sexta-feira, 8 de maio de 2009

Literatura portuguesa V


Nesta quinta parte abordamos historiadores do Séc. XVI como João de Barros, Fernão Lopes de Castanheda, Diogo do Couto ou Damião de Góis.

Texto e desenho Dina Cristo

João de Barros é talvez na primeira metade do séc. XVI o representante mais completo das tendências renascentistas, nomeadamente a expansão marítima portuguesa. A sua obra, já de si vasta, abrange grande diversidade de temas e géneros.
A “Crónica do Imperador Clarimundo” é a primeira expressão quinhentista do gosto pelo romance de cavalaria. A história inspira-se numa genealogia imaginária do Conde D. Henrique. O estilo faz pensar nas décadas: alguns períodos complexos e longos, com predomínio da oração subordinativa, encarecem as grandes virtudes aristocráticas dos heróis. Os capítulos terminam por uma sentença moral. Os combates são descritos pormenorizadamente. Há um propósito moralizador e pedagógico. Existem descrições da terra portuguesa com certo sentido do concreto. Esta obra exprime a adesão do autor aos valores convencionais da corte. Aliás João de Barros fez a sua formação na corte portuguesa e a ela se vinculou na primeira metade do século.
A Ropicapnefma é uma das obras mais significativas do nosso Renascimento. Foi escrita em 1531. É um colóquio – género predilecto da Renascença. Os interlocutores são alegorias correspondentes a noções medievais: o tempo, a vontade e o entendimento. Através da discussão destas alegorias o autor propõe combater heresias que negam a imortalidade da alma, existências de prémios e castigos na outra vida, a superioridade da religião cristã sobre as outras; ele acredita nestas três últimas coisas. Há que ter em mente que o capítulo não conclui pela vitória inequívoca da razão. É uma discussão doutrinária. Ao longo do debate há muitas digressões que excedem o tema principal. Nelas se encontram críticas ao clero (hipocrisia e mundanismo), à nobreza, aos médicos, aos juristas e até à teologia corrente.
João de Barros põe em discussão o problema da origem do poder e da propriedade – diz que foi a violência dos “maliciosos”. Ele ecoa a ideologia anti-nobiliárquica e anti-clerical dos humanistas. O livro tem uma intenção de apologética religiosa, mas dentro de uma religiosidade tipicamente humanista. Em resumo, nesta obra é flagrante a influência de Erasmo na crítica social e na intenção religiosa. O humanismo da obra é mais doutrinário do que formal.
As sobrevivências medievais abundam: as discussões são dentro das regras mais formalistas da lógica escolástica e a estrutura alegórica integra-se no gosto literário dos finais da Idade Média. A nível de estilo é a obra mais viva de João de Barros. Tem uma linguagem fluente, entrecortada (de exclamações, gargalhadas, ironia). Abundam imagens baseadas no paralelismo entre o físico e o espiritual (característico da Idade Média). Além do desembaraço de linguagem há um atrevimento ideológico.
Nas “Décadas”, grande enciclopédia geográfica-histórico-económica, a intenção declarada desta obra é erguer um monumento aos feitos portugueses no Oriente. Mas João de Barros cinge-se à ideologia oficial do Estado, segundo a qual a expansão portuguesa era uma cruzada de fé.
A concepção que tem de história é um espelho de exemplaridade heróica construída de acordo com as regras da retórica clássica. Mas para Barros o amor à verdade não deve ir até ao ponto de revelar os vícios e fraquezas dos heróis. Ele deixa o leitor prevenido de que a outra parte do rosto da Ásia está deliberadamente ocultada. Há uma orientação pró-aristocrática da historiografia. As personagens históricas tornam-se convencionalmente nobres e heróicas.
O aspecto positivo e moderno na obra histórica de João de Barros é a sua concepção universal da história. Antes de apresentar uma acção histórica faz uma descrição da região. Há uma estreita ligação entre a história e a geografia (concepção moderna). Tinha uma mundovisão muito avançada: consciência de que a China constitui uma civilização original.
João de Barros inaugurou um estilo novo na historiografia portuguesa. Para fugir à tradição medieval encostou-se ao estilo latino de Tito Lívio. Assim, atribui às suas personagens discursos bem ordenados que resumem as situações. A frase é longa e complexa e agrupa múltiplas circunstâncias à volta da acção principal. Afasta-se demasiado da língua oral e sente-se o artifício literário. O autor aspirava a um português alatinado.

Outros autores

Os descobrimentos e conquistas dos portugueses inspiram uma abundante literatura, que se prolonga até ao séc. XVII. Há obras inspiradas directamente na experiência ultramarina.
Fernão Lopes de Castanheda publicou a História do descobrimento e conquista da Índia pelos portugueses. Percorreu durante dez anos os locais onde se situam os sucessos narrados pela sua história. É hoje considerada a narrativa mais sincera e objectiva. Oferece descrições geográficas e etnográficas de grande interesse.
Normalmente o estilo é seco e contrasta com a vidência dos acontecimentos testemunhados como actos indecorosos dos dirigentes.
Damião de Góis escreveu “A crónica do Príncipe D. João” (1567) e “A crónica do rei D. Manuel” (1566/7). Tem um estilo incolor, não dá uma visão de conjunto dos acontecimentos; procura oferecer, sem artifícios, uma narração objectiva dos factos. Tem uma tolerância humanista. A primeira crónica é escrita contra a alta nobreza. A sua crítica mais sensível tem como alvo as intrigas da corte manuelina.
Garcia de Resende faz também uma crónica de El-Rei D. João II. Decalca-a de Pina e acrescenta-lhe episódios interessantes para o conhecimento do carácter do rei. A narração é acompanhada de uma revista do panorama nacional e internacional do tempo. Nela o autor demonstra uma viva consciência da transformação do mundo.
Francisco d`Olanda (1517-1589) é o mais explícito representante teórico da doutrina que colocava o valor estético acima de qualquer outro.
Diogo de Couto é dominado por um sentimento muito vivo da veracidade histórica (1542-1616); passou a maior parte da sua vida na Índia. Propôs-se continuar as décadas de João de Barros, mas a atribulada história dos seus livros mostra bem como a preocupação da veracidade incomodava certas famílias. As “Décadas” de Couto são documentos preciosos pela sua objectividade corajosa; embora o seu estilo se aproxime dos seiscentistas por certo domínio da frase e da construção, fica muito longe do amaneiramento e da expressão eufemística que os caracteriza.
O espírito que anima a obra histórica de Couto está bem patente num escrito polémico – “O soldado Prático” – onde se critica com vigor a administração do Oriente, descrito como uma rapina organizada em benefício de clientelas cujo vértice era o próprio Vice-Rei. O soldado experiente é o português de pequena categoria e de demorada permanência no Oriente, que se considera vítima dos capitães e administradores de alta hierarquia, empenhados em enriquecer em pouco tempo nos cargos que ocupam. Pode considerar-se o libelo acusatório.

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