Jornalismo (e) audiovisual IV

Após uma abordagem geral da imagem que o cinema projectou do jornalista, apresentamos hoje alguns dos exemplos mais ilustrativos de “newspaper films” das décadas de 30, 40 e 50.
Texto Dina Cristo
Texto Dina Cristo
Umas vezes fria e distante com um ar crítico, outras amável e até condescendente, a imagem que o cinema projectou dos jornalistas resulta do modo como estes foram considerados pelos próprios cineastas, público e políticos, bem como do contexto social e económico de cada época: a grande depressão na presidência de Hoover, o programa de New Deal na de Roosevelt, a guerra fria nos anos de Truman, a caça às bruxas com MacArthur (que também afectou Hollywood), o assassinato de Kennedy, a guerra do Vietname, os casos Watergate e Gary Hart.
Mais feroz na década de 30/40 e 80 (a sua dependência em relação ao poder e o pouco respeito pela verdade) devido aos excessos dos jornalistas na vida privada, o cinema fez destes, contudo, alguns retratos elogiosos, dos quais o mais fiel representante será “All the president`s men”.
Primeiros passos
Desde o início da sétima arte, quando esta dava ainda os seus primeiros passos, que o jornalista foi ‘agarrado’ para personagem. Em 1903, “Delivering Newspapers” mostra um grupo de jornalistas aguardando a chegada de um camião com a última edição de um jornal. Na primeira década do século XX, eram habituais temas como a corrida ao furo jornalístico e a cobertura de casos relacionados com instituições de poder.
A década de 20 fica marcada pelo primeiro dos vários filmes de Capra que têm por tema o jornalismo. “The power of the press”, realizado em 1928, no final do cinema mudo, dá-nos uma visão clássica do personagem como herói de aventuras – no caso, um jovem repórter que se lança em busca de criminosos.
É durante a segunda década que são reconhecidas as possibilidades de história que a corrida contra a concorrência e o permanente interesse pelos factos oferece. Os filmes de jornalistas tornam-se um género apelativo; qualquer repórter, nomeadamente no seu carácter flexível, pode ser figura central de um filme e constituir o seu principal assunto. O estilo, esse, era neutro. Como escreveu Deac Rossel, o cinema dos anos 20 dá-nos a imagem de um jornalista íntegro, há uma certa ingenuidade ou até má vontade em conhecer os abusos do privilégio redactorial – exactamente o que vem a suceder nos anos seguintes.
Anos 30
O cinema da terceira década prima pelo social, um cinema de denúncia dos preconceitos do “yellow journalism” que então se praticava.
Segundo Howard Good, a década de 30 foi o período dos mais memoráveis “newspaper films”. “The front page” e “The five star final” traçaram dos profissionais da imprensa uma das visões mais cruéis. A esta perspectiva não será alheio o facto de ambos terem por base peças teatrais cujos autores haviam sido jornalistas. Hecht tomou como modelo inspirador para o jornalista Walter Burns, o seu antigo director de jornal Walter Howie, para quem recusou trabalhar uma vez. Louis Weitzenkorn baseia, de igual modo, a peça “The star final” na sua própria experiência no “York Graphic”.
A imagem mais clássica do jornalismo na ficção, uma das mais cáusticas que até hoje o cinema nos deu, uma das mais famosas e recordadas de todos os que retrataram o jornalista, “The front page”, é também um modelo dos “anti-press film”. Repórteres que não sabem o que se passa, inventam notícias e agem como crianças, personagens que são, na opinião de Joaquim Vieira, “(…) funcionários acomodados em troca de pequenos favores, ignorantes incapazes de um esforço intelectual, tarimbeiros prontos a distorcer a objectividade para rastejar a concorrência (…)”
[1].
Um filme em que, segundo João Bénard da Costa “(…) avulta o tratamento realista dado às telefonistas e às suas vozes perfazendo o “realismo social” tão ao gosto de Zanuck e da Warner de então”
[2].
“The five star final” transmite-nos uma mensagem de desconfiança nas altas esferas do jornalismo, obcecadas pelas tiragens do jornal e pouco profissionais na sua irresponsabilidade perante o público. É a denúncia de uma imprensa que desenterra um caso com 20 anos, no intuito de aumentar as vendas, provocando dois suicídios de pessoas cuja vida já estava naturalmente refeita. Implacável com os homens da imprensa, “The five star final” «retrata jornalistas viciosos e avarentos – como gangsters armados de máquinas de escrever»
[3].
Do mesmo ano, e sob a influência do “The front page”, Frank Capra realiza “Platinum blonde” – um filme onde ressalta a tentativa de moralização da sociedade e uma certa acusação da vida dos poderosos. Repleto de energia e vitalidade, Stew Smith, o jornalista pertencente à classe média, contrasta com o retrato snobe e caricato da família Schuyler, à qual chega a pertencer, mas que o vazio leva-o a abandoná-la. Na verdade, Stew, enquanto casado com a herdeira, nunca se rende às mordomias, escreve energicamente a sua história e mantém-se fiel às suas amizades.
É o primeiro filme de Capra a tratar da crise social e da depressão. Para a história ficam também os diálogos de Robert Riskin – um dos vários dramaturgos e jornalistas que Hollywood foi buscar à Broadway no início do sonoro.
“It happened onde night” é uma história em que o jornalista, “o melhor repórter da cidade”, se envolve com o objecto da sua reportagem, a desaparecida Andrews, e a protege (no início com o objectivo de realizar o grande furo jornalístico). Na redacção, a pressão, o stress e a rapidez com que as coisas se passam são uma boa aula de jornalismo.
“They won`t forget”, na cumplicidade entre imprensa/poder político e denúncia do racismo, é um dos filmes mais característicos do cinema social americano dos anos 30. Brock, o jornalista, e Griffin, o promotor público, exploram o clima de histeria (provocado pelo linchamento que se seguiu ao assassinato de uma jovem na região sul) de forma a lançar a candidatura do segundo a senador. É um retrato da manipulação da opinião pública e de violação do direito à vida privada.
O filme inspira-se num caso de discriminação racial ocorrido em 1913, relatado do livro “Death in the deep south”, de Ward Greene, e inscreve-se também dentro do cinema social da década de 30, de denúncia dos preconceitos e do jornalismo sensacionalista.
A imprensa, em “Mr. Deed goes to Washington”, de um homem simples, honesto, bom e solidário transmite a ideia de que se trata de um “cinderela man”, estúpido, anti-social e demente. Esta última acusação leva-o a tribunal, onde é julgado por tocar trombone, distribuir a fortuna que tivera ganho pelos pobres e dar “donuts” a cavalos. Exagerou-se, reconhece mais tarde a jornalista: “era tudo distorcido para parecer imbecil”.
Em “Peço a palavra” também marca presença a manipulação da opinião pública através do controlo de uma série de jornais que distorciam por completo a informação. Neste caso, os corruptos acabam por ceder à extrema perseverança de um homem que toma a palavra até não aguentar mais e cair estarrecido no chão.
“Each dawn I die” (de 1939) mostra, como nenhum outro, os riscos da profissão. Um jornalista é encerrado numa penitenciária por ter descoberto o carácter corrupto de um candidato ao governador. Profissional em todas as circunstâncias, Cagney, mesmo preso, consegue conter-se, possibilitar a evasão e trazer o “scoop” para o seu jornal.
Uma película que é uma mistura do filme de “gangsters” com o de prisões e de denúncia social, que aparece numa altura em que “(…) a economia já vê a saída do túnel da crise (embora outra se avizinhe)”
[4].
Anos 40
“Citizen Kane” e a segunda versão de “The front page” marcam a quarta década, preenchida com uma filmografia profusa.
Em 1940, Howard Hawks substitui o jornalista por uma mulher, imprime maior velocidade aos diálogos e faz “His girl Friday” uma das mais fabulosas comédias de toda a história do cinema. Caracterizada como muito humana no “Monthly Film Bulletim”, Hildy, a jornalista, é, no olhar crítico de João Bénard da Costa, um “animal perigoso” decidido a tirar da presa (o condenado à cadeira eléctrica) todos os proventos”
[5].
Conhecido pela revolução que provocou na linguagem cinematográfica, sobejamente discutido, e apreciado, “Citizen Kane” é provavelmente o filme de jornalistas mais famoso e o que melhor terá colocado a noção de manipulação da informação. Charles Foster Kane – um magnata, por puro capricho e depois de ter mandado construir um teatro, pressiona a sua mulher a cantar ópera, quando todos eram unânimes em relação à sua falta de dotes vocais. Kane não hesita um minuto em utilizar o seu monopólio de comunicação social para transformar as críticas iniciais – que diagnosticavam “incompetente amadora” – em grandes sucessos.
«A polémica nasceu do facto de ter constado que o “Cidadão Kane” era um retrato, em corpo inteiro, do famoso William Randoph Hearst, o “dono” de metade dos jornais da América. Welles defendeu-se: “O filme não se baseia nem na vida de Mr. Hearst, nem na vida de qualquer outra pessoa. No entanto, se Mr. Hearst e outros “tubarões” não tivessem vivido durante o período em causa CITIZEN KANE nunca podia ter sido feito”
[6].
A confirmação do correspondente de guerra como herói acontece com “Foreign correspondent” – um filme que é também uma história de espionagem durante a II Guerra Mundial. Jonnie Jones, um repórter de crimes e assassinatos, vai para a Europa, sob pseudónimo. No final, reporta, com vivacidade e sob a escuridão da rádio londrina, os factos mais importantes e dos quais foi testemunha: o assassinato do sósia, a prisão de Van Meer e o ataque aéreo ao qual sobreviveu.
O filme encontra-se entre as películas de “(…) propaganda antinazi que, por esses anos, com algumas precauções (a América ainda não tinha entrado na guerra) Hollywood fazia”
[7]. Diz-nos ainda João Bénard da Costa que a produção, efectuada no início da guerra, implicou a deslocação de duas equipas de filmagem à Europa para rodar exteriores na Holanda e na Inglaterra.
Em “Arise my love”, é uma jornalista, também correspondente de guerra, que sobrevive ao afundamento de um transatlântico. Testemunha do ataque alemão e perseguição aérea, ela está numa posição estratégica para reportar os acontecimentos. Nash, sempre determinada em nunca largar a “typewriter”, hesita na escrita, devido à paixão.
O pano de fundo é a guerra civil de Espanha: «(…) estamos em Junho de 1939, na consolidação da vitória franquista e ao tempo dos “ajustes de contas” onde um pelotão procede a um fuzilamento»
[8], eis a cena inicial do filme narrada por Cintra Ferreira.
Reportagens de um correspondente de guerra, mas desta vez real – o lendário Ernie Pyle, cujas reportagens eram sobre as condições de vida dos soldados, mais do que as chefias políticas e militares – inspiraram “The story of G.I.Joe”, um filme próximo do documentário captado durante as operações. Por um lado, as imagens são dadas ainda durante o conflito, sem ser uma retrospectiva e sem qualquer romantismo, por outro lado, os figurantes eram homens do Quinto Exército: “O Departamento de Guerra cedeu 150 veteranos da campanha de Itália para o filme, antes de embarcarem para o Pacífico. Quantos deles não terão lá encontrado destino semelhante ao do filme em que participaram? (…)”
[9], questiona Cintra Ferreira.
“A dispatch from Reuter`s”, também sobre um jornalista com existência concreta (o fundador da agência de notícias e uma das primeiras personalidades dedicadas à causa informativa), enceta a fórmula da realização de biografias. Da infância ao trabalho nos correios até à sua primeira agência em 1849, o filme sintetiza em poucos minutos uma longa investigação sobre a vida do homem que, na Europa, foi o primeiro a noticiar o assassinato do presidente Lincoln.
Com toda a verdade nas mãos, o jornalista tem por dever transmiti-la, mas será que o poder e crise social o irão permitir? É esta a questão que fica no ar em “The keeper of the flame”; nesta película o repórter investiga a vida de um ídolo, descobrindo que não passava de um líder fascista disfarçado. “Houve ainda quem fosse mais longe e considerasse que se podia estabelecer um paralelo entre Robert V. Forrest, o herói morto, e o general MacArthur, então “alarmantemente popular”
[10].
Procurar a verdade além de divulgar notícias é a principal mensagem que nos deixa “Call northside 777”, um filme clássico de investigação jornalística, que é ao mesmo tempo uma síntese da imagem da tradição liberal em que o jornalista luta contra a injustiça e a corrupção. Graças ao carácter exaustivo da reportagem, o jornalista consegue, ao provar a inocência de um homem, libertá-lo da prisão onde permanecia há onze anos.
Ao apresentar uma investigação profunda sobre o sentimento anti-semita no “Deep South” americano, “Gentleman`s agreement” faz uma antecipação do novo jornalismo. Phil Green, o repórter, escurece a sua pele de forma a ser identificado como judeu e parte em viagem, onde é humilhado e alvo de indignidades e insultos. Na volta, está devidamente capacitado para explicar que significado tem a palavra ‘intolerância’ e ‘discriminação’.
O filme, ao atacar frontalmente a questão do anti-semitismo na América, originou que “(…) muitos dos participantes nesta obra (Kazan, Hart, Garfield, Revere) foram “blacklisted” por McCarthy e tiveram as carreiras arruinadas ou ameaçadas (…)”
[11].
Em “It happened tomorrow”, o jornalista tem acesso hoje ao que vai acontecer amanhã. A sua fonte de informação, um velho arquivista, concede-lhe o jornal que vai sair nas bancas no dia seguinte. Incrédulo de início, o jornalista torna-se uma vedeta do “soop”, pois apenas tem de se antecipar aos factos e comprovar com os próprios olhos.
Grandview, uma cidade representativa da média comportamental dos cidadãos americanos, é alvo da cobiça de um jornalista, Rip Smith, que ali projecta fazer fortuna. Este “mathematical miracle” apresentado em “Magic town” vai adquirir interesse nacional e transformar-se num mar de gente.
No último ano da década, “All the king`s men” expõe uma imprensa que se deixa arrastar pelas aparências, perdendo a objectividade. Barden, o jornalista a quem coube a cobertura das eleições, torna-se demasiado próximo de um candidato. Stark, ao contrário do seu lema (honestidade, integridade e verdade), revela-se um político desonesto, corrupto e sem escrúpulos.
A personagem principal é inspirada na vida de Huey Long, governador do estado da Loisiana, que ganhou fama nacional pela sua demagogia. Stark – escreve João Bénard – é a encarnação duma certa imagem da América no fim dos “fourthies”, quando a propaganda contrária começou a pôr em causa o reino de bons sentimentos e boas vontades que fora a imagem do país projectada entre 1935-1945. «(…) em anos Truman, de “desrroseveltianização”, podia convir mostrar que nem tudo nesses anos fora tão idílico como se proclamava»
[12].
Anos 50
“Raras vezes o cinema encontrou olhar tão desapiedado e tão abissal, raras vezes a humanidade (…) foi olhada de forma tão rasteira e tão esmagadora”
[13]. São as palavras de João Bénard da Costa sobre o filme que, sem dúvida, marca os anos 50: “The big carnival” – uma das visões mais cruéis do profissional de informação, veiculando a ideia de que este vai a todo lado e faz qualquer coisa por uma história.
O jornalista, ao ver num “scoop” a oportunidade de fazer reviver uma carreira em curva descendente, oculta aos bombeiros o acesso directo a um homem soterrado numa fenda de uma caverna. O objectivo, ao prolongar deliberadamente o trabalho de salvamento, é aumentar o número de dias durante os quais podia reportar, em exclusivo, o estado da vítima que acaba por falecer.
Numa visão diametralmente oposta, “Deadline USA” leva a acreditar que o jornalismo é a melhor profissão do mundo, com Ed Hutcheson – o responsável pelo “The Day” – a lutar por uma imprensa livre. Naquela casa, preserva-se até à última edição o jornalismo de qualidade que, após dados comprovados por uma investigação, publica o caso de corrupção política na cidade. É uma história «(…) baseada no caso concreto da morte do jornal “New York World” exactamente pelos mesmos motivos que afligem o “The Day” do filme»
[14], ou seja, escassez de meios financeiros e uma crescente importância do papel da televisão.
Em “La dolce vita” sobressai, para além do jornalista, que participa mais na sociedade do que a divulga, o conjunto de repórteres fotográficos que se acumulam, atropelam e correm atrás das vedetas e protagonistas dos acontecimentos. Estão em todo o instante, em qualquer sítio, prontos a disparar a objectiva, das mais diversas formas e pontos de vista. Para além de incitarem à pancadaria (prato forte para fotos escaldantes), não hesitam em encenar: colocam os fotografados nas posições mais ridículas, pedem-lhes para voltar e repetir passos.
Há depois um conjunto de filmes: “Park Row”, um hino à liberdade de imprensa, mostra um pequeno jornal que defende, num meio dominado pelo sensacionalismo, princípios deontológicos; “Beyond a reasonable doubt” , que nos dá matéria para uma reflexão sobre a realidade e a aparência; “While the city sleeps”, a luta pelo poder num jornal; “Je plaide non coupable”, em que um jornalista faz a sua investigação inocentando uma jovem acusada de assassinato ou “The lawless”, onde a redacção de um jornal é completamente destruída e pilhada após a defesa nas suas páginas de um jovem perseguido.
[1] VIEIRA, Joaquim – Mr. Gutemberg goês to Hollywood, p.24.
[2] COSTA, João Bénerd – The front page/1974.
[3] GOOD, Howard, Op. Cit, p.70.
[4] FERREIRA, Manuel Cintra – Each down I die/1939, p.1.
[5] COSTA, João Bénard - His girl Friday/1940, p.2.
[6] Idem – Citizen Kane/1941, p.2
[7] Idem - Foreign correspondent/1940.
[8] FERREIRA, Manuel Cintra – Arise my love/1940, p.2
[9] Idem. - The story of G.I.Joe/1945, p.2.
[10] COSTA, João Bénard – Keeper of the flame/1942.
[11] Idem - Gentleman`s agreement/1947, p.2.
[12] Idem – All the King`s men, 1949.
[13] Idem – The big carnival/1951.
[14] ANDRADE, José Navarro – Deadline USA/1952.
Etiquetas: Dina Cristo, Ensaio, Jornalismo (e) audiovisual IV
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