Rádiotelefonia de sessenta VI
Nesta sexta parte abordamos a censura, na informação e programação.
Texto e fotografia Dina Cristo
Com o início da guerra em África, a censura passou a alargar-se ao noticiário internacional. Contudo, na rádio, e mais particularmente, na EN, a própria estrutura organizativa da emissora era o garante de uma filosofia e prática censória. “É notória a proximidade e dependência da Emissora Nacional em relação às mais altas instâncias do regime. A intervenção das entidades oficiais na EN opera-se directamente, através da reunião, do telefonema, da carta pessoal ao presidente da Estação, do despacho”1. Além da existência na redacção de um telefone directo à censura, a selecção da cadeia hierárquica era controlada pelo nível de adesão ao poder.
O Governo exercia uma interferência de forma mais ou menos explícita, através da nomeação, além do seu presidente (da sua inteira confiança) e dos directores de serviço, do presidente do conselho de programas e de um mais apertado controlo e fiscalização sobre a programação2. De acordo com o regulamento da Emissora Nacional de Radiodifusão, publicado em 1966, era requisito essencial para admissão aos concursos “estar integrado na ordem social e constitucional vigente, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas”3.
A rádio oficial estava, assim, dominada internamente e à partida, o que permitia utilizá-la de forma mais ofensiva e propagandística do que a imprensa, sobre a qual era necessário um maior controlo externo desencadeando comparativamente, por parte do regime, uma atitude mais defensiva4.
Programação
A “Rádio Mocidade” foi um programa representativo da absorção ideológica do regime, através da EN. As suas emissões semanais, produzidas pelo Comissariado Nacional da MP, eram constituídas por “(…) uma nota sobre os ideais ou sobre os motivos que levaram a criar a organização, em que se dá a conhecer a cada um o que é e o que vale a Mocidade Portuguesa; em episódio radiofónico, narrando um facto histórico, uma data, contando uma biografia, citando um personagem ilustre ou, simplesmente, transportando a diálogo um facto ocorrido num acampamento e em outra actividade de rapazes; um “placard” de noticiário, em que se leva ao conhecimento do dirigente e do filiado uma resenha dos factos ocorridos dentro da Organização durante uma semana; por último, a encerrar o programa, um comentário sobre uma actividade ou sobre uma notícia, escrito e dito, normalmente, por um jornalista”5.
De notar a inovação ao introduzir-se dois conceitos fundamentais para a produção informativa. O termo jornalista, e já não redactor ou repórter, e o facto de este profissional da informação fazer ambas as tarefas: escrever o texto e depois dizê-lo ao micro. O facto de ser empregue a expressão falar ao microfone em vez de ler um papel testemunha a actualização juvenil relativamente à especificidade da linguagem radiofónica. As fontes radiofónicas eram maioritariamente oficiais, com utilização regular de comunicados, e a imprensa, já filtrada, restando incólumes temas como a vida artística e desportiva.
A equipa de “A voz dos ridículos”, programa criado em 1945, era forçada a apresentar sistematicamente os seus textos aos serviços de censura, antes de irem para o ar. Os cortes, então produzidos, provocavam, por vezes, a reelaboração do programa (parcial ou integralmente) em algumas horas e só a relação mais ou menos empática estabelecida com o censor podia acelerar o processo burocrático6.
No entanto, ao longo dos anos, a equipa trabalhou no sentido de ocultar quer as palavras quer as intenções à censura, como se tratasse de um jogo do gato e do rato. “Havia uma data de ejaculações cerebrais ali com o lápis azul na mão. Era uma vingançazinha. Não interessava o que é que [a censura] cortava e muitas vezes até cortava coisas só para dizer que estava lá”7.
Havia, contudo, formas mais ou menos elaboradas de ultrapassar o sistema censório, constituído por homens sem qualquer sensibilização radiofónica, que deixavam passar textos escritos que, depois de ditos ao microfone, ganhavam um novo significado e alteravam o sentido.
A equipa, explorando tal deficiência, utilizava palavras alternativas, cujo sentido advinha da sua sonoridade, muito mais do que da sua grafia, passando assim ao crivo do lápis azul expressões como “estava o sol a dar” ou “era só azar”. A mesma diferença se notava, por vezes, nos ensaios assistidos pelo censor. Antes da sua presença eram dadas instruções para que os textos fossem interpretados quase sem inflexões. Depois, ao microfone, a mesma voz adquiria uma entoação forte e quase irreconhecível.
Censura
Para as emissões que escapavam à auto-censura e à censura prévia, existia ainda outro tipo, efectuado “a posteriori”, pelo qual foi atingido o programa “Diário do ar” (1959-1963), suspenso porque “insistiu em transmitir espontaneamente estribilhos patrióticos acerca de Angola (…) a Rádio Renascença fez-lhe saber, sempre telefonicamente, e sem confirmação por escrito, apesar de haver um contrato que ainda não caducou, que resolvera cessar o “Diário do Ar” a partir de hoje, 16 de Junho de 1961, pois não podia tolerar as suas “piadas”. Seguiria uma carta. Pensando tratar-se de um meio de intimidação e como à hora habitual não tivesse chegado qualquer carta, os produtores fizeram a ligação com o estúdio da Rádio Renascença para iniciar a emissão. Mas ao bater das 15 horas, a Emissora Católica Portuguesa, sem qualquer satisfação ao público, anunciou o seu programa da tarde com música, muita música e um dia memorável para os seus locutores”8.
Em 1965, durante a cerimónia de imposição de insígnias aos novos doutores, na Aula Magna da Reitoria da Universidade Clássica de Lisboa, os estudantes interromperam o discurso do reitor, que afirmava: “Pretende-se dar a esta solenidade o sentido virado ao futuro, na medida em que os actos que a integram representam sobretudo o esforço e o mérito mais nobres na universidade que garantem a continuidade da vida da instituição cultural e política”.
Entretanto, o grito de liberdade dos estudantes irrompeu, em uníssono e fortemente, várias vezes. O orador ainda tentou recuperar a mensagem inicial – “Por isso, a imagem…”, mas ouviram-se, outra vez, os gritos pela liberdade e uma pergunta: “Não vais falar mais, pois não?”9. À resposta – “É lamentável a má criação”, seguiu-se, apesar do coro de assobios, a segunda tentativa de recuperar o discurso, mas os gritos de demissão prosseguiram insistentes. Contudo, não foram escutados pelos ouvintes da EN, porque nunca foi permitida tal transmissão.
Já depois do 25 de Abril, a “Rádio & Televisão” organizou uma mesa redonda sobre a rádio. “Havia coisas que só se pensavam, outras que as pessoas tinham medo de pensar e outras que só diziam ao ouvido umas das outras. Nós, que falámos para o público, precisávamos de ter todos esses cuidados e muitos outros mais. Era a repressão que se exercia sobre nós, homens da Rádio. Em especial sobre aqueles que estavam empenhados numa determinada acção informativa. Tínhamos que fazer prodígios de imaginação para dizer coisas que, por um lado, resistisse a todos os tipos de censura existentes e que, ao mesmo tempo, pudessem comunicar, através de metáforas, de imagens (as chamadas entrelinhas); falávamos de modo a que as pessoas ouvissem os nossos silêncios (…)”10, lembrou Cândido Mota.
(1) “A rádio em Portugal”, pág.88 (policopiado). (2) Dec-Lei nº 46927 de 30/03/1966. Artº28º e 36º. (3) Idem, Artº119 – 6º e 7º. (4) Op. Cit., pág.85/86. (5) R&T 30/12/1961, pág.17. (6) Entrevista a Júlio Couto. Porto. 21/07/1997. (7) Idem. (8) R&T 24/06/1961, pág.3. (9) A.H.RDP. EN 1965. AHD 2394. Faixa 50. (10) R&T 18/05/1974, pág.6.
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