sentimento, ao Eu interior, pessoal e privado, que se auto-regula em detrimento do ser mais exterior, público, impessoal e objectivo, dos lugares e da hétero-regulação. Em vez da super-estrutura social, causal, teórica, ideal, colectiva e determinística, a infra-estrutura prática, material, individual, âmbito de acção de livre arbítrio, hoje exercido sobretudo ao nível do discurso.
Aceite a riqueza da diferença (posturas, valores, motivações e finalidades, por exemplo), inscrita num âmbito de (auto)conhecimento mais profundo, embora ainda separatista e discriminatório, eis um estado mais adulto de independência, liberdade, responsabilidade e realização. Um estágio cantado, como em “My way”, identificado, como nas deusas virgens – Artémis, Atena e Héstia – correspondentes a padrões de independência – e pensado, por exemplo, por Carlos Cardoso Aveline, que afirma: «Uma certa dose de condicionamento social é inevitável e positiva. Porém é indispensável respeitar, ao mesmo tempo, a necessidade de todo ser humano de estar consigo mesmo, ouvir a voz da sua própria consciência e ter vontade própria».
Comunidade
Só após a experiência da ordem social e da liberdade individual é possível atingir a sua conjugação e conciliação, equilibrando, nas unidades colectivas, as leis da colectivização, mais opressivas e de apego, focadas no todo e no intercâmbio, e da individuação, mais liberais e de desapego, focadas na parte e nas fronteiras. Tal é possível quando se prescinde da dependência social e da independência individual em prol da interdependência, numa visão mais moderada. Numa fase de maior maturidade é, assim, possível, após a falta de personalidade e o seu excesso, encetar uma etapa de despersonalização. É o que se denomina vulgarmente por cidadania, que tem em vista o Bem Comum, o Bem Geral.
Esta maior impessoalidade não significa a eliminação da individualidade mas pelo contrário o colocar as suas competências e talentos em prol da vida comunitária, reunindo a realização individual com a coesão social. Desta forma, quanto mais individual, profundo e original um ser for maior poderá ser a sua contribuição para o todo. Não se trata, pois, de submissão, uniformização ou de separatividade mas de unificação, harmonização e comunhão que hoje começa a ser expressa em comunidades em formação, num nível já não tribal antigo, sub-racional, mas em grupos supra-racionais.
Se na verdade há comunidades que vêm de séculos anteriores, como as religiosas, com as suas Ordens, Mosteiros e Conventos (sendo os Franciscanos um exemplo: os Menores restaurados em 1891, os Conventuais regressados em 1978 e os Capuchinhos entrados em 1939), no séc. XXI nascem e espalham-se pelo mundo cada vez mais comunidades, como os kibutz, ligadas à ecologia profunda, cultivando um estilo de vida simples, sagrado, vinculado, sustentável e com sentido. Já Thomas More, no final do séc.XIX havia imaginado uma sociedade onde o dinheiro era prescindível e ninguém possuía mais do que o necessário.
Em Portugal, Tamera, no Alentejo, é um dos exemplos. Formado como Centro de Pesquisa para a Paz e biótipo de cura, numa perspectiva de acupunctura planetária, ali se desenvolve uma comunidade de seres vivos, além dos humanos, com base na confiança e na cooperação mútua, fundamentada na satisfação das necessidades básicas, como água, alimentação e energia, e valores como a paz e o amor. Apoiada numa tecnologia descentralizada, assente na água (com paisagens de retenção) e no sol, a comunidade, constituída desde 1995, perto de Relíquias, tem por finalidade a (re)formação de uma nova cultura da Era da Deusa, humana, graciosa e harmoniosa.
Neste processo evolutivo da tribo à era grupal há que cuidar de evitar o pseudo-individualismo (diferenciação falsa, separatividade forçada e vi(vi)da em circuito fechado), o excesso de individualismo, motivo de mal-estar que Gilles Lipovetsky explicou, mais presente nos EUA, a sua indistinção da vida comunitária facilitada pela Web 2.0, bem como as tentativas para normalizar e aquietar os indivíduos em questionamento e crescimento, nomeadamente através de medicação.
Hoje, a ideia de que pela união se pode formar uma “constelação” avança e além das redes de Eco-aldeias, existem actualmente Comunidades de Comunidades. Na Europa, onde a ideia da vida colectiva é ainda mais forte, são recordadas quer os bens de uso comunitário, como o boi, o forno, o moinho, numa atitude de abertura, troca e solidariedade, quer os próprios animais com um forte espírito comunitário, como as abelhas, as formigas ou os gansos, que ao voarem em conjunto, em forma de V, reduzindo a resistência do ar, atingem um voo 70% mais longe do que o fariam sozinhos. O lado corporativo, pode representar igualmente um novo espírito grupal construtivo e mediador, entre o indivíduo particular e a sociedade no seu conjunto, nomeadamente as empresas sem fins lucrativos e/ou que actuam na área da responsabilidade social.
Etiquetas: Dina Cristo, Sociedade, Vida comum
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