quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

A sério?

Perto do Dia Internacional do Riso, e depois do 10º "Porto Cartoon", retomamos o humor nos jornais. Agora com uma associação (FECO), eis algum do contributo da caricatura para o relato (exagerado) da realidade portuguesa.

Texto Dina Cristo imagem José Oliveira

Tal como a própria imprensa, a caricatura tem raízes anteriores, mas é no séc. XIX que podemos afirmar que é fortemente cultivada e no séc.XX que se desenvolve.
A caricatura, antes identificada com a macrocelafia distorcida, hoje apelidada de “cartoon”, é uma representação da realidade com intenção humorística, de provocar o riso, de mostrar o ridículo e assim implicar a crítica. Para fazer rir, ver e pensar: «Primeiro deformadora como uma bola panorâmica, depois fiel como um espelho, e, por último, como um reflexo (…). Primeiro fez rir, depois fez ver e agora faz pensar», como afirma Robert de Sizeranne, citado por Osvaldo de Sousa.
É uma forma, portanto, de exposição do ridículo, dos vícios, dos defeitos, do non-sense, e de crítica, de levar a pensar, a agir, a tomar partido; é uma via de oposição, de sub-cultura, uma forma de resistência; uma maneira de dizer “O Rei vai nu”; uma forma de ultrapassar a censura, política e social; uma maneira tresloucada de denunciar a loucura colectiva, numa procura de diálogo com a sociedade; um meio de dinamizar o pensamento. É o que permite diagnosticar a doença e iniciar o tratamento, através da utilização do riso como terapia. Ou como esclarecia Hipólito Collomb: «Qual é o primordial objecto da caricatura? Corrigir, reformar».
[1]
Origem

Para além de tudo o que se possa dizer da sua presença desde a mais tenra idade da história da Comunicação (Social)
[2], ela inicia-se no séc.XVI através de panfletos e folhas volantes que despertavam os “espíritos subjugados quanto ao abuso do poder” e desenvolve-se com o liberalismo, já que para a Igreja o riso era condenável.
Durante os anos 20, do séc.XIX temos jornais que vão albergar os caricaturistas modernistas, entre os de primeira geração (anos 10) e segunda (anos 30).
A gravura vai aparecendo nos anos 40/50 do séc. XIX, numa oposição a todos os governantes, e tem, nomeadamente no âmbito do cabralismo (cuja representação simbólica era a cabra), uma índole mais violenta, de sátira. Surgem os primeiros jornais com ilustrações satíricas – caso de “O Patriota”
[3] - e em anonimato; Cecília foi, assim, o primeiro grande caricaturista português.
No final dos anos 50 é introduzido o realismo pictórico por Manuel Maria Bordalo Pinheiro, Manuel Macedo e Nogueira da Silva, que dão um cunho pitoresco, mais ameno, com humor e ironia; fazem a ponte entre a crítica social e a estética. Enfim, passa-se da violência caricatural anti-absolutista ao humor com amabilidade.
Nos anos 70, Raphael Bordalo Pinheiro apresenta, com grande visão crítica, o Zé Povinho, que aparece na “Lanterna Mágica”, criada em 1875, e faz escola
[4] em Portugal. Para ele, «o caricaturista deve ser um observador que observa o mundo sempre de uma forma crítica, sendo oposição aos governos e oposição às oposições!»[5].
Com o desenvolvimento técnico aplicado à imprensa, no séc. XIX, por um lado, e com os desejos da burguesia de ser retratada, por outro, a gravura vai ter grande desenvolvimento. Entramos na era da imprensa industrial e da ilustração dos textos.
É todo um desenvolvimento técnico, através da fotogravura (1880), offset (1884), da fotografia, da litografia
[6] e da zincogravura, que vêm impulsionar a ilustração, permitindo maior velocidade e qualidade da sua re-produção. Há quem defenda que esta foi uma forma de manter o analfabetismo e o poder afastado do povo[7].
Se a caricatura nasce com o liberalismo – torna-se importante na denúncia da própria opressão anterior à implantação da República - desenvolve-se com o republicanismo. Depois de 1910 tem especial importância o denominado Grupo de Coimbra, onde raiam a abstracção e sempre à volta dos jornais. Da primeira República é igualmente marcante o Grupo dos Humoristas
[8], criado em 1911, sendo um ano depois realizado o primeiro salão dos humoristas de Lisboa, em 1912.
No dia 13 de Maio de 1926 aparece o jornal “Sempre Fixe”
[9], que se revelou o mais importante jornal humorístico português – um espelho da vida do Estado Novo - apesar de não ter sido o mais longínquo (a sua existência foi de 1926 a 1961), já que “Os Ridículos” chegaram antes, em 1895, e partiram depois, em 1975.
Mas houve ainda outros jornais com certa importância: no séc.XIX, “O Sorvete”, de Sebastião Sanhudo (durou 20 anos), “Até Maria”, de Raphael Bordalo Pinheiro (nove anos) e, no séc.XX, o suplemento humorístico de “O Século”, criado em 1897 tendo-se prolongado até 1920. A nível internacional, é criado, em 1922, o Prémio Pulitzer de “cartoonismo”.
Segundo Fernando Dacosta, «os portugueses riam no cinema, na rádio, na revista, nos cafés, nas marchas, enquanto a Europa, o lá fora, se decompunha e recompunha em cascatas de hecatombe»
[10]. Em 1946, nasce o jornal “A Bomba” que vai dar ensejo à criação das “Emissões Bomba”, da Rádio Peninsular que, por seu lado, levam à concepção dos “Parodiantes de Lisboa”, que criam, ainda, o jornal “Parada da Paródia”.
Em Portugal, no entanto, com os tempos do Estado Novo, a liberdade vai sendo cada vez mais condicionada – cai-se no nacionalismo humorístico. Nos anos 40, há já dificuldade em desenvolver temas políticos e a partir de meados dos anos 50 e nos anos 60 deixa mesmo de haver caricatura política. Nesta época os sorrisos silenciam-se ou escondem-se; sobrevive o (sor)riso do povo, através da crítica social; subsiste o humor desportivo ou de personalidades e entra-se no anedotário brejeiro, até mesmo pornográfico ou de taberna.
João Abel Manta lidera a passagem da ditadura para a democracia. De início, dá-se uma explosão satírica, com uma proliferação de títulos, mas depois o humor entra em crise. O grande êxito é a “Gaiola Aberta”, com laivos de pornografia. Um dos grandes nomes do pós-25 de Abril é António.

Género jornalístico

Como diz Osvaldo de Sousa, o investigador da caricatura em Portugal, ela caricaturiza os horrores da vida, satiriza os costumes e comenta a política relativamente ao que mais amamos ou tememos ou em relação àqueles que saem da mediania. Pode ir do mais erudito ao mais grosseiro. Foi seu suporte principal a imprensa, ao ponto de hoje se reconhecer como um género jornalístico.
Como afirma Luís Humberto Marques, director do Museu de Imprensa, promotor do “Porto Cartoon World Festival”, sempre houve publicações dedicadas à caricatura, que é uma forma de crónica social e política; aos poucos deixou de ser uma mera ilustração para passar a existir por si própria, sendo hoje imprescindível na imprensa. O humor, afirma, «é a inteligência do saber olharmo-nos no espelho, de olhar a vida e o mundo que nos rodeia com tolerância e sentido crítico. O humor é a réstia do espírito de Democracia que o tempo não matou»[11].

Bibliografia SOUSA, Osvaldo – A caricatura política em Portugal. Ed. Salão Nacional de Caricatura. 1991. SOUSA, Osvaldo – Do humor da caricatura. Ed. Salão Nacional da Caricatura. 1988. SOUSA, Osvaldo – 150 anos da caricatura em Portugal. Humorgrafe/Associação Museu de Imprensa. 1997. TREVIM – Cooperativa Editora e de Promoção Cultural – 10ª Festa da caricatura; 2ª Internacional – Lousã. Humorgrafe. 2003. DACOSTA, Fernando – Máscaras de Salazar. Ed. Notícias. 6ª ed. 1998.p.134-136. “Bronkit”, nº 27-37 in “Trevim”.
[1] SOUSA, Osvaldo – 150 anos da caricatura em Portugal. Humorgrafe/Associação Museu de Imprensa. 1997. [2] Como o bobo da corte que denuncia os problemas sociais. [3] 1847 – trata-se da primeira publicação que teve um suplemento satírico, com desenhos de autores nacionais. [4] Entretanto, Celso Hermínio e Cunha Leal trouxeram a caricatura panfletária. [5] Cf. SOUSA, Osvaldo – 150 anos da caricatura em Portugal. Humorgrafe/Associação Museu de Imprensa. 1997. [6] Que facilita o trabalho do gravador e ao mesmo tempo aumenta as possibilidades de tiragens [7] Conferir com o caso da comunicação visual actual, especificamente a televisão [8] Não eliminam o naturalismo e são ultrapassados pelo futurismo. Pertencia Stuart Carvalhais. [9] De Pedro Bordalo Pinheiro, um jornalista e homem de humor (sem parentesco com o grande caricaturista português, parece) e Francisco Valença [10] DACOSTA, Fernando – Máscaras de Salazar. Ed. Notícias. 6ª ed. 1998.p.134. [11] SOUSA, Osvaldo – 150 anos da caricatura em Portugal. Humorgrafe/Associação Museu de Imprensa. 1997, p.6.

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