quarta-feira, 8 de julho de 2009

Literatura portuguesa VII


Nesta sétima parte, focamos a influência castelhana no século XVII em Portugal: os grandes doutrinadores e moralistas e a perfeição da prosa portuguesa com D. Francisco Manuel de Melo.

Texto e desenho Dina Cristo

D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666) é em Portugal a personificação mais acabada da cultura aristocrática peninsular na época da Restauração. É um típico representante da sua classe na época, dada a sua larga experiência, e é um dos polígrafos peninsulares com mais variadas facetas. É bilingue. As suas produções líricas são classificadas em nove partes, abrangem quase todos os géneros na península e pretendem fazer a síntese das principais escolas poéticas da literatura espanhola.
Alguns dos seus trabalhos de historiografia são “As epanáforas” (a epanáfora amorosa é uma narrativa do descobrimento da Madeira por um par amoroso inglês e inclui reflexões acerca da saudade portuguesa), títulos de novelas, duas biografias (“Teodósio” e “Tácito”). Publicou em castelhano “Obras Morales”, que inclui temas de meditação ascética, uma vida de Santo Agostinho e de S. Francisco de Assis.
Em português redigiu os “Apólogos Dialogais”, três textos de crítica de costumes – “Relógios falantes”, “Escritório avarento”, “Visita das fontes” e também o “Hospital das letras”, primeira revisão crítica geral de autores literários. Entre os seus escritos moralistas o mais conhecido é a “Carta de guia de casados”. Escreveu muitas obras apologéticas quer a favor dos privilégios da nobreza quer a favor da Restauração. As matérias políticas foram sempre, tal como as militares, da sua especial predilecção. Para o teatro escreveu o “Auto do fidalgo aprendiz”.

Ideário

D. Francisco Manuel de Melo teve uma educação jesuíta e cortês, era o tipo humano do aristocrata de sangue e de espírito, cosmopolita (pelas viagens e imensas leituras). Detestava a vida de campo que só aconselha em determinadas fases da vida. Viveu a Restauração e exaltou as glórias literárias nacionais. Acompanhando o barroco peninsular, D. Francisco procura manter na sua prosa um sabor arcaico e popularizante. D. Francisco é um conservador, mas acomoda-se bem às circunstâncias do seu tempo. Dá uma grande importância à teoria política, como em “O Hospital das Letras”, em que critica o maquiavelismo. Este moralismo restringe-se à esfera individual e política pois socialmente ele considera a prostituição, a bastardia, a roda de enjeitados, as desigualdades de classes males necessários.
No “Escritório avarento” denuncia muitas podridões sociais através da autobiografia de duas moedas, uma de alto curso, outra de troca; mostra a omnipresença do dinheiro, apresenta as moedas como símbolos de conclusão conformista – o dinheiro nada teria de mau em si, pois uma vez criadas as desigualdades sociais ele modera os apetites - o único mal consiste na avareza que o transforma de meio legítimo em fim vicioso. O dinheiro está justificado por ser meio de troca, padrão de valor e também capital já que a sua acumulação permite comprar também o trabalho alheio.
D. Francisco preconiza uma grande preponderância do marido, sendo muito natural a dependência imposta às senhoras. Todas as aventuras amorosas dos jovens fidalgos solteiros são para ele naturais, enquanto a mulher passa da tutela dos pais para a do marido. Esta deve viver em reclusão completa, vigiada nas suas relações e sem cultura, mas D. Francisco não as julga muito menos dotadas de espírito que o homem. O problema das relações matrimoniais parece ter sido obsessivo no autor: além da “Carta de guia de casados”, dedicou-lhe a écloga moral e várias cartas.
Sob o ponto de vista filosófico-religioso, D. Francisco é formado dentro da escolástica jesuíta. Tal espelha-se na inquietação do barroco contra-reformista. Inclina-se para as matemáticas e o mecanicismo científico não passam despercebidos. Em diversos passos, a vários propósitos põe reservas aos antigos e exalta a maior experiência dos modernos e proclama o progresso contínuo. Nota, antecipando-se aos românticos, que os gostos variam com o tempo.
Há pequenos esboços de atitude ensaística em certas obras, como no estilo corrente na carta de guia, onde critica a erudição. É uma crítica da imitação servil dos antigos clássicos. Aristotélico, tem o culto escolástico da autoridade e usa o pejorativo amenista para designar os que dizem amén a tudo. Interessa-se pelas ciências ocultas e escreve o “Tratado da Ciência Cabala”. A prisão prolongada produziu-lhe um abalo psicológico e um desassossego de matriz religioso.

Concepção de arte literária

Não há uma doutrina coerente de poética mas assentos incompletos e contraditórios que variam. Em geral tende para a variedade de gosto e critério. No caso do “Hospital das letras” há pontos de vista antagónicos. O gorgonismo domina a fase inicial da carreira de D. Francisco como poeta. Na última fase pode praticá-lo já banalizado pela moda. Os anos de infortúnio estimularam uma poesia mais directa.
Há um formalismo e conceptismo em D. Francisco. A forma estilística e a métrica têm para ele uma importância fundamental – existe o gosto da inovação formal, no tratamento das variadíssimas formas de versos como os encavalgamentos e até o poema em verso livre, sem rima nem ritmo regular.
Quanto às obras em prosa, a carta de guia é um modelo de exposição clara. Os “Apólogos dialogais” em tom popular e estilo coloquial exigiram grande preparação. “O Hospital das letras” é um diálogo que se trava imaginariamente entre os livros de quatro autores (mas depressa o leitor se esquece disso e imagina estar em presença de quatro personalidades, representantes de outros pontos de vista doutrinários). É um diálogo didáctico.
Em “O escritório avarento” e “Relógios falantes”, os relógios ou moedas contam a sua acidentada autobiografia, através das mais diversas classes sociais e ocupações humanas. São duas obras-primas da observação avulsa de costumes.

Historiador

No “Hospital das letras” discutem-se dois tipos de historiografia: a narrativa simples e a relação entremeada de ilações psicológicas e morais. O género mais cultivado por D. Francisco foi a epanáfora – relações de testemunho pessoal o que proporciona muita animação dramática e observação concreta. As epanáforas contêm informações curiosas e retratos dramatizados. A “Epanáfora política”, sobre as alterações de Évora de 1637, é o mais notável documento de história social desde Fernão Lopes.
D. Francisco não tinha nem temperamento nem condições para uma historiografia de fôlego. Nas epanáforas a precisão de dados geográficos deixam a desejar e a história do suposto primeiro descobrimento da Madeira interessa principalmente como um romance sentimental. Esta epanáfora condena moralmente os amores do casal lendário.
O que mais importa em D. Francisco é a sua própria personalidade e a sua observação de costumes. Há um misto de sofrimento vivido e amaneiramento académico.

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