Moralidade
Antes da Páscoa, em tempo de morte e renascimento, falamos da proposta de Immanuel Kant: a renúncia às inclinações e disposições sensíveis a favor de algo mais elevado e fonte de vero auto-contentamento.
Texto Dina Cristo
O tratado de Immanuel Kant, “Crítica da Razão Prática”*, foi publicado pela primeira vez em 1788. Não tem uma única referência bibliográfica mas é até hoje uma obra fundamental do pensamento humano. Nela o autor explica, por exemplo, a relação fundamental entre a lei (moral) e a liberdade.
A primeira parte, que ocupa 167 das 195 páginas da investigação densa e rigorosa, embora traduzida em palavras simples1, contém a Doutrina Elementar da Razão Pura Prática; divide-se entre um primeiro livro sobre a analítica, crítica, e um segundo sobre a dialéctica, argumentativa.
Com o objectivo de um dia se chegar a discernir a unidade de todo o poder da Razão Pura, por um lado, e de evitar a ilusão de tomar o condicionado pelo incondicionado, por outro, Kant incide, antes de mais, na lógica analítica dos princípios “a priori” e dos conceitos dos objectos. Apesar de todo o seu trabalho2, termina-o da forma mais modesta possível3.
Kant pretende ao longo do tratado comprovar não só como há uma razão pura prática, como só ela o pode ser e é – incondicionalmente – prática. No capítulo III da Dialéctica, Kant explica como na ligação da razão pura especulativa com a razão pura prática, uma união necessária fundada “a priori” na própria razão e que permite às Ideias realizarem-se objectivamente, o interesse da razão pura prática, que é a determinação da vontade, o uso prático, é superior ao interesse da razão pura especulativa, que é o conceito do objecto “a priori”.
É fundamental no seu estudo a distinção entre o racionalismo, fundado numa necessidade discernida, do empirismo, pobre e superficial, que toma os objectos da experiência por coisas em si, e que trouxe rigidez e cepticismo. Uma separação, exortada no final, quando quase em tom poético o filósofo escreve: «Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre novas e crescentes, quanto mais frequentemente e com maior assiduidade delas se ocupa a reflexão: O céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim»4.
A primeira refere-se ao lugar ocupado no mundo exterior dos sentidos, uma conexão contingente (até ao imensamente grande em tempos ilimitados) que aniquila a importância de um ser humano a um simples ponto no universo. A segunda começa na personalidade, o eu invisível independente de todo o mundo sensível, que o expõe a um mundo, só revelado ao entendimento, numa conexão universal e necessária e que o eleva como inteligência. Dois mundos, o sensível e supra-sensível, a que se ocupa sobretudo aquando da dedução dos princípios da razão pura prática.
Estes são proposições que contêm uma vontade que inclui regras práticas. Podem ser princípios subjectivos, máximas válidas apenas para a vontade do sujeito, numa “legislação” interior, ou leis objectivas, válidas para todo o ser racional, independentemente das suas inclinações, que fazem das acções práticas um dever, um imperativo categórico e necessário, numa legislação exterior e universal; exprime uma obrigação para quem a razão não é o único princípio determinante da vontade.
Assim, temos uma vontade livre, independente do mundo sensível, quando a máxima serve de lei, e outra afectada, em que existe um antagonismo entre a máxima e a lei, ou patológica, quando a submissão à lei implica desprazer para o indivíduo. As representações ligadas ao prazer podem ter origem nos sentidos, sentimentos ou inclinações e ser mais grosseiras e embrutecida, como o deleite na acumulação de dinheiro, na sensibilidade brutal ou no uso da força, ou pode ter origem no entendimento e serem mais delicadas e refinadas, como o agrado em se cultivar, ampliar os conhecimentos ou na beneficiência aos mais pobres. Embora sejam manifestações da mesma energia vital, uma representa uma faculdade de desejar anímica inferior, outra superior, em que a vontade é determinada pela razão. Ao contrário da sensibilidade, que exprime uma relação da representação segundo os sentidos a um sujeito, o entendimento exprime uma relação da representação segundo conceitos a um objecto.
A vontade, que causa (des)prazer é, pois, a capacidade de agir segundo princípios, ou seja, a faculdade de determinar a sua causalidade pela representação de regras. Estas podem ser gerais, quando em média são correctas a maior parte das vezes, ou universais, quando são sempre válidas. Uma das regras para julgar as acções é a seguinte: «Interroga-te a ti mesmo se a acção que projectas, no caso de ela ter de acontecer segundo uma lei da natureza de que tu próprio farias parte, a poderias ainda considerar como possível mediante a tua vontade»5. Uma regra pretende evitar misticismos, imaginações ou empirismos, princípio prático que pressupõe um objecto.
A razão pura, que tem o poder de determinar a vontade, pode julgar pois não tem qualquer interesse sensível, e julga segundo princípios “a piori”, racionais, incondicionados, o que lhe dá a faculdade de conhecimento e de determinação de máximas da vontade livre através destas intuições que conhecem sinteticamente. A razão, ao discernir a relação entre os meios e fins desejados e reflectir sobre o que é, em si, bom ou mau, tem o poder de mover uma acção. É a voz celeste, que ajuíza de forma livre e independentemente das condições sensíveis.
A razão representa, assim, a lei moral, lei fundamental de uma natureza supra-sensível, de um mundo puro inteligível, de natureza arquetípica, cujo equivalente deve existir no mundo sensível, em reprodução. Uma vontade santa é incapaz de máximas opostas à lei moral. Porém, numa vontade humana, com uma natureza sensível, a lei é um imperativo, ordena a acção devida, que é precisa ser feita, ou seja, manda cumprir os deveres humanos, com autoridade, dada pela sua autonomia e liberdade, não apenas em sentido negativo, a independência, mas também em sentido positivo, a legislação. A lei fundamental da razão pura prática é: «Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal»6.
Esta lei moral que determina não só a acção, como o seu móbil e objectos, não apenas danifica a benevolência, o amor próprio natural, como aniquila a complacência, a condescendência de si próprio, enfraquecendo a arrogância e a presunção. Contudo, esta humilhação das suas tendências e disposições sensíveis em detrimento de um objecto de maior respeito, significa uma elevação, um domínio das inclinações, assim restritas, que acaba por conduzir, apesar do sofrimento inicial, pela resistência e conflito, a um sentimento posterior de auto-aprovação, ordenado pela razão. Um exemplo de constrangimento, que enfraquece as necessidades sensíveis é a obrigação de estender a máxima do amor de si, que aconselha prudência, à felicidade dos outros.
A lei moral determina não só o conceito de bem (a acção conforme à lei é boa em si mesma; uma vontade sempre conforme à lei é absolutamente boa) como as suas quatro categorias: Da quantidade (máximas, princípios e leis), da qualidade (regras práticas da acção, omissão ou excepção), da relação (personalidade, estado e reciprocidade) e da modalidade ([i]lícito, [contrário ao] dever e dever [im]perfeito). A perfeição pode ser integral (transcendental), geral (metafísica), suprema (externa) ou humana (interna – no talento e habilidade).
O valor moral das acções reside sobretudo na sua intenção. A legalidade é a consciência de ter agido em conformidade com o dever, em que o que é relevante são as acções de acordo com a letra da lei, movidas pelos fins que podem produzir, como sentimentos agradáveis, ou pelo mérito. Já a moralidade é a consciência de ter agido por dever, por mor da lei, em que o importante são os princípios, as intenções, as (pre)disposições anímicas em virtude do espírito da lei. É este o alto valor que a humanidade pode adquirir através deste princípio de causalidade, desde há muito, na razão de todos os homens.
«Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo» é a lei das leis. Um arquétipo ao qual o ser humano se deve esforçar por aproximar e assemelhar progressivamente. Embora cada acção esteja submetida às condições do tempo passado, têm havido acções nobres e sublimes, que tiveram lugar, não sem sacrifício, só por causa do dever. Seres que merecem respeito, pois o espírito se inclina perante a rectidão do seu carácter, pela lei que encarnam, pela sua maneira de pensar prática consequente, pela estima pela lei, destituída de toda a vantagem ou interesse que não seja o da observância da própria lei ou respeito, o que se traduz pelo sentimento moral. O dever, que dá a ordem e põe ordem, fortalece a alma e eleva o homem acima de si mesmo, submetendo o mundo sensível.
Por dedução dos princípios da razão pura prática, as leis que regem a natureza humana são as de dois mundos, aos quais o ser racional pertence, pela personalidade. O mundo inteligível, da razão pura, entendimento e vontade, a natureza das causas, Ideias e arquétipos; o reino da liberdade, do incondicionado, da autonomia; das leis e princípios, das coisas em si mesmas; do númeno, inteligência pura, não determinável segundo o tempo, o mundo da existência segundo leis independentes de todas as condições empíricas. Por seu lado, o mundo sensível, dos fenómenos, acções, experiências, objectos (que determinam a vontade) e da diversidade (de sensações, sentidos, sensibilidades e necessidades); o mundo dos efeitos, consequências, do condicionado e da reprodução; da experiência espaço-temporal em que a vontade está submetida às leis, condicionadas empiricamente, logo segundo uma heteronomia para a razão.
A lei moral, que implica auto-coerção, dos desejos, necessidades e egoísmo, permite reconhecer a infâmia da mentira e o respeito em relação à verdade, a pacificação interior, não recear o auto-exame, não se auto-censurar ou arrepender, não se envergonhar de si mesmo e ser aos seus olhos digno de viver, o que não se coaduna com a satisfação de viver. Quando se fala de dever, a razão pura prática não quer que se tome em consideração a felicidade, embora tal não implique a sua renúncia, já que contém meios para o cumprimento do dever, como a habilidade, saúde ou riqueza, e a sua carência a tentação de violar o cumprimento dos mandamentos.
A moralidade é condição racional (conditio sine qua non) indispensável para atingir a felicidade mas não um meio de a adquirir, pois não a garante. É expectável que decorra da predisposição moral, o respeito desinteressado pela lei, e não da legalidade, a acção interessada. A moralidade é a doutrina de como nos devemos tornar dignos da felicidade. Moralidade e felicidade são, respectivamente, o primeiro e segundo elementos do soberano bem, a virtude. Embora sendo totalmente heterogéneos, factor não reconhecido pelos estóicos e sobretudo pelos epicuristas, os dois elementos estão conectados através de uma unidade sintética, isto é, em que a ligação é real segundo a lei da causalidade que produz um efeito.
Felicidade é a consciência do agrado da vida ao longo de toda a existência humana, quando a sua natureza está em harmonia com os costumes e a sua vontade. Quando a conformidade da vontade à lei moral é plena atinge-se a perfeição. A felicidade da santidade, a beatitude, apenas é atingível numa eternidade ou existência “mesmo para lá desta vida”7, num esforço progressivo, perseverante e persistente, o que só é possível sob o pressuposto da imortalidade da alma, um dos principais postulados8 da razão pura prática. Se a extensão temporal dá esperança de atingir a perfeição moral, que “não pode ser alcançada neste mundo”9 também aumenta os deveres.
Da lei moral decorre outro dos pressupostos que dão às Ideias da razão especulativa realidade objectiva, dada a sua relação ao prático: a existência de Deus, o princípio primordial e infinito, e autor do mundo de suprema perfeição, causa da ordem e finalidade da natureza, Ser supremo, auto-suficiente e bem incondicionado e total.
Por outro lado, se a lei moral é a condição sob a qual um ser racional se pode primeiramente tornar consciente da “ratio cognoscendi” da liberdade, o terceiro princípio deduzido da razão pura prática, esta também é a condição, a “ratio essendi”, da lei moral já que se não houvesse nenhuma liberdade de modo algum se encontraria em nós a lei moral. A liberdade é a faculdade de determinar a vontade segundo a lei do mundo inteligível e a independência em relação ao mundo sensível e às suas inclinações (mesmo a compaixão ou simpatia), onerosas para um ser racional. O sujeito da lei moral é o homem, um ser sagrado, que também pertence, como vimos, ao mundo inteligível e ao qual se deve respeito «Em toda a criação, tudo o que se quiser e sobre que se tem algum poder pode também utilizar-se simplesmente como meio; unicamente o homem e, com ele, toda a criatura racional é fim em si mesmo»10.
Em suma, é a lei moral que determina a vontade de acção do soberano bem, a virtude, sob os pressupostos da imortalidade da alma, da existência de Deus e da liberdade. É direito e dever de todo o ser racional fomentar o soberano bem, a acção virtuosa e moral desinteressada (sem temor ou esperança), o respeito à lei por mor dela, reveladora do carácter e sabedoria que permite vislumbres do reino supra-sensível e proporciona auto-contentamento.
A razão prática, que existe “a priori", submete a diversidade dos desejos à unidade da consciência, procurando conhecimentos supra-sensíveis até onde são necessários ao fim prático. Para tal temos não só as regras imperativas como as Ideias categóricas, usadas para prevenir o antropomorfismo e o fanatismo, princípios transcendentes tornados imanentes para realização do soberano bem, fim último da razão pura prática e doutrina filosófica por excelência. As predisposições morais da natureza humana devem ser buscadas criticamente e introduzidas metodicamente ao nível da ciência tendo a filosofia como fiel depositária.
Ao nível pedagógico, Immanuel Kant sugere o uso de biografias para estimular os princípios, a pureza, o desinteresse, a honra e a auto-confiança. Algo que distinga os direitos humanos, que regulam os deveres, das necessidades humanas, não essenciais e que só provocam descontentamento. Que entre os estudantes seja louvado o valor do dever e da virtude. «Dever! Nome grande e sublime, que nada em ti incluis de deleitável, trazendo em si a adulação, mas exiges a submissão; no entanto, nada ameaças que excite no ânimo uma aversão natural e cause temor, mas, para mover a vontade, propões simplesmente uma lei que por si mesma encontra acesso na alma e obtém para si, ainda que contra a vontade, veneração (embora nem sempre obediência), lei perante a qual emudecem todas as inclinações, se bem que secretamente contra ela actuem: que origem é digna de ti e onde se encontra a raiz da tua nobre linhagem que recusa nobremente todo o parentesco com as inclinações, raiz essa da qual descender é a condição indispensável daquele valor que os homens unicamente a si mesmos podem dar»11.
* Foi usada a edição das Edições 70, publicada em 1985. (1)«Forjar palavras novas, quando a língua de nenhum modo carece de expressões para conceitos dados, é um esforço pueril para se distinguir entre os demais, se não por ideias novas e verdadeiras, ao menos por um remendo novo num vestido velho», pág. 18/19. (2)«Se um sistematal como o da razão pura prática, desenvolvido aqui a partir da crítica desta última, deu muito ou pouco trabalho (…) é uma questão que devo deixar ao juízo dos conhecedores de um trabalho deste género.», pág. 16. 3«(…) desculpar-se-me-á se eu, num escrito como este, que é apenas um exercício preliminar, me atrenho a estas linhas fundamentais», pág.182. (4) Pág. 183. (5) Pág. 83 (6) Pág. 42. (7) Pág. 142. (8) Enquanto a hipótese é fundada numa necessidade da razão pura, no uso especulativo, princípio de explicação considerado em relação à razão teorética, o postulado decorre da necessidade da razão pura, no seu uso prático, como «É um dever realizar o soberano bem segundo a nossa máxima capacidade», pág. 163. (9) Pág. 148. (10) Pág. 103. (11)Pág. 102
* Foi usada a edição das Edições 70, publicada em 1985. (1)«Forjar palavras novas, quando a língua de nenhum modo carece de expressões para conceitos dados, é um esforço pueril para se distinguir entre os demais, se não por ideias novas e verdadeiras, ao menos por um remendo novo num vestido velho», pág. 18/19. (2)«Se um sistematal como o da razão pura prática, desenvolvido aqui a partir da crítica desta última, deu muito ou pouco trabalho (…) é uma questão que devo deixar ao juízo dos conhecedores de um trabalho deste género.», pág. 16. 3«(…) desculpar-se-me-á se eu, num escrito como este, que é apenas um exercício preliminar, me atrenho a estas linhas fundamentais», pág.182. (4) Pág. 183. (5) Pág. 83 (6) Pág. 42. (7) Pág. 142. (8) Enquanto a hipótese é fundada numa necessidade da razão pura, no uso especulativo, princípio de explicação considerado em relação à razão teorética, o postulado decorre da necessidade da razão pura, no seu uso prático, como «É um dever realizar o soberano bem segundo a nossa máxima capacidade», pág. 163. (9) Pág. 148. (10) Pág. 103. (11)Pág. 102
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