Profissão: informador
Quando passam esta Sexta-Feira 65 anos sobre a criação da Pide, publicamos uma entrevista a Eduardo, nome fictício - um agente da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (Novo), entre 1970 e 1974.
Texto António Miguel Ferreira fotografia Dina Cristo
Como foi o Eduardo parar à Pide?
Havia muitas pessoas a oferecerem-se para informadores? Quantos eram esses agentes?
Com os agentes do Ultramar, talvez fossem quase 3.000 efectivos. E este número não é nenhuma enormidade. Não se esqueça que Portugal ia do Minho a Timor. Não eram muitos atendendo que Portugal era muito mais vasto devido às colónias.
Qual era o seu papel como informador? Quais eram as suas funções?
Qual era o seu papel como informador? Quais eram as suas funções?
Há que distinguir dois tipos de informadores: aqueles que fornecem informações por entenderem que o devem fazer, sem terem sido solicitados para tal e sem exigirem qualquer pagamento, e aqueles que, como em qualquer Estado e em qualquer polícia, fornecem informações para ganhar umas coroas, ainda que sejam indivíduos bem formados. Porque também há informadores angariados na ralé, como são quase todos aqueles que colaboram hoje com a Polícia Judiciária: a gatunagem, os traficantes de droga, que se denunciam una aos outros.
Nenhum Estado sobrevive sem informação. Ora, sem informadores não há informação. Por isso, como qualquer polícia, a Pide também tinha informadores, inclusivamente no Partido Comunista. Agora, se me pergunta qual o peso que esses informadores tinham dir-lhe-ei que eles eram catalogados de acordo com a qualidade das informações. Havia indivíduos cujas informações batiam sempre ou quase sempre certo e outros cujas informações não tinham qualquer veracidade. As minhas informações sempre primaram pela veracidade.
Como era processado o pagamento aos funcionários da Pide?
Como era processado o pagamento aos funcionários da Pide?
Atenção que eles tinham de apresentar trabalho. Muitos informadores inventavam "informações". Ao fim de um tempo, se a Pide verificava que aquilo não tinha interesse nenhum, punham-nos a andar. Mas a partir do momento em que começavam a apresentar trabalho e estavam bem situados, especialmente se tinham relações com a oposição - o que interessava à Pide era relações com a oposição e/ou gente organizada mesmo dentro do Partido Comunista -, nessa altura, passavam a receber semanalmente.
Havia muita corrupção. Houve elementos da Pide que em vez de pagar aos informadores - aquilo vinha sempre de uma espécie de "saco azul", os serviços de assistência ou serviços reservados - muitas vezes ficavam com uma parte. Havia muitos informadores a queixarem-se, a escreverem cartas - algumas chegaram a Salazar - a dizer: "Então eu sou informador e estou a receber muito menos; acho que ele se está a abotoar com o meu dinheiro".
A Pide não tinha uma mão demasiado pesada contra quem ia contra as ideias do regime? A tortura não era uma prática recorrente utilizada pela Pide?
A Pide não tinha uma mão demasiado pesada contra quem ia contra as ideias do regime? A tortura não era uma prática recorrente utilizada pela Pide?
Claro que não. Um dia vi na televisão uma velhota a mostrar as cicatrizes causadas por queimaduras de cigarro que lhe haviam sido feitas pelos torcionários da Pide. Uns dias depois, a mesma velhota dizia nos jornais que recebera 40 contos do Partido Comunista para mostrar as queimaduras, que afinal foram provocadas por azeite a ferver num acidente doméstico. É que com estas mentiras que se faz a história! Olhe, eu servi na GNR e na Pide. Onde eu vi grandes sovas foi na GNR. A Pide era uma polícia semelhante à de muitos outros países democráticos. A França tinha o SDECE e o DST, a Inglaterra tinha o II5 e o DI6, os Estados Unidos da América tinham e têm a CIA e o FBI. Todas estas polícias faziam ou fazem ainda investigação, informação, espionagem e contra-espionagem. Afinal, éramos diferentes em quê? Fazíamos escutas telefónicas? Fazem-nas hoje todos os serviços de informação dos países democráticos. E Portugal não é excepção!
Com estas atordoadas de tortura e de escutas telefónicas que se lançam para o ar ninguém repara que hoje mesmo se está a formar uma nova polícia à escala mundial que, utilizando meios informáticos poderosos e altas tecnologias, controla facilmente a própria vida privada de cada um de nós. Mas como tudo é feito em nome da democracia, ninguém parece estar muito preocupado...
Os horrores da Pide continuam a ser propagados para justificar a revolução e esconder as misérias destes últimos 25 anos. Não fomos nada do que dizem. Fomos, sim, uma das três melhores polícias do mundo. Prestámos relevantes serviços ao país.
E a tortura era o meio de descobrir a verdade?
Era uma das formas. Mas só se praticava tortura em raríssimos casos. Só quando tudo o resto falhava…E a tortura era o meio de descobrir a verdade?
O Eduardo participou em alguma acção de tortura?
Sim, numa meia-dúzia. Mas em nenhuma delas se utilizaram queimaduras e muito menos se despiram as mulheres. Há um ou outro relato, muito raro, de que colegas meus faziam queimaduras de cigarro, e a não ser num caso de mulheres presas do Couço em que humilhações directas de carácter sexual foram utilizadas, desconhecem-se testemunhos nesse sentido. A Pide insultava as “companheiras” de tudo quanto havia, mas não as despia. Também se utilizava a privação do sono; o recorde foi de um jovem engenheiro, comunista, mantido desperto durante um mês. Cometeu o suicídio após a sua libertação.
Os tectos das celas tinham altifalantes que difundiam sons ruidosos e terrificantes, ou por vezes os choros e soluços de suas esposas e os filhos.
As refeições eram servidas de modo deliberado. O pequeno-almoço podia chegar às 16h, e o jantar a meio da noite. Não existiam relógios e as celas não tinham camas.
A censura era uma das armas com que o regime contava para se defender. Quer explicar como se processava? Tinha algum manual que deveria seguir?
A censura era uma das armas com que o regime contava para se defender. Quer explicar como se processava? Tinha algum manual que deveria seguir?
Tínhamos algumas linhas orientadoras que éramos convidados a seguir. Mas eram geralmente os agentes mais velhos que ensinavam os novatos.
E o famoso lápis azul?
E o famoso lápis azul?
O "lápis" começou como protecção do golpe militar de Gomes da Costa, iniciado em Braga e transformou-se no guardião da ideologia "Deus, Pátria e Família", que regia a ditadura que se vivia.
Era com o "lápis azul" que se decidia aquilo que o país deveria saber, através da imprensa, rádio, televisão, livros, cinema, teatro, música, pintura, ou de qualquer outro meio de divulgação da criatividade humana.
O que procurava a Pide apagar, não deixar que chegasse aos ouvidos e aos olhos do povo?
Tudo o que fosse contra o regime e a sua estabilidade. E os meios de comunicação eram os veículos que precisavam de ser controlados. As artes também não poderiam passar despercebidos. Penso que a Pide cumpriu essa missão. Pouca informação ofensiva chegava ao povo. A longevidade do Estado Novo deve-se em grande parte à acção da Pide.
A Comunicação Social deveria ser um instrumento de propaganda. Então considera que a Pide conseguiu controlar as vozes revolucionárias que emergiam na imprensa?
Sim, sem dúvida! Como disse pouca informação desaglutinante escapou ao controlo da Pide.
A Comissão de Censura era competente?
Sim, sem dúvida. O que escapava não podia ser controlado. À comissão de censura pertenciam homens de grande visão. A censura era obra da sua inteligência.
Mas não havia muita informação proibida a circular?
Refere-se a informação clandestina. Sim, chegavam muitos livros e panfletos clandestinos. Mas não tanta como dizem. Um ou outro livro chegava ao nosso país pelas mãos de comunistas.
Na sua opinião entre a imprensa, a rádio e a televisão, qual foi o meio que cumpriu melhor a sua missão? Qual o que melhor a Pide conseguiu controlar?
Penso que a televisão serviu plenamente os interesses do regime. A imprensa foi o mais difícil de controlar. Havia muitos jornalistas e revolucionários com ideais comunistas nas redacções, e tornava-se muito difícil controlá-los. Mas mesmo assim penso que a missão da Pide alcançou claramente os seus objectivos.
A Pide foi apanhada de surpresa quando se deu o 25 de Abril?
A ideia que eu tenho é que não sabia o dia, e aí o Otelo tem todo o mérito, porque depois das Caldas da Rainha, em que eles apanham toda a gente, convenceram-se que tão depressa não ia haver outro golpe. O golpe das Caldas foi muito bom para o 25 de Abril, porque eles aprenderam o que não se devia fazer. E a Pide pensou: "agora não nos vamos preocupar com estes, porque estes estão inutilizados". E isto, ainda por cima, foi transmitido a todos os serviços secretos. A CIA chegou até a tirar os dois ou três agentes que cá tinha, porque pensava que durante um tempo não ia haver nada.
A Pide sabia que se preparava qualquer coisa, mas não soube do dia 25 de Abril. Mas acho que isso tem a ver - e isso ainda está tudo por investigar - com saber se havia, digamos, recrutas dentro da DGS que fossem mais spinolistas. Porque depois também ninguém esperava o processo revolucionário que se seguiu. Aquilo era um golpe militar. Os presos não estavam para sair todos...
Eduardo, conheceu pessoalmente Salazar?
Eduardo, conheceu pessoalmente Salazar?
Sim. Conheci-o. Ao seu lado respirava-se tranquilidade e confiança. É um dos dias de que nunca me esquecerei. E Portugal deve muito a ele. E o povo português ainda recentemente o reconheceu ao proclamá-lo o maior português de sempre. Acompanhou a polémica à volta da inauguração de um largo com o nome de Salazar em Santa Comba Dão? Acompanhei e senti vergonha. A história de hoje não pode esquecer a história do passado. Como um amigo meu dizia é mais honesto baptizar a ponte Salazar com o nome ponte 25 de Abril?
Como vê o Portugal contemporâneo?
Como um navio à deriva. Um navio que ameaça naufragar há três décadas. E não vejo ninguém que possa devolver à nossa pátria a auto-estima e a grandeza que outrora possuíamos. Estamos a caminho da bancarrota. Este não foi o Portugal que o Dr. Salazar sonhou. Se fosse possível Salazar regressar ele não quereria vir. Não temos agricultura nem indústria, nem pescas, e com a maior onda de roubalheira de todos os tempos. E a censura parece tão ter estado tão viva como hoje. Só que actualmente ela é mais descarada!
Alguma das pessoas que denunciou morreu às mãos da Pide?
… Prefiro não responder.
O Eduardo dorme hoje com a consciência tranquila?
Sim… procuro dormir.
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