No calor do relato

Três anos depois da sua morte, e num mês em que completaria 60 de aniversário, evocamos o rei da rádio, a voz que emocionava Portugal. Sobretudo relator, mas também animador, como no programa da Rádio Comercial “No calor da noite”.
Texto Dina Cristo
«O desaparecimento das palavras de Jorge Perestrelo das ondas do éter é uma dor na alma de Portugal. Poucos deram tanta cor na rádio à vivência mundana da vida. Destacou-se no desporto. Mais valia ter a televisão sem som e ficar a ouvi-lo (…) Com o sangue de África à flor da pele. Aprendemos a vibrar com o desporto com este senhor da rádio. Podia ser polémico. Ter um mundo próprio. Gostar de muamba e feijão com óleo de palma. Mas só quem nunca comeu o milho de Angola pode duvidar do seu gosto», redigiu Filipe Rodrigues da Silva.
Filipe Moura sublinhou: «Ninguém, mas ninguém, se lhe equiparava. Os momentos em que começava a mandar vir com os jogadores eram carismáticos, verdadeira transmutação num personagem colectivo por ele assumido no mais genuíno sentimento. Era sanguíneo, sempre atento aos "passarinhos", recordando as moambas, saudando a terra quente de África, celebrando os seus amigos. Era excessivo; logo, pouco português. Uma benesse».
Carreira
Nascido em terras de Angola, onde se iniciou na rádio - Rádio Clube (RC) do Lobito, sua terra natal, depois mais tarde com passagem pelo RC do Mochico e Rádio Comercial Sá da Bandeira – de lá trouxe uma cultura peculiar que não abandonou em Portugal. Igual a si próprio, fiel a si mesmo, perseguiu em ser como era, mesmo em ambiente mais frio e mental. «Com um estilo espontâneo, temperado pelas influências africana (Angola) e brasileira, sempre com o “coração ao pé da boca”, muitas vezes polémico, Perestrelo trouxe até nós, via rádio, ao longo de cerca de 30 anos, incontáveis momentos de esfusiante alegria, intensas e vibrantes emoções» .
Em Portugal trabalhou no Rádio Clube Português, na Rádio Comercial e esteve desde os primeiros momentos nos projectos de rádio – TSF – e televisão – SIC. «Tu nunca cabias em categorias. Ainda na quinta-feira falámos nisso, pela milésima vez. Sempre achaste piada à diferença. Nunca quiseste ser um tipo fácil. Partes depois dos repetidos «eu te amo Sporting» que arrepiam. Quando era a sério, Jorge, quando era preciso dar tudo, tu eras o melhor. O mais forte, o mais ousado. De ti vou guardar a irreverência perante os que se acham poderosos», escreveu Luís Sobral.
Emoção contagiante
Nas reacções à sua morte (há três anos) colegas e ouvintes recuperaram a sua personalidade: irreverente, exuberante, extremado, provocante, perturbador, extrovertido, eloquente, entusiasmado, enérgico, vibrante, alegre, criativo, empolgante, diferente, singular, talentoso, dedicado, frontal, autêntico. Traços de um homem que se expressam na sua actividade (profissional), com reações contra ou a favor, mas raramente de forma indiferente: «Devo confessar que não [o] suportava. [Ele] era adorado, venerado e idolatrado cá em casa. Os relatos de bola na rádio passaram, coisa inaudita, a ser ouvidos em altos berros por causa dele. O tom stressante punha-me os pêlos do coração em pé, as tais frases da rapaqueca arrepiavam-me o fígado», anotou um cibernauta.
A princípio contestado, criticado e mais tarde popular entre os ouvintes e copiado entre alguns colegas. Marcou uma época, como afirmou António Macedo e deixou discípulos, como lembrou Filipe Rodrigues da Silva. A sua voz silenciou-se mas na memória de muito público permanecem expressões peculiares como “ripa na rapaqueca”, “qu´é qu`é isso, ó meu?”, “essa até eu com a minha barriguinha marcava”, “é disto que o meu povo gosta”, “nem que a vaca tussa”. Agradecia aos ouvintes pelo privilégio de o sintonizarem e gritava “aguenta coração”.
De tanta emoção até ao último jogo, o coração não aguentou mesmo e parou. De repente. Nas mãos de um médico amigo no Hospital da Cruz Vermelha. Os seus últimos relatos e os derradeiros golos que descreveu são hoje arrepiantes, como sublinharam vários ouvintes. «Recordo o seu grito no relato da TSF, vulcão rouco de alegria e choro explodindo quando o Ricardo marcou o penalti aos ingleses: “Obrigado Portugal, obrigado meu Portugal, obrigado, obrigado, obrigado”, sempre a repetir estas palavras, “obrigado, obrigado, obrigado”, até perder a voz. Fiquei arrepiado até à raiz dos cabelos. Por pouco não chorava também».
Jorge Perestrelo que disse em tempos, que “se tivesse uma namorada oferecia-lhe este golo” e que um repórter que faz a cobertura de um funeral teria de chorar, foi cremado no cemitério dos Olivais na mesma altura em que a TSF anunciava um livro de Fernando Correia. Deixou a mulher e dois filhos, Luena e Pedro. Deixou-nos a todos, mas “a sua voz não se calará nas nossas memórias”. Como alguém disse, este monstro da rádio coloriu-a com palavras quentes do sul e nela deixou pegadas de liberdade.
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