quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Profissão: informador


Quando passam esta Sexta-Feira 65 anos sobre a criação da Pide, publicamos uma entrevista a Eduardo, nome fictício - um agente da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (Novo), entre 1970 e 1974.


Texto António Miguel Ferreira fotografia Dina Cristo


Como foi o Eduardo parar à Pide?

Basicamente por razões económicas mas também de poder. Tinha 25 anos e o desejo de ser alguém. Os meus pais só tinham migalhas para pôr na mesa. Mas basicamente era a sensação de poder. Um informador recebia cerca de 300 escudos, na altura, esse dinheiro por mês não era nada pouco. Fui convidado por um amigo do meu pai, inspector da Pide, e não demorei dois segundos a aceitar o convite. Além disso, a partilha do poder numa ditadura era muito apetecível. Houve casos de pessoas que apresentavam crachás da Pide a fingir, e que diziam que eram da Pide; chegaram a ser presas pela própria Pide, porque estavam a usurpar a autoridade.


Havia muitas pessoas a oferecerem-se para informadores? Quantos eram esses agentes?
Com os agentes do Ultramar, talvez fossem quase 3.000 efectivos. E este número não é nenhuma enormidade. Não se esqueça que Portugal ia do Minho a Timor. Não eram muitos atendendo que Portugal era muito mais vasto devido às colónias.

Qual era o seu papel como informador? Quais eram as suas funções?
Há que distinguir dois tipos de informadores: aqueles que fornecem informações por entenderem que o devem fazer, sem terem sido solicitados para tal e sem exigirem qualquer pagamento, e aqueles que, como em qualquer Estado e em qualquer polícia, fornecem informações para ganhar umas coroas, ainda que sejam indivíduos bem formados. Porque também há informadores angariados na ralé, como são quase todos aqueles que colaboram hoje com a Polícia Judiciária: a gatunagem, os traficantes de droga, que se denunciam una aos outros. Nenhum Estado sobrevive sem informação. Ora, sem informadores não há informação. Por isso, como qualquer polícia, a Pide também tinha informadores, inclusivamente no Partido Comunista. Agora, se me pergunta qual o peso que esses informadores tinham dir-lhe-ei que eles eram catalogados de acordo com a qualidade das informações. Havia indivíduos cujas informações batiam sempre ou quase sempre certo e outros cujas informações não tinham qualquer veracidade. As minhas informações sempre primaram pela veracidade.

Como era processado o pagamento aos funcionários da Pide?
Atenção que eles tinham de apresentar trabalho. Muitos informadores inventavam "informações". Ao fim de um tempo, se a Pide verificava que aquilo não tinha interesse nenhum, punham-nos a andar. Mas a partir do momento em que começavam a apresentar trabalho e estavam bem situados, especialmente se tinham relações com a oposição - o que interessava à Pide era relações com a oposição e/ou gente organizada mesmo dentro do Partido Comunista -, nessa altura, passavam a receber semanalmente. Havia muita corrupção. Houve elementos da Pide que em vez de pagar aos informadores - aquilo vinha sempre de uma espécie de "saco azul", os serviços de assistência ou serviços reservados - muitas vezes ficavam com uma parte. Havia muitos informadores a queixarem-se, a escreverem cartas - algumas chegaram a Salazar - a dizer: "Então eu sou informador e estou a receber muito menos; acho que ele se está a abotoar com o meu dinheiro".

A Pide não tinha uma mão demasiado pesada contra quem ia contra as ideias do regime? A tortura não era uma prática recorrente utilizada pela Pide?
Claro que não. Um dia vi na televisão uma velhota a mostrar as cicatrizes causadas por queimaduras de cigarro que lhe haviam sido feitas pelos torcionários da Pide. Uns dias depois, a mesma velhota dizia nos jornais que recebera 40 contos do Partido Comunista para mostrar as queimaduras, que afinal foram provocadas por azeite a ferver num acidente doméstico. É que com estas mentiras que se faz a história! Olhe, eu servi na GNR e na Pide. Onde eu vi grandes sovas foi na GNR. A Pide era uma polícia semelhante à de muitos outros países democráticos. A França tinha o SDECE e o DST, a Inglaterra tinha o II5 e o DI6, os Estados Unidos da América tinham e têm a CIA e o FBI. Todas estas polícias faziam ou fazem ainda investigação, informação, espionagem e contra-espionagem. Afinal, éramos diferentes em quê? Fazíamos escutas telefónicas? Fazem-nas hoje todos os serviços de informação dos países democráticos. E Portugal não é excepção! Com estas atordoadas de tortura e de escutas telefónicas que se lançam para o ar ninguém repara que hoje mesmo se está a formar uma nova polícia à escala mundial que, utilizando meios informáticos poderosos e altas tecnologias, controla facilmente a própria vida privada de cada um de nós. Mas como tudo é feito em nome da democracia, ninguém parece estar muito preocupado... Os horrores da Pide continuam a ser propagados para justificar a revolução e esconder as misérias destes últimos 25 anos. Não fomos nada do que dizem. Fomos, sim, uma das três melhores polícias do mundo. Prestámos relevantes serviços ao país.

E a tortura era o meio de descobrir a verdade?
Era uma das formas. Mas só se praticava tortura em raríssimos casos. Só quando tudo o resto falhava…

O Eduardo participou em alguma acção de tortura?

Sim, numa meia-dúzia. Mas em nenhuma delas se utilizaram queimaduras e muito menos se despiram as mulheres. Há um ou outro relato, muito raro, de que colegas meus faziam queimaduras de cigarro, e a não ser num caso de mulheres presas do Couço em que humilhações directas de carácter sexual foram utilizadas, desconhecem-se testemunhos nesse sentido. A Pide insultava as “companheiras” de tudo quanto havia, mas não as despia. Também se utilizava a privação do sono; o recorde foi de um jovem engenheiro, comunista, mantido desperto durante um mês. Cometeu o suicídio após a sua libertação. Os tectos das celas tinham altifalantes que difundiam sons ruidosos e terrificantes, ou por vezes os choros e soluços de suas esposas e os filhos. As refeições eram servidas de modo deliberado. O pequeno-almoço podia chegar às 16h, e o jantar a meio da noite. Não existiam relógios e as celas não tinham camas.

A censura era uma das armas com que o regime contava para se defender. Quer explicar como se processava? Tinha algum manual que deveria seguir?
Tínhamos algumas linhas orientadoras que éramos convidados a seguir. Mas eram geralmente os agentes mais velhos que ensinavam os novatos.

E o famoso lápis azul?
O "lápis" começou como protecção do golpe militar de Gomes da Costa, iniciado em Braga e transformou-se no guardião da ideologia "Deus, Pátria e Família", que regia a ditadura que se vivia. Era com o "lápis azul" que se decidia aquilo que o país deveria saber, através da imprensa, rádio, televisão, livros, cinema, teatro, música, pintura, ou de qualquer outro meio de divulgação da criatividade humana.

O que procurava a Pide apagar, não deixar que chegasse aos ouvidos e aos olhos do povo?
Tudo o que fosse contra o regime e a sua estabilidade. E os meios de comunicação eram os veículos que precisavam de ser controlados. As artes também não poderiam passar despercebidos. Penso que a Pide cumpriu essa missão. Pouca informação ofensiva chegava ao povo. A longevidade do Estado Novo deve-se em grande parte à acção da Pide.

A Comunicação Social deveria ser um instrumento de propaganda. Então considera que a Pide conseguiu controlar as vozes revolucionárias que emergiam na imprensa?
Sim, sem dúvida! Como disse pouca informação desaglutinante escapou ao controlo da Pide.

A Comissão de Censura era competente?

Sim, sem dúvida. O que escapava não podia ser controlado. À comissão de censura pertenciam homens de grande visão. A censura era obra da sua inteligência.

Mas não havia muita informação proibida a circular?

Refere-se a informação clandestina. Sim, chegavam muitos livros e panfletos clandestinos. Mas não tanta como dizem. Um ou outro livro chegava ao nosso país pelas mãos de comunistas.

Na sua opinião entre a imprensa, a rádio e a televisão, qual foi o meio que cumpriu melhor a sua missão? Qual o que melhor a Pide conseguiu controlar?

Penso que a televisão serviu plenamente os interesses do regime. A imprensa foi o mais difícil de controlar. Havia muitos jornalistas e revolucionários com ideais comunistas nas redacções, e tornava-se muito difícil controlá-los. Mas mesmo assim penso que a missão da Pide alcançou claramente os seus objectivos.

A Pide foi apanhada de surpresa quando se deu o 25 de Abril?
A ideia que eu tenho é que não sabia o dia, e aí o Otelo tem todo o mérito, porque depois das Caldas da Rainha, em que eles apanham toda a gente, convenceram-se que tão depressa não ia haver outro golpe. O golpe das Caldas foi muito bom para o 25 de Abril, porque eles aprenderam o que não se devia fazer. E a Pide pensou: "agora não nos vamos preocupar com estes, porque estes estão inutilizados". E isto, ainda por cima, foi transmitido a todos os serviços secretos. A CIA chegou até a tirar os dois ou três agentes que cá tinha, porque pensava que durante um tempo não ia haver nada. A Pide sabia que se preparava qualquer coisa, mas não soube do dia 25 de Abril. Mas acho que isso tem a ver - e isso ainda está tudo por investigar - com saber se havia, digamos, recrutas dentro da DGS que fossem mais spinolistas. Porque depois também ninguém esperava o processo revolucionário que se seguiu. Aquilo era um golpe militar. Os presos não estavam para sair todos...

Eduardo, conheceu pessoalmente Salazar?


Sim. Conheci-o. Ao seu lado respirava-se tranquilidade e confiança. É um dos dias de que nunca me esquecerei. E Portugal deve muito a ele. E o povo português ainda recentemente o reconheceu ao proclamá-lo o maior português de sempre. Acompanhou a polémica à volta da inauguração de um largo com o nome de Salazar em Santa Comba Dão? Acompanhei e senti vergonha. A história de hoje não pode esquecer a história do passado. Como um amigo meu dizia é mais honesto baptizar a ponte Salazar com o nome ponte 25 de Abril?

Como vê o Portugal contemporâneo?

Como um navio à deriva. Um navio que ameaça naufragar há três décadas. E não vejo ninguém que possa devolver à nossa pátria a auto-estima e a grandeza que outrora possuíamos. Estamos a caminho da bancarrota. Este não foi o Portugal que o Dr. Salazar sonhou. Se fosse possível Salazar regressar ele não quereria vir. Não temos agricultura nem indústria, nem pescas, e com a maior onda de roubalheira de todos os tempos. E a censura parece tão ter estado tão viva como hoje. Só que actualmente ela é mais descarada!

Alguma das pessoas que denunciou morreu às mãos da Pide?

… Prefiro não responder.

O Eduardo dorme hoje com a consciência tranquila?

Sim… procuro dormir.

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