Literatura portuguesa VIII

Nesta última parte, abordamos a herança de D. Francisco Manuel de Melo e a poesia doutrinal religiosa.
Texto e desenho Dina Cristo
A produção literária mais abundante em Portugal neste período é a da edificação religiosa, com sermões e tratados moralistas; prolonga-se a corrente que já vem do séc.XVI pois permanecem as circunstâncias que lhes dão origem como a importância numérica da população eclesiástica, a repressão inquisitorial ou a devoção popular. Não apareceram obras de qualidade excepcional neste género, mas teve um papel importante na fixação e padronização da língua literária portuguesa – uma literatura religiosa que por vezes teve exageros e desequilíbrios do estilo cultista, como quando se dirigia ao público escolhido da corte. Há também em alguns autores de sermões uma procura de efeitos teatrais, pois eram seguidos como espectáculos ou comédias.
Frei António das Chagas está entre as mais significativas personalidades da época barroca, com uma vida muito acidentada. As suas poesias mundanas têm uma retórica floreada. Caracteriza em Portugal um certo patético característico do barroco nacional. A evocação dos sofrimentos carnais de Cristo é uma forma violenta de auto-suplício, de luta militar contra o pecado. O autor reparte o período e discurso com correspondências temáticas e rítmicas, algo artificiosas.
Bernardes
Manuel Bernardes ganhou crédito de uma imensa erudição teológica; as suas obras são de edificação moral e ascética. De toda a sua produção sobressai a “Nova Floresta ou silva de vários apotegmas e ditos silenciosos” pelo seu interesse literário. A obra de Bernardes é a de um cristão simples (apesar da sua vasta informação literária e teológica), com a ideia de que o mundo secular está profundamente corrompido. Bernardes descreve o céu e o inferno, analisa detidamente as suas prováveis delícias e torturas e descreve-os. Mostra-se persuadido de que a grande maioria das pessoas está condenada às penas eternas e daí o seu fervor em salvar as que pode.
Há uma certa perspicácia psicológica em todas as fases dos exercícios de ascese ou de expansão mística. O grande mérito de Bernardes é o de artista da prosa narrativa, mas ele revela os seus melhores dons artísticos quando procura atingir o grande público, através de narrativas impressivas seguidas de comentários moralistas. É contemporâneo da Fénix Renascida.
A prosa bernardina tem um estilo límpido, com uma faceta do barroco literário, e conceptismo – concisão lapidar, parcimónia de vocábulos. Recolhe do latim o uso do hipérbato, que se torna uma forma natural de expressão. Usa períodos longos que atira para o princípio a explicação a que pretende dar realce. Nele os artifícios aparentam uma perfeita naturalidade. Deve ao latim a não repetição próxima das palavras, o uso tão escasso quanto possível dos artigos. É exímio em encontrar sinónimos e antónimos; identifica sempre o termo exacto para o que pretende dizer e sugerir: “O vocábulo tanto pode ser culto como popular, mas nunca é pedante nem grosseiro”, referem os autores. Evita meticulosamente as repetições (também de sílabas) e hiatos. Em suma, com Bernardes a prosa académica, a prosa como obra de arte para uma ideologia feita, atinge o apogeu.
Vieira
O padre António Vieira (1608-1697) é a figura representativa de certas formas superiores da nossa mentalidade seiscentista. É um homem de formação religiosa ainda medieval mas com a consciência empírica das novas condições. Procura uma solução ideológica para estas contradições. É padre jesuíta, pregador, missionário, diplomata, político e profético utopista.
É enorme o seu legado literário: cerca de 200 sermões, mais de meio milhar de cartas, numerosos relatórios, documentos de natureza política ou diplomática, e também opúsculos religiosos. Há uma grande ligação com a vida pública: o escritor e o homem de acção são indissociáveis em Vieira. As suas constatações denotam uma vista limpa de preconceitos e deduz a necessidade de tolerância religiosa para com os judeus.
Há também várias contradições. Vieira enfrentava uma realidade que não era já a medieval: os problemas do passado continuavam em vigor mas as motivações dos homens eram outras. Ele teve de utilizar todas as possibilidades do sermão tradicional para convencer os humanos do seu tempo.
Estilo e ideário
O sermão, que tem uma função prática, desenvolve-se a partir de um texto bíblico que se comenta de acordo com o tema e as teses que o narrador se propõe desenvolver. O texto contém múltiplos mistérios a decifrar e considerava-se um termo isoladamente, analisava-se desde a etimologia das palavras às repetições, número de sílabas e letras que a compõem, aos vários significados e ao jogo de sinónimos e antónimos. A realidade da natureza conhece-se, não através da experiência, mas da análise e explicação dos conceitos dentro de um sistema de noções tidas como imutáveis.
O discurso tem às vezes a aparência da mais rigorosa dedução, mas é pura fantasia. Cada palavra e/ou texto pode dar lugar a múltiplas associações que aparentam muita solidez. Para convencer o ouvinte, recorre a todos os meios de pressão, dando a aparência de caminhos certos. Os sermões não obedecem a uma ordem espácio-temporal, nem a uma sequência emocional, mas segundo “uma disposição de geometria decorativa”. Distingue-se dois movimentos na prosa: um de pergunta e resposta e outro de analogias e oposições.
Cheios de intenção, os sermões comunicam devido à convicção que Vieira põe nas suas palavras. Para lá do encadeamento falacioso encontram-se nos sermões verdades que de algum modo nos tocam, mas em alguns casos a imaginação é demasiado livre de propósitos práticos.
A prosa de Vieira é um dos bons modelos da prosa portuguesa: propriedade vocabular, economia dos adjectivos, precisão, clareza, elegância e simplicidade de perfil. Tudo isto devido à educação escolástica e retórica das escolas jesuítas, uma longa experiência da arte de convencer, intuição psicológica, gosto do jogo e grandeza de visão. Estas qualidades encontram-se nos sermões e relatórios. É uma prosa eminentemente funcional, sem deixar de se manter ao nível da universalidade, alguns dos textos exprimem o realismo e as quimeras sebastianísticas.
Etiquetas: Dina Cristo, Literatura portuguesa VIII, Livros
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