quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Teledependência


Domingo é Dia Mundial da Televisão. Ensejo para ponderar o poder (destrutivo) desta mãe tecnológica, quando abusada, sobretudo na infância. Um texto escrito em 2005, antes da força actual da internet.

Texto Cláudia Oliveira desenho* Dina Cristo

Uns chamam-lhe “fábrica de horrores” e “inimiga da cultura”; outros consideram-na imprescindível para que a criança se desenvolva enquanto ser social. As crianças não sabem muito bem o que ela é mas adoram-na! Para muitas delas a televisão tornou-se um vício.

O que um dia de aulas ensina a uma criança pode ser destruído por um programa de televisão em cinco minutos. Desde o início da vida que as crianças vão sendo modeladas pela “caixinha mágica”, que está a ocupar o espaço de diálogo entre muitas famílias e a influenciar a infância que muitos consideram ser o “terreno” da construção social de qualquer ser humano.

A televisão consegue conjugar características que os outros meios de comunicação social não têm: o som, a imagem e o movimento transportam os mais novos para um universo de fantasia que os fascina e torna dependentes. Para muitos psicólogos, psiquiatras e educadores, a televisão tornou-se algo perigoso para a saúde mental das crianças quando vista sem regras e sem um acompanhamento paralelo por parte dos adultos, nomeadamente os pais.

O número de horas que a criança passa em frente ao televisor vai aumentando dos dois aos 10 anos e tem tendência a decrescer, depois, até aos 15. Mas centremo-nos na faixa etária entre os seis e os 10 anos (idade em que se estabelecem as bases da teledependência), para tentar perceber o que leva uma criança a demorar horas a fio a olhar para o pequeno ecrã como se estivesse anestesiada.

Quando
a televisão se transforma de uma simples apetência a uma necessidade absoluta e imperiosa fala-se em teledependência. A pessoa perde a liberdade para exercer o auto-controlo sobre um impulso e deixa-se levar passivamente pelo desejo de ver televisão. O público mais susceptível é o infantil porque enquanto que os adultos são capazes (ou, pelo menos, deveriam ser) de seleccionar o que necessitam de ver, as crianças ainda não estão mentalmente preparadas no sentido de desenvolver um espírito crítico e selectivo perante o que vêem na televisão.

Além disso, e ao contrário do que muitos querem fazer crer, a televisão não é por si só formativa. Para se retirar dela uma aprendizagem verdadeiramente útil e pertinente é necessário ter conhecimentos prévios que nos ajudem a relacionar o visto com o vivido. Ora, as crianças não têm uma experiência vivencial que lhes permita estabelecer essa relação, por isso é que se deixam levar durante horas e horas, enleadas no espectáculo das cores que a televisão lhes oferece.

Calcula-se que uma criança actual, quando chegar aos 60 anos, terá passado oito anos da sua vida a ver televisão. Muitas vezes, o
consumo televisivo por parte das crianças chega a rondar a anormalidade e pode apelidar-se mesmo de compulsivo.

A força desta dependência é de tal forma intensa que os leva até a estabelecer uma série de rupturas com o mundo exterior. Intencionalmente ou não, as televisões educam quem as vê e ouve. Resta saber até que ponto o fazem bem ou mal e se os pais dos actuais “
filhos da televisão” conhecem quem os está a educar.

A solução não é desligar a televisão e assim fechar todas as portas à sua influência – a solução é saber que portas se devem e podem abrir. Não ensinamos as nossas crianças a ter as luzes da casa sempre ligadas nem as torneiras de água sempre abertas. Mas porque é que as habituámos a ter a televisão sempre ligada? Catarina Neves, psicóloga em Coimbra, considera importante nunca nos esquecermos que «os pais, no fundo, são um modelo: se os próprios pais usam a televisão sem descriminação, a má aprendizagem em relação à forma de ver TV começa logo em casa».

Filhos da televisão

A Inês tem sete anos, estuda na Escola Primária nº23 de Casais do Campo, em Coimbra, onde frequenta o quarto ano, e diz que não consegue passar um dia sem ver televisão. Gosta de ler livros nos tempos livres mas considera que alguns são “chatos”. A televisão «é melhor porque as imagens mexem, há sons e é divertido», acrescenta. Os pais não a deixam ver “certas coisas” e tem que ir para a cama cedo, nunca depois das 10 da noite.
Tal como a maioria dos seus colegas de escola, a Inês não perde um episódio de “Morangos com açúcar”. É uma telenovela «com jovens, alguns como nós e gostamos de ver porque todos os dias converso com as minhas amigas sobre o que aconteceu na novela», diz com entusiasmo. Os pais optaram por colocar-lhe uma televisão no quarto para «lhe fazer mais companhia quando está doente ou assim», dizem os pais, mas a Inês acaba por usufruir mais dela quando não está doente. A mãe reconhece que não acompanha muito os programas que a filha vê, porque só chega a casa à noite, mas tenta alertá-la para a transmissão de imagens, desenhos animados e filmes violentos. No entanto, admite que «devia controlar muito mais mas nem sempre há possibilidades para isso».

A relação do meio televisivo com o público infantil é curiosa: a televisão constitui uma boa parte do universo existencial dos mais novos, e é através do contacto com ela que começam a percepcionar o mundo que as rodeia. Sem se aperceberem, isto pode causar-lhes um estado de inibição, isolamento, nervosismo e ansiedade.

Antes mesmo de as crianças irem à escola, a televisão molda-as e transforma-as em público. É, por isso, necessário educar os nossos filhos desde muito cedo, ensinando-os a incorporar as chamadas estratégias de alfabetização visual.

Para quase todas as crianças (e até para muitos adultos) o que não aparece na televisão não existe socialmente. É fundamental mostrar-lhes, e não somente dizer-lhes, que isso não é verdade. Do ponto de vista psicológico isto é extremamente grave porque significa que a criança não interage socialmente e não realiza outras actividades durante tanto tempo quanto o que passa fascinada em frente ao televisor.

No início pensou-se que a televisão acelerava o desenvolvimento intelectual das crianças. No entanto, investigações posteriores concluíram que a criança necessita de imagens de pessoas e de objectos que tenham uma certa regularidade, para que possam memorizá-las.

As imagens televisivas, pela sua fugacidade, não permitem que tal aconteça. O ritmo da televisão é-lhe imposto, rápido e sem possibilidade de parar e voltar atrás. A criança é obrigada a adquirir uma grande rapidez de percepção, o que é raro em crianças com idades entre os seis e os 10 anos.

O visionamento excessivo de televisão dificulta a construção de imagens na memória e dá origem à perturbação da atenção e à dispersão caótica das imagens na mente infantil. Tudo isto está presente nos desenhos animados, que é o que normalmente se vê mais nestas idades.

Chupeta electrónica

O Miguel tem nove anos e frequenta o quarto ano, na mesma escola da Inês, mas não se insere na maioria dos meninos fanáticos por desenhos animados. Gosta deles mas só dos mais calmos, como o “Nody”. Diz que prefere ver «um bom jogo de futebol» do seu Benfica e não perde um programa “Um contra todos». Interessa-se por noticiários porque os pais, desde cedo, o habituaram a isso. A mãe, contabilista, considera «fundamental incutir a vontade de saber o que se passa no mundo e é uma forma de o irmos enriquecendo culturalmente».

Catarina Neves afirma que o importante é que os pais «sigam minimamente os programas que os filhos acompanham e dialoguem sobre eles, dando-lhes a conhecer outros modelos de aprendizagem». O que acontece com muita frequência é que «os programas menos pedagógicos são os que os miúdos gostam mais de ver». E acrescenta que «a televisão até pode ser um bom método pedagógico, desde que os programas sejam seleccionados e nunca se ponha de parte outras actividades, como o relacionamento social».

Como as crianças não têm o desenvolvimento mental dos adultos é fácil perceber que todas as estratégias televisivas se apresentem muito mais fascinantes para elas, tornando-as passivas perante tudo o que é dito e mostrado. A televisão mostra-se muito mais fascinante do que qualquer livro.

Os próprios comportamentos dos adultos, principalmente dos pais, podem ir facilitando esta dependência. «Basta que a criança tenha televisão no quarto para se fomentar quer o isolamento quer a dependência televisiva, e isso é contrário à interacção familiar e social», diz a psicóloga. Se, para além disto, os pais não se mostram disponíveis para a criança, no sentido de lhe explicar os conteúdos que ela vê, a tendência recai naturalmente sobre o visionamento desmesurado e desconexo de programas.

A criança acaba por ter o mundo no quarto, mas é o mundo das coisas, não tem o mundo afectivo. Os mais novos necessitam de estabelecer relações afectivas para aprender a relacionar-se com a sociedade, e sem estes laços de ligação com os outros torna-se difícil a integração e o contacto com o meio social. «Para a criança «é muito mais fácil o relacionamento com uma coisa que não interage com ela do que com uma pessoa, porque há muito mais níveis de frustração e de insucesso» refere também. Assim, a televisão apresenta-se como uma companhia excelente, porque se os próprios pais a usam como um entretém e não como uma aprendizagem, a criança vai fazer o mesmo.

Tende-se a pensar que os telespectadores são mais influenciados pela razão, mas a verdade é que a maior influência é exercida sobre as suas emoções (e ainda mais no caso do público infantil que não tem a parte racional totalmente desenvolvida). Outra tendência é pensar que só somos influenciados por conteúdos dos quais temos consciência, no entanto, os principais efeitos que a televisão exerce sobre nós são inconscientes e inesperados.

O que as atrai


Sabe-se que as crianças se identificam com as personagens dos desenhos animados e das novelas que vêem porque apresentam-se como seus semelhantes. Outro aspecto atractivo é a violência. Ontem a violência provinha das guerras e passavam semanas até que a notícia chegasse… Hoje a violência está à distância de um comando de televisão.


Vários estudos demonstram que as crianças envolvem-se muito mais com conteúdos televisivos violentos e agressivos do que com os mais calmos. Quer a violência real (dos noticiários) quer a ficcional (dos desenhos animados e filmes) produzem dependência em doses equivalentes. Ambas permitem à criança descarregar os seus próprios impulsos agressivos ao mesmo tempo que, no aconchego do lar, se sente protegida dessa mesma violência.

A exposição frequente à violência televisiva (presente na informação e no entretenimento) favorece o aparecimento de comportamentos anti-sociais, em audiências particularmente desprotegidas, como é o caso dos mais novos. Pode ainda levá-los a desenvolver a aprendizagem de atitudes violentas.

A publicidade é outro dos aspectos que prende os telespectadores mais novos ao ecrã: a publicidade modela e é uma influência persuasiva para o público infantil, mais vulnerável à recepção destas mensagens unívocas sobre o mundo. Deixam-se cativar por sugestões perfeitas e acabam quase a obrigar os pais a comprar o que a televisão lhes sugeriu. Começa por ser um deslumbramento e acaba quase na crença convicta de que tudo o que é mostrado na televisão é que é bom, tudo o resto simplesmente não existe ou não presta.

É assim que, diariamente, a “chupeta electrónica”, assim lhe chamam os educadores dos anos 60, hipnotizam milhões de crianças diante do televisor. Roberto Kubery, director do Centro de Estudos dos Média da Universidade de Rutgers, nos EUA, explica que “a televisão não tem nada de doença, mas se a pessoa já não consegue delimitar quanto tempo vai ficar a vê-la e troca a vida social por esse hábito, aí sim tem que começar a preocupar-se”.

Mais de metade das crianças entre os seis e os 10 anos senta-se em frente à televisão sem saber o que vai ver, o que denota um vício pela televisão e não pelos conteúdos televisivos. Afinal quem tem o comando? Os mais novos, que estão constantemente a fazer zapping, ou os programadores televisivos, que sabem como os seduzir?

A televisão anula a capacidade de criticar e desenvolve estados de apatia, passividade e falta de concentração. Na sequência disto geram-se situações preocupantes de insucesso escolar, insónias, fadiga visual e tendência para o isolamento. Estes aspectos em nada favorecem a sua cultura e, muito menos, o desenvolvimento das suas aptidões e dos seus juízos individuais.

Solução


A maioria das crianças não tem espírito crítico, pois não lhes foi desenvolvido. Nesse sentido, os mais novos são expostos com frequência a realidades que não conseguem perceber mas aceitam. A solução passa pela redução do número de horas a ver televisão e pela introdução, por parte dos pais, de regras e espaços de diálogo sobre o que é transmitido.


É certo que as crianças são receptores passivos expostos à manipulação mediática mas, se for bem vista, a televisão contribui grandemente para ajudar as crianças a legitimar modelos do mundo e a construir a significação da realidade. No fundo, elas sabem que ninguém sangra nem morre nos desenhos animados e, se alguém fica esburacado de tiros, volta ao normal na última cena. Contudo, é preciso estar atento e nunca deixar que se ultrapasse a barreira da certeza de que aquilo é ficção, caso contrário a dependência torna-se alarmante. A psicóloga Catarina Neves conclui que «se a televisão não for em demasia nem de forma desmesurada, pode até ajudar a criança a integrar-se na sociedade, sem ter necessariamente de a tornar teledependente nem de isolar do mundo físico».

Não podemos responsabilizar a televisão por todas as mudanças sociais. É necessário educar as crianças no seu uso cultural, principalmente no que se refere a desenhos animados, ajudando-as a ser exigentes e selectivas. É importante que desenvolvam uma atitude de imunidade à dependência, através do acompanhamento e controlo por parte dos pais e educadores, porque nem toda a programação infantil é de má qualidade.
O caminho a seguir, para combater a dependência, passa por saber seleccionar o que queremos ver e fazer da televisão um estímulo à educação da comunidade, que actualmente a usa para matar o tempo… e a cultura.

* Anos 80

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