domingo, 25 de outubro de 2009

Telefonia de sessenta I


Neste mesmo dia, há 84 anos, Abílio Nunes dos Santos Júnior dá início às emissões regulares de radiodifusão em Portugal. Em jeito de homenagem, iniciamos a publicação de um artigo, escrito em meados da década de 90, sobre a rádio nos anos 60. Começamos pelo ano de 1961, quando Henrique Galvão desvia o Santa Maria.

Texto Dina Cristo

Em Maio de 1961, os ouvintes têm à sua disposição, num só dia
[1], mais de 100 horas de emissão de rádio, repartidas entre a estação oficial e as particulares.
A Emissora Nacional (EN) recebe, em média, cerca de quatro mil cartas diariamente. Possui, além da programação do Emissor Regional de Coimbra, o Emissor Regional do Norte e o programa “B” (com a junção e desdobramento de emissores), a Lisboa 1 com 17h e a Lisboa 2, com uma interrupção, na qual se insere a programação da Rádio Universidade, com oito horas.
O Rádio Clube Português (RCP) dispõe de 20 horas (entre as 7h e as 3h), e o Emissor de Miramar. A Rádio Renascença (RR) preenche 19 horas, entre as 7h e as 2h – o mesmo horário que os Emissores Associados de Lisboa (EAL), a Rádio Voz de Lisboa, o Clube Radiofónico de Portugal e a Rádio Peninsular. Os Emissores do Norte Reunidos (ENR) preenchem 16 horas de emissão (entre as 9h e a 1h). A Rádio Ribatejo dispõe de mais oito horas de rádio.
No início de 1961, a televisão oferece dois períodos de emissão, num total de quatro horas. O primeiro entre as 18h30m e as 19h30m, e o segundo, entre as 21h e as 24h
[2].
Na década de 60, iniciam-se as emissões em estereofonia e generaliza-se o funcionamento da Frequência Modulada (FM) nas três principais estações. Em 1963, o RCP tem um novo emissor de FM (de Lisboa, com programação independente). Em 1965 e 1966 começam a funcionar os emissores de FM em Monchique, Valongo, Lousã e Mendro (no Alentejo). Em 1967 é a vez de Bornes e da Guarda inaugurarem os seus novos postos emissores
[3]. A RR inicia a montagem da rede de frequência modulada em 1964.
Em 1968 iniciam-se as emissões de estereofonia do RCP e da EN
[4]. Já em 1961, Máximo Esteves, director da Rádio Peninsular de Madrid, afirma que “o som estereofónico prestou provas que merecem uma acolhida entusiástica por parte dos ouvintes”[5].
O transístor, aparelho da rádio em miniatura e portátil, vem revolucionar os hábitos de escuta. A telefonia passa a ser mais económica e de acesso generalizado. “Essa invenção representa no campo que estamos a discutir uma tremenda revolução (…) no caminho de uma fabulosa difusão de rádio-receptores de pequenas dimensões e baixo preço”
[6].
Santa Liberdade

Os acontecimentos de 1961 marcam a década de 60 portuguesa. A política salazarista, autoritária e colonialista, é cada vez mais questionada, no interior do país, na clandestinidade, e além fronteiras, quer em territórios ainda dominados pelo Governo português, quer em instituições internacionais, tais como a ONU e a NATO, às quais se junta a oposição dos Estados Unidos, formalmente aliado de Portugal.
Em Janeiro de 1961, o capitão Henrique Galvão, com 66 anos, programa e realiza o assalto, e posterior desvio, do Santa Maria. Considerado a pérola portuguesa, o navio leva a bordo 600 turistas e 370 tripulantes. Pesa 27 mil toneladas.
O objectivo é atingido: chamar a atenção a nível internacional para a política seguida pelo Governo português. O assalto tem cobertura jornalística em vários países e repercussões internacionais. No Brasil, a eleição de Jânio Quadros é relegada para segundo plano. O Santa Maria torna-se o primeiro acontecimento da década a envolver um esforço suplementar para os homens com funções informativas.
De 22 de Janeiro de 1961, dia da captura do navio, a 16 de Fevereiro, altura em que chega a Portugal, passando pelo desembarque no Brasil, dia 2 de Fevereiro, a informação radiofónica passa dos 12 portugueses, 11 espanhóis e dois venezuelanos a imagem de piratas e criminosos, que atentaram contra a tranquila imagem de Portugal no estrangeiro. Para o Governo, os companheiros de Henrique Galvão não passam de assaltantes que ousam cometer um crime contra a própria pátria, sujando o seu nome além fronteiras. A rádio serve o regime.
O ângulo de visão é sobretudo de apoio indiscutível a Salazar. Nas reportagens são referidos sentimentos e pensamentos mesmo sem os intervenientes serem ouvidos. São legendadas imagens sonoras, previamente determinadas. Nessas peças são promovidas as ideias do Estado Novo, nomeadamente a de que Portugal é um país mulirracial e constituído por regiões ultramarinas. O repórter parece ser o personagem omnisciente de uma representação, várias vezes encenada.
A programação da Emissora Nacional prevista para a primeira semana do assalto consistia em dez blocos informativos. A estação começava a emitir às 7h e terminava às 24h. No entanto, a emissão torna-se ininterrupta logo no segundo dia da viagem do paquete e é prolongada por vários dias, num total de 140 horas suplementares. A EN faz deslocar Artur Agostinho, ao Recife, como enviado especial; recebe crónicas de Ferreira Costa e comentários de “jornalistas e outras individualidades de relevo na vida pública nacional”
[7]. Nasce um programa especial, “Verdades e mentiras sobre o caso de Santa Maria” e a informação da Onda Média é depois repetida em Onda Curta, para o estrangeiro[8].
Na Rádio Renascença, o Santa Maria é especialmente tratado no “Diário do Ar”, magazine dedicado à reportagem de rua e à cobertura de acontecimentos. Mas a estação que mais se salienta é o Rádio Clube Português. Esta emissora dá ao país a primeira notícia no dia 24 de Janeiro, às 2h12m. A partir daí, desenvolve-se um trabalho consecutivo de 270 horas, distribuídas por turnos de redacção, locução e reportagem, envolvendo mais sete funcionários e outros três em contacto com entidades de informação, no exterior. Além dos serviços normais de noticiários, o RCP transmite mais de vinte serviços extraordinários, por dia, interrompendo programas. O RCP chega a obter entrevistas exclusivas com o ministro da Marinha, Fernando Quintanilha Mendonça Dias, e o secretário nacional da informação.
No dia 29 de Janeiro, às 6h28m, chegam ao aeroporto de Lisboa, seis tripulantes feridos do paquete. O repórter cataloga antecipadamente o espírito dos feridos e excede-se em qualificativos. O relato foca, sobretudo, a perspectiva da filosofia patriótica do Estado Novo: «Senhores ouvintes, se posso transmitir-vos uma primeira impressão deste feliz regresso destes portugueses, que viveram a perigosíssima aventura, será a sensação de tranquilidade, paz, de conforto, que se espelha nas suas fisionomias. Graças a Deus, eles estão sãos e salvos em terra portuguesa, onde acabam de regressar. Nós estamos solidários com a sua felicidade, assim como estamos solidários com os riscos e com os perigos que ainda correm os outros tripulantes, assim como os passageiros que ainda estão a bordo do Santa Maria»
[9].
O repórter aborda alguns dos tripulantes de forma a “esclarecer convenientemente a opinião pública acerca da perigosa aventura, da criminosa aventura que viveram”
[10]. Carlos Alberto Carvalho responde que “o estado geral dos passageiros era de medo, era de terror, mas não podiam falar”, afirmando a inevitabilidade da rendição: “O nosso comandante, coitado, estava como de costume, com aquela sua cara, mas tristonha, uma cara tristonha, uma cara que, enfim, metia dó a nós próprios, porque ele teve que se render. Não podia fazer outra coisa”[11]. O tripulante afirma que a população portuguesa “foi coagida debaixo de armas a entregar…”, pois havia “metralhadoras e bombas de mão”[12].
Por seu lado, Henrique Galvão refere, no seu diário de bordo a 22 de Janeiro, o pavor em que estavam os homens do navio, mas sublinha a sua condescendência em excesso, que o desgostou: “No camarote encontrei um grupo patético, a maioria em pijama ou roupão de banho, com o capitão também em pijama, todos derrotados, sem a mais leve resistência, um deles chorando como um bezerro abandonado – autênticos produtos de Salazar, tornados invertebrados pelo regime”
[13].
Aquele que fora o director da EN, entre 1933 e 1941, propôs três formas de rendição, que podiam escolher livremente: “Quando acabei e vi a expressão desmoralizada em todas aquelas caras, ainda esperei que, num rompante de dignidade, escolhessem ser prisioneiros de guerra. Mas não. Depois de uma breve conferência com o capitão, todos juraram imediatamente, sob sua honra, obedecerem-nos com zelo e lealdade. A escolha demonstrava uma tal baixeza de carácter que tornava a palavra de honra desprezível (…). Sabíamos que poucos, talvez nenhuns, eram salazaristas: mas todos tinham no espírito o estigma de Salazar (…). O seu medo era enorme – e, para se sentirem mais seguros, acabei por lhes prometer que os defenderia nas declarações que fizesse, dizendo que só se tinham submetido coagidos pela força”
[14].
No dia 16 de Fevereiro, chega o navio Santa Maria ao cais de Alcântara, em Lisboa. A doca fica repleta de jornalistas, repórteres fotográficos, correspondentes estrangeiros e… cerca de 100 mil pessoas. A par de mais de um animador a incitar pela multidão, gritando “Salazar está quase a chegar”, Viva Salazar”, “Salazar, Salazar…”, o repórter da Emissora Nacional, Artur Agostinho, transmite a emoção da ‘consagração’ de Salazar: “À medida que se aproxima o momento da chegada aqui do Dr. Oliveira Salazar, assim aumenta a excitação patriótica desta gente que aguarda Salazar, que quer ver Salazar, quer vitoriar Salazar”
[15].
Pouco depois, quando aparece à multidão, Salazar é lacónico: “Temos o Santa Maria connosco. Obrigado portugueses”. São as suas únicas palavras à multidão que o aguardava.É uma oportunidade que o Governo não desperdiça para mostrar força e unidade, onde há laivos de fraqueza e divisão. “O regime serviu-se ao máximo do seu poder na imprensa, na rádio e na televisão para transformar a ocasião numa retumbante vitória política”[16].

[1] Tomemos o exemplo do dia 15 de Maio, Segunda-Feira, segundo a “Rádio Nacional”, nº 1242. [2] No dia 7 de Janeiro de 1961, o cartaz televisivo é constituído por quatro horas, de Segunda a Sexta-Feira (18h-19h e 21h-24h), cinco horas ao Sábado (abre às 17h) e cinco horas e meia no Domingo (transmite também entre as 12h30 e as 13h). A informação ocupa, por norma, três blocos de notícias: às 18h45m, às 21h30m e às 23h50m. [3] “Em 1967, tem-se a cobertura total do país em modulação de frequência, por intermédio de uma rede de emissores” in “História da Radiodifusão em Portugal – os contributos do RCP e da EN” de Aníbal Oliveira, trabalho executado no âmbito da cadeira “História dos Media”, coordenada pelo Prof. Rui Cádima, Lisboa, 1987, p.9 (policopiado). [4] “Assim, em Berlim, vários fabricantes apresentarão aparelhos estereofónicos com a novidade de dispensarem os altifalantes complementares que usualmente se colocam em posições diversas. Tudo ficará incorporado no próprio aparelho. Preço: sensivelmente dois terços do que é normal actualmente”, lê-se na crónica sobre a “Deutsche Rundfunk-Fernseh-und Phono-Ausstel`ung 1961” in “Rádio e Televisão”, 8 de Julho de 1961, p.8. [5] “Rádio e televisão”, 11 de Novembro de 1961, p.17. [6] “Rádio e televisão” – Do deslumbramento pelo “transístor” à luta pela sobrevivência da maravilha dita “estereofonia”, 8 de Julho de 1961, pág.8. [7] “Rádio e televisão”, 11 de Fevereiro de 1961, pág. 10. [8] A 14 de Outubro de 1961, as emissões internacionais da EN incluem noticiários para Angola, Moçambique, s. Tomé, Macau, Timor, Índia, Guiné, Cabo Verde, Brasil, EUA, Canadá e para a frota bacalhoeira. [9] Arquivo Histórico da RDP, 29 de Janeiro de 1961. [10] Arquivo Histórico da RDP, EN, 29 Janeiro de 1961. [11] Idem, ibidem. [12] Idem, ibidem. [13] “História contemporânea de Portugal – “Operação Dulcineia. O assalto ao Santa Maria – Henrique Galvão”. Direcção de João Medina, Ed. Multilar, pág. 130. [14] Idem, pág. 130/131. [15] Arquivo Histórico da RDP. EN, Artur Agostinho, 16 Fevereiro de 1961. [16] Elbrick, então embaixador americano em Portugal, citado por José Freire Antunes, em documento confidencial, em “Kennedy e Salazar- o leão e a raposa”, Difusão Cultural, 1991, pág. 152.

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