Voz acusmática

Texto Dina Cristo
A dimensão vocal esteve presente no espectáculo cinematográfico, desde o seu início. Do cinema silencioso, passando pelo falado, até ao audiovisual actual, a voz tem sido um elemento de valor considerável, numa área vista usualmente pelo primado da imagem. É a voz de um actor que pesa na selecção que Manuel de Oliveira faz para o elenco dos seus filmes, por exemplo. O realizador declarou-o publicamente, na imprensa.
Entidade entre o corpo e a palavra, a voz tem vindo a adquirir um peso cada vez mais importante dentro dos estudos relacionados com a arte cinematográfica, nomeadamente nos trabalhos relativos ao som. É nessa perspectiva que se enquadram as investigações de Michel Chion, autor para quem a voz humana é o elemento a partir do qual se hierarquizam os vários constituintes sonoros. Para ele, a presença da voz humana estrutura o espaço sonoro que a contém – é a teoria do vococentrisme. Mais do que um constituinte sonoro, como a música, diálogos ou ruídos, a voz é o seu elemento por excelência.
Com os seus efeitos de mistério, poder e transcendência, a voz apresenta-se especialmente rica numa dupla faceta: voz acusmática, quando existe uma voz sem corpo, de algum personagem que se ouve falar mas é invisível no campo visual, uma voz off, e quando há um corpo sem voz, personagem muda ou que se recusa a falar, no cinema falado, ou figuras dramáticas, no cinema silencioso, como lhe denomina Chion.
O autor recusa a ideia de um cinema mudo. Embora os espectadores se encontrem impedidos de ouvir as personagens, eram testemunhas da gesticulação, movimentos que os seus lábios produziam e, portanto, dos seus actos de fala. Na altura, a voz é imaginada ou sub-entendida.
Quando o instrumento vocal se materializa (com o cinema sonoro, noção partilhada por quem evidencia a sonoridade) sobressai o poder cinematográfico da voz sem corpo.
Características como a ubiquidade, o panoptismo, a omnisciência dão–lhe um poder “à semelhança” de Deus. Ser acusmático por excelência, a entidade divina está em todo o lado e tudo vê, é corpo insubstancial, não localizável, que passa sem que o possamos visualizar. “Não poderás ver a minha face, porquanto homem nenhum verá a minha face (e viverá)”, afirma Deus a Moisés, no Velho Testamento (Êxodo 33).
Tipologias
Fora do centro da imagem, a voz pode ser acusmática integral, quando a personagem não foi (ainda) visualizada, ou parcial, quando (já) foi vista antes, no campo visual. A zona acusmática é flutuante, ou seja, é susceptível de aparecer, a todo o momento, no centro da imagem.
Neste processo de désacousmatisation, em que é revelado o seu corpo, a voz perde os poderes a ela inerentes (como a ideia de virgindade) e entra no reino dos humanos. Realiza-se a mise-en-corps, a reunião de uma voz audível a um corpo visível, ligando-se os elementos antes disjuntos.
A voz acusmática desempenha frequentemente o papel de alma, sombra e/ou duplo. Ela pertence, normalmente, a homens mortos (que continuam a falar como errantes à face do ecrã) ou que estão prestes a morrer. Outras são de narradores responsáveis pelo flashback. Evocam o passado de forma tão próxima que gera uma intimidade com os espectadores, ao ponto destes a sentirem como sua.
A um outro nível de implicação corporal, ainda, os assistentes sentem no próprio corpo a vibração de outro ser corporal projectado no ecrã. É o caso das respirações profundas ou dos gritos humanos. Os de homem delimitam o território, são estruturantes, e afastam-se do centro. Pelo contrário, os gritos femininos aproximam-se do centro, são ilimitados e fascinantes.
A voz acusmática é qualidade de toda e qualquer pessoa de quem ouvimos falar, mas não vemos. É o caso do embrião que, embora não vendo a mãe, tem a capacidade de lhe ouvir a voz. A audição – omnidireccional – permite que o espectador se ligue ao ecrã, através de um processo vocal idêntico.
Também Denis Vasse defende a teoria de que a escuta que o feto, ainda no útero materno, faz das frequências da voz da sua procriadora revela uma certa analogia entre o elemento vocal e o umbilical. À semelhança do cordão de transmissão alimentar, a voz envia um fluxo vocal. A mãe é o espaço virtual do qual emana a voz, invisível à criança. Está fora de campo.
Serge Daney complementa a designação de voz off com a voz in em que a personagem está presente na própria imagem. Esta categoria subdivide-se, por sua vez, em voz out, percepcionada a partir de uma boca, local simbólico da sua emissão, ou de todo o corpo, voz through.
Scheinfeigel , ao falar da dimensão sonora, lembra a distinção entre o som diegético, emitido por um personagem ou objecto que faz parte da história, e o som extra-diegético, proveniente de uma instância exterior à história, casos da música de acompanhamento e dos comentários em off.
Etiquetas: Dina Cristo, Livros, Voz acusmática
0 Commentarios:
Enviar um comentário
<< Página Inicial