quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Revolução Lenta

Começa amanhã, até Domingo, a conferência anual da Sociedade para a Desaceleração do Tempo, em Wagrain, na Áustria. Oportunidade para, a partir do livro do jornalista Carl Honoré, levantarmos a ponta do véu sobre o movimento internacional em defesa da Lentidão.

Texto Dina Cristo

É um dos recursos mais democráticos: cada pessoa tem, por dia, exactamente o mesmo número de horas disponível para viver. Para alguns basta, para outros é demais e para muitos parece insuficiente. O tempo transformou-se numa espécie ora de recurso valioso a poupar o máximo e gastar o mínimo ora de inimigo a ser constantemente vencido. Tornámos, assim, a vida num campo de batalha, uma luta permanente para ganhar… tempo. Não o ter converteu-se numa das mais habituais queixas humanas e detê-lo um dos maiores sonhos.
Mas que fazemos quando o antevemos? Tratamos de o ocupar. Sobrecarregamos as nossas agendas, preenchemo-lo o mais que podemos. Um espaço vago deixou de ser motivo de satisfação para passar a ser mais causa de angústia.
Segundo Carl Honoré a nossa relação com o tempo alterou-se desde a industrialização, com os seus impulsos ao nível da urbanização e massificação - produção intensiva e padronizada, na qual a rapidez passou a ser sinónimo de maior quantidade de produtos fabricados, de mais vendas e, portanto, capital económico e lucros financeiros. O tempo acabou por ser encarado como um recurso produtivo: nasce então a ideia de que tempo é dinheiro e que para sermos materialmente mais ricos temos de nos… despachar.
A “cotação” do tempo subiu de tal forma que os operários passaram a ser pagos à hora e não de acordo com aquilo que realmente fabricavam. A pressão para se produzir mais em cada vez menos tempo não parou, dando pouca margem ao controlo de qualidade. A acção externa e reprodutiva ganhou ênfase. O tempo demorado, natural e pessoal, anterior à Revolução Industrial, como o artesão e a sua arte de produzir, manual, individual e lentamente, passou à resistência.
Com a chegada dos relógios públicos, o tempo padronizou-se e homogeneizou-se, passou a regular a vida colectiva, como fábricas e transportes, e os humanos a ser máquinas comandadas por outras máquinas, num grande sistema de produção quantitativa, intensiva e contínua. No século XX, com o automóvel, a televisão, o computador ou o telemóvel, a indução da velocidade foi ainda maior.
Depois da “era” da mitologia e teologia, a tecnologia tem-se apresentado ao olhar humano como um novo deus, ao qual umas vezes se teme e outras se preste culto e devoção e deposite a esperança na resolução dos problemas. Quando pensamos em todas as máquinas que a evolução tecnológica nos tem disponibilizado entendemos a sua idolatria: elas permitiram-nos fazer mais (depressa). Aumentaram o potencial das nossas actividades e deram-nos os meios técnicos para nos tornarmos (automaticamente) mais rápidos. A velocidade das nossas vidas aumentou e nós adaptámo-nos a um ritmo cada vez mais célere.
O tempo, outrora, natural, artificializou-se e passámos a obedecer ao, colectiva e publicamente, estipulado como o (mais) correcto. Simbolizado nos relógios de corda que deixámos de usar (e os quais dominávamos), deixámos de ter poder sobre o tempo para ser ele a determinar (toda) a nossa vida. Prescindimos de nos levantar quando acordamos, de comer quando temos fome, de dormir quando temos sono e passámos a fazê-lo quando… são horas ditadas pelos relógios-despertadores.
Velocificados
Hoje, em que o mundo se transformou num hipermercado permanente, o acréscimo de estímulos e a possibilidade de ocupar o espaço de tempo aumentou extraordinariamente. Com cada vez mais (compras) a fazer, nós corremos. Iniciámos uma corrida colectiva contra o tempo, como doença contagiante, e aceleramos de manhã à noite, no trabalho e em férias, na estrada e na vida íntima. Hoje em dia, afirma Carl Honoré, o mundo inteiro está doente do tempo; todos pertencemos ao mesmo culto da velocidade, fora de controlo. Tornámo-nos velocificados.
Passámos a ter vidas frenéticas dirigidas pelo relógio. Adaptámo-nos ao ritmo industrial, primeiro, hoje ao informacional, submetemo-nos à economia, desequilibrámos as horas dedicadas ao trabalho e à vida. O tempo passou a nosso Senhor, ao qual prestamos vassalagem, devoção e nos sujeitamos. Ser lento e/ou chegar atrasado tornou-se num crime/pecado ou motivo de crítica social, como reflectem as anedotas acerca dos alentejanos.
A nossa visão linear do tempo, como recurso finito, que parece “voar” de forma irrecuperável, também não ajuda. Os relógios, por seu lado, têm-se tornado cada vez mais precisos na medição dos minutos e (milésimos de) segundos e quanto mais o dividimos maior a consciência da sua passagem. Cresce então a obsessão por não o desperdiçar. Foi assim que nos tornámos neuróticos: passámos a acelerar por acelerar, muitas vezes por hábito, já sem saber porquê; apressar tornou-se um vício, um reflexo condicionado.
Falta de tempo?
Numa relação de amor/ódio, sonhamos com uma agenda livre, mas tememos e angustiamo-nos perante esse vagar. Ocupamos obsessivamente os tempos livres, de crianças e adultos, e não nos sobra tempo, mesmo para as coisas mais simples e relevantes, como a alimentação, a saúde, a família, os amigos, e menos ainda para as efectuarmos devagar. Enchemos as nossas agendas, reduzimos as férias, não admitimos ficar doentes, e, por vezes, só paramos em situações (muito) graves. Assumimos uma atitude do “sempre-em-frente-sem-parar-até-cair”.
À pressão tecnológica e social para estarmos permanentemente ligados junta-se uma ocupação permanente com compromissos sem fim, pelo que a disponibilidade é, na verdade, mais aparente, parcial e superficial do que efectiva. Ter todo o tempo do mundo para alguém ou alguma coisa, fazendo uma pausa para tudo o resto, desligando o telemóvel, por exemplo, é um “luxo” quando habitualmente dispersamos a nossa atenção por várias actividades, simultaneamente. A nossa capacidade de concentração parece cada vez menor. Sem ir ao fundo de cada coisa, desmotivamo-nos, porque mesmo todas juntas nos parecem insossas.
Deixámos de possuir tempo, passámos a ter pressa. A urgência deixou de ser extraordinária. A tendência para o imediatismo, em obter, fazer e/ou ter tudo já, passou a fazer parte das nossas exigências. Tornámo-nos intolerantes em relação a pessoas, locais e actividades lentas. Rebentamos de raiva quando algo ou alguém nos atrasa e nos rouba alguns segundos da nossa vida. Em vez de apreciarmos o caminho (o aqui e agora), optámos por uma vi(d)a rápida (de que as auto-estradas são um exemplo), obcecados em chegar ao fim da meta.
Intensificámos a vida e de tanto a concentrarmos, desgastámo-la, pré-enchemo-la, esvaziando-a de sentido. De tanto perseguir a satisfação, frustrámo-nos num ciclo de superficialidade que apenas conduz à sensação de carência, motivo da procura de mais (quantidade) que por sua vez gera a substituição permanente, a procura da última “novidade”, êxito ou conquista, sempre efémera e descartável. Procuramos acumular o máximo e entrámos num ciclo vicioso de - sensação de - falta de tempo: «O resultado é uma crescente disparidade entre o que queremos da vida e o que realisticamente podemos ter, que alimenta a sensação de nunca haver tempo suficiente”
[1], explica o jornalista.
Refúgio
Carregar no acelerador - seja o tecnológico, do carro, ou o biológico, das pernas – liberta adrenalina e produz uma excitação sensorial imediata, mas é mais do que isso. A velocidade é, ainda que por vezes inconsciente, uma estratégia de fuga à vida presente (como defende Milan Kundera) e futura – tentativa de esquecer a nossa condição mortal (como defende Mark Kingwell).
Uma forma de resistência, uma fuga e uma distracção: «A doença do tempo pode também ser um sintoma de um mal mais profundo e existencial. Nos estádios finais que antecedem a exaustão, as pessoas muitas vezes aceleram para evitar serem confrontadas com a sua infelicidade. Kundera pensa que a velocidade nos ajuda a bloquear o horror e a desolação do mundo moderno”[2].
Cada vez que aceleramos aumentamos a superficialidade da nossa vida. Podemos fazer mais coisas mas quantas vezes mal feitas (porqu)e só com o corpo, sem alma para as animar. À força de tanto querer ganhar tempo, acabamos por perdê-lo ao corrigir os erros que se cometem durante a rapidez (como a correcção de mensagens electrónicas), já para não falar nos acidentes (mesmo os de viação).
Pagámo-lo também com o desgaste da nossa saúde: entramos em stress, fadiga e exaustão. Se é verdade que a velocidade nos conduz mais rapidamente à excitação, também nos leva mais depressa à impaciência, ao aborrecimento. Já Gustav Mahler defendia que perante um público enfadado a melhor solução era… abrandar.
Slow is beautiful
Os Lentos, que resistiram ao longo do séc. XIX e XX, mas não desistiram nem deixaram de existir, reaparecem agora em grupos pró-slow. O despertar do turismo, com a procura do descanso, era já um sintoma, mais recentemente sublinhado com a corrente de lazer cuja “onda” se espalha.
Em vez de afazeres humanos ou teres humanos há cada vez mais pessoas no mundo que decidem arriscar assumirem-se como seres humanos. A “heresia” de desacelerar, descontrair, demorar e preguiçar estende-se desde a Europa à América, passando pela Austrália, Japão ou Polónia, e nas mais diversas áreas, da comida à sexualidade, do trabalho às cidades, da música ao desporto, da medicina ao lazer, da educação ao cinema, a marcha lenta engrossa e as atitudes lentas também.
A simplicidade voluntária (downshifting) é um exemplo entre inúmeros. Enquanto em Espanha há cadeias de sesta, em Portugal os seus amigos explicam as virtudes de uma soneca depois do almoço. A nível internacional demonstram-se os efeitos nocivos da velocidade e programas dedicados a passatempos, como a jardinagem, atingem audiências significativas, na BBC.
Os apóstolos Lentos não defendem que se faça tudo a passo de caracol (o que seria absurdo), mas a um ritmo mais razoável e apropriado, mais sensato, natural e à medida do Ser Humano – o eigenzeit: “(…) o que o movimento Slow oferece, é um meio termo, uma receita para casar a dolce vita com o dinamismo da era da informação. O segredo está no equilíbrio: em vez de fazer tudo mais depressa, faça-se tudo à velocidade certa. Por vezes, depressa. Outras vezes, lentamente. Outras, algures no meio”
[3].
Começou episodicamente em Itália, ao nível dos vagares culinários. Tem-se alastrado pelo mundo e pelas várias áreas da vida humana. Hoje os Lentos têm à sua disposição conferências, festivais e, sobretudo, a possibilidade de debater e experienciar viver (de)vagar e com vagar, uma alternativa saudável, natural e eficaz à vi(d)a rápida. Carl Honoré explica e exemplifica como é nas horas vagas que, mais relaxado e sensível, o Ser Humano atinge mais e melhor inovação e criatividade.
(Des)acelerar?
O movimento em prol da Lentidão defende a utilidade da calma (e a futilidade da pressa), a ideia de que menos é mais (e mais é menos), de que saber demorar, apreciar e prolongar o momento (e não fugir dele), saber esperar (em vez de se impacientar), ser capaz de, por vezes, não fazer nada, o que permite estar mais atento e conduzir à descoberta. Enquanto o abrandamento, vera segurança, permite, com a sua profundidade e consciência (como no caso das ondas cerebrais), uma evolução, libertação, relaxamento, qualidade de vida e felicidade, a aceleração, sinal de insegurança, leva, com a sua superficialidade e inconsciência, a uma repetição, prisão, tensão, quantidade e raiva, documenta o autor.
Os adeptos* de que o “slow é possível” propõem um modo de vida simples, criativo, extensivo e demorado. Para tal há que estabelecer prioridades e fazer uma escolha, optar por fazer menos coisas e, assim, libertar a agenda para as que, para cada um, têm mais valor e significado. Ter espaço para o tempo livre, para o descanso, a descontracção ou actividades relaxantes, como a leitura, pesca, jardinagem, caminhada, renda, meditação ou simplesmente estar à janela.
Os seus simpatizantes colocam a economia ao serviço das pessoas e do ambiente, em vez do contrário. Ao espírito lento está subjacente o ressurgimento da memória de um tempo cíclico. Para os hindus era infinito (Kâla), para os gregos era um deus, Chronos, para Asclépio era estável, pois tinha necessidade, para além do movimento, de voltar ao princípio.
Nós transformámos a quarta dimensão numa espécie de inimigo cujo combate é diário. Para a “doença do tempo” e a “orgia da aceleração”, os activistas pró-Lentos apresentam, no entanto, um remédio: desacelerar ou mesmo travar, se e quando necessário. Sem a pressão dos ponteiros do relógio, assumem o seu próprio ritmo e desfrutam dos prazeres que a lentidão oferece: “Cada prazer (…) é mais delicioso, mais um prazer, se for tomado em pequenos golpes, se dermos tempo”, afirma Amos Oz.
Trata-se, afinal, para os povos mediterrâneos, de nada mais do que a recuperação da sua identidade, no caso português bem patente em provérbios populares que expressam os perigos da pressa, como “depressa e bem há pouco quem”, “quanto mais depressa mais devagar”, e as virtudes da lentidão, como “devagar se vai ao longe”. Afinal, como afirma Uwe Kliemt “O mundo é um lugar mais rico quando damos espaço para velocidades diferentes”.

[0] HONORÉ, Carl – O movimento slow – A corrida contra o tempo afecta o trabalho, a saúde, as relações e o sexo. É possível desacelerar e recuperar a qualidade de vida?, Estrela Polar, 2006.
[1] Pág. 36. [2] HONORÉ, Carl – O movimento slow – A corrida contra o tempo afecta o trabalho, a saúde, as relações e o sexo. É possível desacelerar e recuperar a qualidade de vida?, Estrela Polar, 2006, pág. 38. [3] Idem, pág. 240
*Eis alguns dos livros citados pelo autor ao longo do texto: BEARD, George – Nervosismo americano (efeitos da velocidade). CLAXTON, Guy – Cérebro de lebre, mente de tartaruga – porque aumenta a inteligência quando se pensa menos. ELKIND, David – A criança apressada: crescer depressa demais cedo demais. KUNDERA, Milan – Slowness. 1996. LAFARGUE, Paul – O direito a ser preguiçoso. 1883. MACHLOWITZ, Marilyn – Viciados no trabalho (Workaholics). 1980. NADOLNY, Sten – A descoberta da lentidão. 1996. OIWA, Keibo – Lento é belo. OLERICH, Henry – Um mundo sem cidades nem campos (uma civilização em Marte onde o tempo era tão precioso que se tornara moeda). PASEK, Hirsch – Einstein nunca usou cartas flash: como aprendem realmente as nossas crianças e porque precisam elas de brincar mais e memorizar menos. ROBERTSON, Morgan – Futilidade. 1989. RIFKIN, Jeremy – Guerras do tempo. RUSSELL – Em defesa da ociosidade. 1935. SAMPSON – Tantra: a arte do sexo que expande a mente. SAVORY, George Washington – O inferno na terra transformado em paraíso: os segrdos matrimoniais de um empreiteiro de Chicago. STOCKHAM, Bunker – Sexo sagrado. STOCKHAM, Bunker – Toktologia. 1883. TALSMA, W. R. – O renascimento dos clássicos. Instruções para a desmecanização da música. WEHMEYER, Grete – Prestíssimo: a redescoberta da lentidão na música.

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1 Commentarios:

Anonymous Anónimo disse...

Hoje somos tratados além de números, digo cifrões, como autênticas máquinas. Máquinas, claro. As máquinas cumprem e obedecem a ordens, não perguntam, não questionam, não promovem greves e só dão lucro porque estão sempre a trabalhar, sem parar, sem descansar, até arrebentarem e se reformarem antecipadamente por invalidez.
O aumento da produção e da velocidade de produção não nos deixa sair das actividades de rotina e, portanto, nunca se tem tempo para pensar a fundo nas coisas. Passamos a vida a resolver as pequenas dificuldades imediatas e circunstanciais, pontuais, sem pensar nos grandes problemas e nas soluções estruturais.
Vamos, descaradamente, respondendo à conjuntura (nacional, internacional)… Vamos na onda, sem uma bússola que nos oriente, sem um destino longínquo definido. Hoje, não passaríamos o Cabo do Bojador. Mudaríamos de rota consoante qualquer última notícia alarmante. Cada um, como máquina bem afinada, obedece às ordens, digo exigências, do seu patrão, seja ele marido, empresa, partido, presidente… eles como se diz. Obedecemos a eles!

segunda-feira, 03 novembro, 2008  

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