segunda-feira, 8 de junho de 2009

Literatura portuguesa VI


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Nesta sexta parte, abordamos a prosa doutrinária no séc.XVI, com Samuel Usque, Heitor Pinto, Amador Arrais e Tomé de Jesus.

Texto Dina Cristo

A prosa doutrinal religiosa é constituída por um conjunto de obras em que predominam os motivos religiosos. Não se pode falar, no caso português, de uma literatura propriamente mística, que exprima uma experiência de contacto directo com a divindade. Não são muitas as obras ascéticas, que se ocupam dos preceitos que levam à perfeição espiritual e preparam para a união com Deus.
“A consolação às tribulações de Israel”, de Samuel Usque, é constituída por três diálogos entre pastores e tem como objectivo rememorar as perseguições do povo bíblico. Embora adaptado à ficção pastoril, a sua inspiração é fundamentalmente bíblica. Neste estilo, a ligação lógica é dada por alegorias e metáforas simples, repetições e descrições pitorescas. Por exemplo, o diálogo pastoril sobre as causas da Sagrada Escritura, com mais descrições campestres, traça um quadro paradisíaco anterior às atribulações israelitas.
É ainda sob uma reconhecível influência do Humanismo renascentista que Heitor Pinto redige “A imagem da Vida Cristã”, marcando já a inflexão para o ascetismo e o barroco da época seguinte. O autor é platonizante convicto: inferioriza o conhecimento sensível perante o intelectual (diálogo um entre onze), apresenta a teoria platónica das Ideias (diálogo da justiça) e defende que a verdadeira filosofia é o conhecimento de si próprio. Ele faz um discreto mas inequívoco ataque à teologia escolástica mas dá, em geral, a última palavra a um interlocutor teólogo. No ideário social encontra-se também um eco, embora já muito amortecido, do Humanismo: manifesta-se contra as distinções hierárquicas.
O aspecto mais saliente da forma literária de “A imagem da vida cristã” é variedade, profusão e interesse das imagens que por vezes surgem aos cachos para caracterizar um mesmo pensamento. Algumas são de origem literária, outras provêm do ambiente físico observado quotidianamente. O paralelismo entre a vida física e a vida moral é o eixo destas comparações. O gosto pelas imagens também é devido à técnica medieval da pregação, à leitura dos diálogos de Platão e uma grande vocação metafórica a trabalhar espontaneamente sobre os dados correntes. Há muito conceptismo (que serve em geral para sublinhar conceitos contraditórios) nas inúmeras comparações de Heitor Pinto. As suas imagens são motivos de reflexão e apoiam-se numa observação naturalista sem precedentes no seu género literário.

Heitor Pinto tem uma cultura humanista variada e profunda, além de literária, e com referências constantes à matemática. É um humanista laico e de raiz burguesa e representante de uma elite clerical que não anda muito longe do ideal proposto por Erasmo. Não pode considerar-se um místico nem um asceta. Para ele, a religião consiste na caridade e o primeiro passo para o conhecimento de Deus é o auto-conhecimento. Mas já na sua prosa há uma superabundância de ornato, que anuncia o barroco, e temas como o isolamento e o desprendimento do mundo que vão ser acentuados na época seguinte.

Misticismo
Amador Arrais faleceu em 1600 após ter desempenhado importantes cargos eclesiásticos. “Os Diálogos” são constituídos por simples conversas à beira de um doente que é sucessivamente visitado por dez amigos e não um debate entre teses opostas. Por vezes, os interlocutores limitam-se a reforçar entre si as opiniões comuns. A sua prosa limita-se a ser correcta e acessível, evitando o conceptismo barroco e é neste aspecto a melhor dos autores religiosos seiscentistas. Apresenta um progresso literário pois dirige-se a um público leitor mais vasto, por isso assimila a disciplina gramatical e os recursos estilísticos clássicos ao uso das formas correntes do idioma.
Contudo, parece que a obra literária não é original. O que pode interessar neste livro é o testemunho de certa problemática típica da época: censura do lucro, glorificação dos rasgos cavaleirescos e cristãos da história portuguesa; a cobiça e a usura seriam os responsáveis pela decadência portuguesa. Arrais defende a subordinação do poder político aos preceitos da religião. A segunda parte da obra é um tratado moral com regras precisas sobre o testamento.
Frei Tomé de Jesus pode ser considerado um escritor místico se o misticismo literário for definido sem ter em conta a experiência mística como uma efusão emocional. De qualquer maneira o fervor místico encontrou muito poucas manifestações originais na literatura portuguesa.
Os trabalhos de Jesus destinam-se a consolar a nação portuguesa no tempo daqueles grandes trabalhos da jornada de África. Esta obra é uma reconstituição imaginária de cinquenta dos padecimentos de Jesus Cristo e de outros passos da sua vida seguidos de preces. Salienta-se, não pelo pitoresco ou imagem mas pelo enlevo com que procura erguer toda a amargura dos companheiros de Jesus. Os períodos parecem querer prolongar-se até aos limites do folgo, numa enumeração de pormenor dos sofrimentos. É uma evocação realista e torturada dos padecimentos carnais da via-sacra, já com larga tradição. É uma mística da dor, centrada na paixão de Cristo.

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