domingo, 20 de abril de 2008

Jornalismo (e) audiovisual III


Que imagem construiu o cinema do jornalista, através dos “newspaper films"? Diríamos que variada, nem sempre favorável aos homens da imprensa.

Texto Dina Cristo


O jornalista, enquanto personagem, constituiu desde sempre motivo de interesse para os realizadores de cinema. Dos primórdios da arte cinematográfica ao cinema actual, são inúmeros os filmes que têm como figura principal ou secundária o profissional de informação, bem como diversos foram e são os estilos e géneros que o abordaram.

Além da sua permanente actividade em busca da verdade, de estar por dentro dos factos passíveis de interesse, como são as acções de figuras públicas ou relacionadas com estruturas de poder, o jornalista tinha ainda uma dimensão humana. Tudo isto, aliado ao poder e importância da profissão na sociedade do séc.XX, corrobora na asserção de Howard Good: “A imprensa veste-se com uma aura de importância e algum mistério que lhe emprestam todos os requisitos dramáticos da arte popular”
[1].

Não é de menosprezar, contudo, o facto de, no início do cinema sonoro, uma quantidade apreciável de jornalistas tornar-se, com frequência, realizador e argumentista. Samuel Fuller foi um dos exemplos (ele que defendia que todo o jornalista é um realizador em potência). Mas a lista é extensa e fez com que muitos assuntos tratados nos jornais se transferissem para o cinema. Desta forma, além dos argumentos serem extraídos da vida real, alguns dos “newspaper films” tinham a vantagem de ter como realizadores pessoas que conheciam por dentro o meio jornalístico.
Imagem multifacetada
Desde “Power of the press”, realizado em 1909, que os filmes sobre jornalistas são espelhos do que se passa nos meios de comunicação: umas vezes mais sensacionalistas, outras extremamente eficazes na luta pela descoberta da verdade, com mais ou menos liberdade, com mais ou menos pressões. O cinema nunca foi parcial e deu sempre uma visão multifacetada do jornalista, com as suas grandezas e servidões.
Joaquim Vieira coloca assim a questão: «É o jornalista um idealista, defensor dos fracos e injustiçados, empenhado na descoberta da verdade por detrás das aparências, construtor de uma sociedade mais justa? Ou será antes um ser mesquinho, apenas interessado em vender papel que lhe dá sustento, preferindo uma mentira sensacional a uma realidade inócua, indiferente perante as desgraças alheias e as que ele próprio provoca? O cinema nunca quis optar exclusivamente por um destes modelos, e fez bem porque qualquer escolha seria redutora e mentirosa»
[2].
Na mesma linha de pensamento, Piero Zanotto refere as duas dimensões que o cinema deu do jornalista. Uma de natureza mais realista, mas com uma abordagem severa, e outra ligada à “sophisticated comedy”, que apresenta o jornalista de uma maneira brilhante e simpática, mas distante da realidade quotidiana
[3].
De herói a corrupto, de manipulador a manipulado, ou de oportunista a amante da verdade – afirma Joaquim Vieira - os retratos que se têm filmado do jornalista são diversos: “Aventureiro, defensor dos fracos, íntimo dos poderosos, solitário, trabalhador sem horário, nómada por dever de ofício, detentor de segredos, pessimista quanto à redenção da humanidade, companheiro da noite (…)”
[4].
São as várias faces de um personagem cujas características se confundiram com as de outros, alguns deles heróis do cinema clássico. “Como o polícia (…) o repórter procura descobrir uma verdade perdida numa complexa trama de mentiras e ambiguidades. Como o “cowboy”, rege-se por um código pessoal, que tem por base uma ideia de justiça a que a Lei, com frequência, não pode responder, por pressões políticas e económicas”
[5].
Há ainda outro personagem com o qual o jornalista apresenta algumas afinidades: “Tal como o gangster, o homem dos jornais foi definido no ecrã como sendo um indivíduo grosseiro e sem escrúpulos”
[6]. Ambos são criaturas da cidade, que agarram as oportunidades para ir em frente, mais dados à acção do que à ideologia, lutam contra as normas da sociedade e, talvez por isso, encarnam o mito da autoconfiança.

Prós e contras

Existem retratos ambíguos, difíceis de colocar numa determinada categoria. São vários os casos em que, apesar da integridade do jornalista, há factores externos, como por exemplo uma orientação desviada por parte do director e/ou chefe de redacção, ou o carácter sensacionalista do jornal, que impedem um trabalho coerente com a forma como o jornalista encara a sua actividade.
O filme “The mean season” é um caso típico desta categoria. Como veremos mais tarde, na realidade quotidiana o jornalista incorre numa distorção da informação devido, em grande parte, às formas estabelecidas de produção jornalística – uma situação verdadeira à qual o cinema não foi indiferente. Como refere Howard Good, “(…) o editor tem sido uma presença obscura e centralizadora, seduzindo ou degradando o repórter, um inocente comparado com ele”
[7].

Há uma filmografia que coloca em evidência a coragem e determinação do jornalista em transmitir a verdade. Numa conduta profissional próxima da exemplar, o profissional denuncia e desmascara situações comprometedoras, não cedendo a pressões nem a chantagens. “The man who shot Liberty Valence” – onde o jornalista enfrenta todos os riscos, inclusive o da morte – é um exemplo desta “categoria”.
A violação das mais elementares regras éticas e deontológicas é uma das principais características dos filmes anti-imprensa, onde logo à partida se incluem filmes como “The big carnival” e “Five star final”. É a imagem do jornalista sem escrúpulos que aposta no vale tudo para ganhar o jogo da concorrência, sem quaisquer preocupações pela garantia de verdade nem respeito pelo objecto da sua reportagem. O mais importante é ele próprio, ele e o seu “caxa”, tudo o mais, como o interesse público, é ultrapassado.
Estas películas mostraram à sociedade a manipulação e corrupção, os vícios e as fraquezas dos homens dos jornais. Falando da face mais obscura da imagem do jornalista nos filmes, Howard Good escreve: “Hollywood tem-nos dado repórteres corrompidos pelo cinismo, ambição e bebida, sem respeito para com a vida e a reputação das pessoas, e sempre relutantes em deixar a verdade tomar o lugar de uma boa história”[8].
Numa breve incursão pela presença do jornalista, enquanto personagem no cinema, pode proceder-se a uma investigação por géneros ou através de épocas. Howard Good envereda pela primeira, dividindo a sua análise em correspondente de guerra (com uma fase bem marcada pós-Vietname), jornalista de investigação (subdividido em vítima, comediante e arrependido) e sensacionalista. Manuel Cintra Ferreira opta pela segunda fórmula, apresentando três fases distintas: os anos 30, 50 e pós-“All the president`s men”. Décadas que desenvolveremos no próximo artigo.

[1] GOOD, Howard – The image of journalists in contemporary films, p.8. [2] VIEIRA, Joaquim – Os bons, os maus e os vilões, p.36-R [3] ZANOTTO, Piero – O escândalo jornalístico e o mundo do cinema, p.21. [4] VIEIRA, Joaquim – Mr. Gutenberg goês to Hollywood, p.21. [5] FERREIRA, Manuel Cintra – O jornalista como personagem, p.44. [6] GOOD, Howard – Op.Cit., p.8. [7] Idem, ibidem, p. 72. [8] Idem, ibidem, p.9

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