quarta-feira, 7 de maio de 2008

No calor do relato


Três anos depois da sua morte, e num mês em que completaria 60 de aniversário, evocamos o rei da rádio, a voz que emocionava Portugal. Sobretudo relator, mas também animador, como no programa da Rádio Comercial “No calor da noite”.

Texto Dina Cristo

«Havia três modos possíveis de se ver futebol: no estádio, na TV ou ouvindo o Perestrelo». Angolano, onde viveu até aos 27 anos, com ida ao Brasil, trouxe das terras quentes uma forma diferente de ser, estar, comunicar e relatar o futebol. Amava o que fazia e a sua entrega à profissão era de corpo e alma. Na voz veiculava o que o seu coração sentia.
«O desaparecimento das palavras de Jorge Perestrelo das ondas do éter é uma dor na alma de Portugal. Poucos deram tanta cor na rádio à vivência mundana da vida. Destacou-se no desporto. Mais valia ter a televisão sem som e ficar a ouvi-lo (…) Com o sangue de África à flor da pele. Aprendemos a vibrar com o desporto com este senhor da rádio. Podia ser polémico. Ter um mundo próprio. Gostar de muamba e feijão com óleo de palma. Mas só quem nunca comeu o milho de Angola pode duvidar do seu gosto», redigiu Filipe Rodrigues da Silva.
Filipe Moura sublinhou: «Ninguém, mas ninguém, se lhe equiparava. Os momentos em que começava a mandar vir com os jogadores eram carismáticos, verdadeira transmutação num personagem colectivo por ele assumido no mais genuíno sentimento. Era sanguíneo, sempre atento aos "passarinhos", recordando as moambas, saudando a terra quente de África, celebrando os seus amigos. Era excessivo; logo, pouco português. Uma benesse».
Carreira

Nascido em terras de Angola, onde se iniciou na rádio - Rádio Clube (RC) do Lobito, sua terra natal, depois mais tarde com passagem pelo RC do Mochico e Rádio Comercial Sá da Bandeira – de lá trouxe uma cultura peculiar que não abandonou em Portugal. Igual a si próprio, fiel a si mesmo, perseguiu em ser como era, mesmo em ambiente mais frio e mental. «Com um estilo espontâneo, temperado pelas influências africana (Angola) e brasileira, sempre com o “coração ao pé da boca”, muitas vezes polémico, Perestrelo trouxe até nós, via rádio, ao longo de cerca de 30 anos, incontáveis momentos de esfusiante alegria, intensas e vibrantes emoções» .

Em Portugal trabalhou no Rádio Clube Português, na Rádio Comercial e esteve desde os primeiros momentos nos projectos de rádio – TSF – e televisão – SIC. «Tu nunca cabias em categorias. Ainda na quinta-feira falámos nisso, pela milésima vez. Sempre achaste piada à diferença. Nunca quiseste ser um tipo fácil. Partes depois dos repetidos «eu te amo Sporting» que arrepiam. Quando era a sério, Jorge, quando era preciso dar tudo, tu eras o melhor. O mais forte, o mais ousado. De ti vou guardar a irreverência perante os que se acham poderosos», escreveu Luís Sobral.

Emoção contagiante
Nas reacções à sua morte (há três anos) colegas e ouvintes recuperaram a sua personalidade: irreverente, exuberante, extremado, provocante, perturbador, extrovertido, eloquente, entusiasmado, enérgico, vibrante, alegre, criativo, empolgante, diferente, singular, talentoso, dedicado, frontal, autêntico. Traços de um homem que se expressam na sua actividade (profissional), com reações contra ou a favor, mas raramente de forma indiferente: «Devo confessar que não [o] suportava. [Ele] era adorado, venerado e idolatrado cá em casa. Os relatos de bola na rádio passaram, coisa inaudita, a ser ouvidos em altos berros por causa dele. O tom stressante punha-me os pêlos do coração em pé, as tais frases da rapaqueca arrepiavam-me o fígado», anotou um cibernauta.
A princípio contestado, criticado e mais tarde popular entre os ouvintes e copiado entre alguns colegas. Marcou uma época, como afirmou António Macedo e deixou discípulos, como lembrou Filipe Rodrigues da Silva. A sua voz silenciou-se mas na memória de muito público permanecem expressões peculiares como “ripa na rapaqueca”, “qu´é qu`é isso, ó meu?”, “essa até eu com a minha barriguinha marcava”, “é disto que o meu povo gosta”, “nem que a vaca tussa”. Agradecia aos ouvintes pelo privilégio de o sintonizarem e gritava “aguenta coração”.
De tanta emoção até ao último jogo, o coração não aguentou mesmo e parou. De repente. Nas mãos de um médico amigo no Hospital da Cruz Vermelha. Os seus últimos relatos e os derradeiros golos que descreveu são hoje arrepiantes, como sublinharam vários ouvintes. «Recordo o seu grito no relato da TSF, vulcão rouco de alegria e choro explodindo quando o Ricardo marcou o penalti aos ingleses: “Obrigado Portugal, obrigado meu Portugal, obrigado, obrigado, obrigado”, sempre a repetir estas palavras, “obrigado, obrigado, obrigado”, até perder a voz. Fiquei arrepiado até à raiz dos cabelos. Por pouco não chorava também».
Jorge Perestrelo que disse em tempos, que “se tivesse uma namorada oferecia-lhe este golo” e que um repórter que faz a cobertura de um funeral teria de chorar, foi cremado no cemitério dos Olivais na mesma altura em que a TSF anunciava um livro de Fernando Correia. Deixou a mulher e dois filhos, Luena e Pedro. Deixou-nos a todos, mas “a sua voz não se calará nas nossas memórias”. Como alguém disse, este monstro da rádio coloriu-a com palavras quentes do sul e nela deixou pegadas de liberdade.

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