segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Jornalismo (e) audiovisual VIII

Nesta última parte abordamos as práticas profissionais: o agendamento, a distorção e a construção da realidade.


Texto Dina Cristo

Como vimos no artigo anterior, os órgãos de informação não reproduzem apenas os acontecimentos, criam-nos. Não se trata, contudo, de uma manipulação explícita, reflectida e ponderada, mas antes de uma distorção inconsciente, motivada mais pelo modo como funcionam as redacções do que pela vontade do jornalista.
Segundo o “agenda-setting
”, há uma relação directa entre a representação da realidade feita pelos pelos meios de comunicação social e os conhecimentos adquiridos pelos destinatários. “As pessoas têm tendência para incluir ou excluir dos seus próprios conhecimentos aquilo que os "mass media" incluem ou excluem do seu próprio conteúdo”[1].
O pressuposto desta hipótese é que os "mass media" constroem a imagem da realidade social. “All the king`s men”, por exemplo, dá a ver exactamente o papel da imprensa na construção da imagem de um político; “The fountainhead” é uma reflexão sobre o poder (e também os limites) da imprensa na (de)formação da opinião pública (aqui, a imprensa, com falta de conteúdo, lança uma campanha difamadora contra um jovem arquitecto individualista). “Call northside 777”, por outro lado, mostra a forma como a imprensa pode também, se bem utilizada, contribuir para o esclarecimento público.
Condições como a acumulação, a consonância e a omnipresença são consideradas favoráveis à formação de uma opinião pública que, por sua vez, contribui de forma decisiva para a construção da imagem que os consumidores de informação fazem do mundo.
Um dos filmes onde está bem presente o poder que a informação detém na formação da opinião pública é “The citizen Kane”. “As pessoas pensam o que lhes disser para pensar” – uma frase arrebatadora do magnata da comunicação social cuja quantidade de jornais e rádios consegue transformar a opinião geral do público a favor das suas convicções (ou caprichos).
As pesquisas realizadas no âmbito desta teoria salientam que aquilo que é valorizado pelos "mass media" adquire, numa relação proporcional (quer nos temas escolhidos quer na sua hierarquização), maior importância nas agendas individuais, ou seja, nas preocupações de cada indivíduo. Este facto mostra a influência que os meios de comunicação de massa adquirem na mundividência humana.
Hero”, ao catapultar um sem abrigo para o ecrã, transforma-o em figura pública e praticamente o eleva à categoria de herói nacional. Alguém que lidava quotidianamente com a indiferença vê-se, de repente, alvo de todas as atenções, em toda a parte, por toda a gente. Tudo isto quando a personagem em questão não correspondia ao “anjo do voo”; o verdadeiro, o que salvou os sobreviventes de um desastre de avião, continuava a ser ignorado.
Trata-se de um exemplo de como as distorções ocorridas na produção de mensagens se reflectem sobre o património cognitivo dos destinatários. Os indivíduos que apenas conhecem determinado facto através da mediação dos meios de comunicação social tomam as distorções por realidades efectivas e modelos pelos quais os conhecimentos futuros serão avaliados.
Por outro lado, os destinatários passam a experienciar realidades não vividas efectivamente, mas mediatizadas e que alguns telespectadores acreditam ser mais reais do que a própria vida. Elementos tipicamente televisivos como as controvérsias, os empolamentos, os aspectos insólitos são tidos como reais. “Assim, a alienada ilusão que a televisão favorece promove a indistinção entre a realidade e a fantasmagoria dessa mesma realidade”[2].
Newsmaking
Os estudos sobre a produção de notícias relacionam a imagem social fornecida pelos "mass media" não apenas com a selecção de notícias realizada por um “guarda de cancela”, como afirmavam os estudos sobre os “gatekeepers”, mas sobretudo com a produção rotineira dos aparelhos jornalísticos e a organização das estruturas informativas, por um lado, e com o trabalho redactorial, valores e cultura profissional do jornalista, por outro.
Broadcast News” demonstra-o de forma muito clara. Em que contexto se situará uma estrutura que se desmorona pelo facto de não ter planeado as noites de Quarta-feira e que na mesma reunião em que decide fazer um corte de 24 milhões de dólares (com o consequente despedimento em massa) opta por cobrir o julgamento do assassínio do Alasca; uma redacção onde as respostas a uma pergunta “eticamente difícil” (se gravariam uma descarga eléctrica) são claramente afirmativas e onde, principalmente, se lança Tom, sem qualquer experiência ou provas devidamente prestadas, na apresentação do ataque do avião líbio à base americana na Sicília quando Aaron já estivera em Tripoli, entrevistara Kadhafy e fizera uma reportagem em 1981.
Que valores estarão a ser considerados quando se marginaliza o trabalho de Aaron e se aprecia a total futilidade de Tom que não sabe escrever e não passa nos mais elementares testes de cultura geral? Afinal, sempre se consegue sobreviver à custa, em grande parte, da boa aparência; o domínio das técnicas televisivas, a sua aptidão para vendedor, o sentido de sedução e a atitude assumida perante a comunicação (mais de excitação do que de nervosismo) fazem o resto. Independentemente se estão correctos ou não, são estes os valores que fazem o sucesso televisivo, e não apenas em “Broadcast News”.
Assim, são as práticas profissionais ligadas às “routines” produtivas bem como os valores partilhados e interiorizados quanto ao modo de desempenhar a função de informar que provocam uma distorção inconsciente e independente da vontade do jornalista.
Trata-se de uma distorção involuntária por parte do jornalista mas, muitas vezes, como já vimos, da responsabilidade dos directores dos meios de comunicação social. “Each dawn I die” é um caso típico. Neste filme é o próprio director a cortar o trabalho de denúncia de um repórter sendo este falsamente acusado de crime e encerrado numa penitenciária. Em “Defense of the realm”, a investigação de um jornalista sobre a iminência de um acidente nuclear sofre pressões de todos os lados a começar pelo director do jornal que não publica a peça. Tratava-se de segredos oficiais – disse – e há coisas em que não se pode tocar.
Mas não haverá filme tão elucidativo sobre a influência (negativa) dos directores relativamente aos jornalistas e a ilusão destes em considerar que o seu olhar corresponde à verdade como em “Absense of malice”. Aqui, Megan, a jornalista, é persuadida pelo seu director e conselheiro legal do jornal de que pode levar a história (o desaparecimento do líder da união de estivadores cujas culpas foram propositadamente insinuadas erradamente sobre um pacato vendedor) tão longe até eles poderem provar a sua ausência de malícia (a legalidade, tal como em “The mean season”, é colocada antes da ética).
Na prática, o que se verifica é que os ideais profissionais se submetem ao grupo redactorial e o jornalista vê-se limitado quanto à recolha de notícias e determinado a apresentá-las sob critérios que incrementam a mediocridade e não a qualidade. É o que sucede a Jane e Aaron. Este, atento ao assunto, afirma: “Pouco a pouco, (Tom) baixará os nossos padrões onde eles são importantes”.
Broadcast News” sugere também a situação televisiva mais geral, um meio que transmite a entrevista de Arnold Schwarzenegger, em que o apresentador mais eficaz não é o melhor profissional, um "medium" onde se passa na mesma noite, em todos os canais, um apontamento com animais em detrimento de uma mudança política sobre o nuclear. Um contexto que Jane não deixa de alertar no congresso de jornalistas.
Para que um determinado acontecimento se transforme em notícia é necessário preencher os requisitos de noticiabilidade. A aptidão para se tornar notícia é avaliada em primeiro lugar pela sua importância e interesse. Mas os valores são múltiplos; relacionam-se quer com o produto em si – necessidade de ser breve, inédito, insólito, anormal, actual e que tenha ritmo, acção - com a especificidade do meio de comunicação, com a precisão de manter a atenção e o interesse do público (segundo este critério, quanto mais sangrento é o espectáculo maior é o valor da notícia) e até a própria concorrência. Neste último factor verifica-se que origina a “caça” aos exclusivos, mas leva a uma uniformidade de coberturas (todos mostram o mesmo) – normalmente de personalidades de elite – sem permitir uma inovação de assuntos.
Para este facto contribui igualmente a própria máquina produtiva que, perante a necessidade de manter uma certa funcionalidade ante a dinâmica informativa, adapta os acontecimentos a uma estrutura pré-existente. É nesse contexto que fontes de informação oficiais ou grupos de pressão, dada a sua credibilidade, por um lado, e o fornecimento dos elementos que correspondem às necessidades dos "mass media", por outro, predominam como informadores; são normalmente estas organizações que possuem porta-vozes cujas declarações são noticiáveis.
As agências noticiosas permitem a cobertura informativa internacional mas contribuem para a homogeneidade da informação e da mundovisão dos telespectadores. O sistema de permuta através da Eurovisão (baseado em acontecimentos previstos e oficiais) é outro exemplo que contribui para a uniformidade, também com ênfase em factos político-institucionais.
As agendas de serviço, que permitem a planificação, são no entanto uma “encenação implícita das notícias”[3], na medida em que correspondem a uma produção antecipada, além de impedirem, muitas vezes, o jornalismo de pesquisa ou de investigação, como admite Schlesinger.
Os valores mantêm-se durante a apresentação, quando a atenção é focalizada nos aspectos mais importantes e chamativos dos factos mais extraordinários. O que daqui resulta é a “enfatização das enfatizações”, como refere Gans[4].
A fragmentação da imagem da sociedade, dada de forma superficial e desconexada, resulta da justaposição das notícias que são apresentadas como auto-suficientes. Desta forma, podemos concluir que os factores de noticiabilidade permitem a cobertura informativa quotidiana mas descuram o aprofundamento e a compreensão.
Como me disse Marc Piault, antropólogo visual, “Não é suficiente captar as imagens, é preciso entendê-las, caso contrário, arriscamo-nos a assistir, como acontece, a uma desinformação sistemática”[5]. Para este cientista social, o essencial não deverá ser expor as imagens mas sim explicá-las, torná-las compreensíveis e dar-lhes um contexto, pois só dessa forma terão uma utilização prática.
Acabámos de ver como muitas das situações reais, desde a espectacularidade e encenação dos factos até à construção da realidade no jornalismo televisivo, foram focados no cinema de jornalistas. Sob a capa de puro entretenimento, o cinema transmite muita informação correcta.



[1] SHAW, E. – “Agenda-setting and mass communication theory”, Gazette (International Journal for Mass Communication Studies), vol.XXV, nº2, p.96-105 apud Mauro Wolf – Teorias da Comunicação, p.128. [2] SOUSA, Jorge Pedro – Incógnitas da incerteza – reflexões sobre jornalismo e comunicação humana a propósito da guerra do golfo, p.71. [3] ELLIOT, Golding – Making the news, Longman, 1979, p.93 apud Mauro Wolf, op. cit., p.211. [4] GANS, H. – Deciding whta`s news. A study of CBS evening news, NBC nightly news, news, Newsweek and Time, Pantheon Books, 1979, p.92 apud Mauro Wolf, op. cit., p.218. [5] Entrevista pessoal no âmbito de um seminário sobre antropologia visual, realizado na universidade Aberta, no Porto, em Setembro de 1993.

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